Literatura e Matemática

Refletir sobre matemática e literatura é uma tentativa de mostrar as possíveis interfaces entre essas duas modalidades de discurso. Duas áreas do conhecimento distintas, mas que se misturam, se entrelaçam e compartilham saberes. Um ensaio de Jacques Fux.

por Jacques Fux

….

Primórdios

Alguns recursos matemáticos utilizados na literatura já podem ser encontrados em livros clássicos como a Torá ou a Divina Comédia. A Torá foi concebida como um livro que não admite nenhuma contingência: tudo o que há faz parte de um sistema bem estruturado, matemático e fechado e qualquer mudança de letra, frase, espaço ou parágrafo poderia desestabilizar o mundo, de acordo com a Cabala. Já a Divina Comédia é narrativa “matemática” composta por três partes de trinta e três cantos (embora o “Inferno” possua uma introdução), escritos em tercetos de decassílabos rimados de modo alternado e encadeado, seguindo a estrutura abc bcb cdc. Pelo que percebemos, o seu sistema gira em torno do número primo três, que simboliza a o fundamento da religião cristã.

Inicialmente, a inclusão de paradoxos, de jogos, de enigmas lógicos e de estruturas e conceitos matemáticos na literatura não era forma sistemática, apesar de esses componentes terem sido largamente utilizados. Com a criação do OULIPO, grupo francês que tem o objetivo de incluir restrições matemáticas em escritos literários, tornamo-nos capazes de estudar as obras literárias do passado e do futuro com diferentes olhos em relação à matemática.

Refletir sobre matemática e literatura é uma tentativa de mostrar as possíveis interfaces entre essas duas modalidades de discurso. Duas áreas do conhecimento distintas, mas que se misturam, se entrelaçam e compartilham saberes. Um exemplo interessante da aplicação direta de conceitos e estruturas matemáticas pode ser encontrado no ano de 1884, com a publicação do livro Planolândia: um romance em muitas dimensões. Abbott, trabalhando com formas geométricas e lugares estranhos, de uma, duas, três e até quatro dimensões, introduziu aspectos relacionados aos conceitos da relatividade e do hiperespaço. Planolândia é uma mistura de matemática e geometria, uma paródia social repleta de humor e sarcasmo, que nos leva a uma viagem a diferentes mundos – em diferentes dimensões físicas – e nos dá, no fim, uma visão variada do espaço e de suas limitações. O livro se ambienta, basicamente, num universo bidimensional. Esse espaço, porém, apresenta certas incompatibilidades, como a presença do “olho”. O axioma inicial que pode ser identificado nessa obra é a construção de um ambiente consistente, dadas as limitações impostas. Quando narra a existência da Pontolândia (o mundo seria um ponto sem dimensão) e da Linhalândia (o mundo seria uma linha, unidimensional), o autor tem que se desdobrar para tentar explicar as conexões e inter-relações presentes nesse novo espaço.

Lewis Carroll também é um exemplo importante que jamais pode ser esquecido. Escritor e matemático, trabalhou e aplicou os conceitos matemáticos conscientemente, deixando como legado, além de sua obra literária, alguns teoremas da matemática. Muitas passagens dos livros Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho estão repletas de enigmas e problemas matemáticos. Carroll fez uso desses conceitos como recurso ficcional para sua obra. Talvez um dos momentos mais citados de Alice, e que contém questões lógicas interessantes, seja o encontro de Alice com o gato de Cheshire. As perguntas (e as respostas) são muito bem conduzidas e logicamente formatadas, produzindo momentos de desconforto e diversão:

….

“O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui?” “Isso depende muito de para onde você quer ir”, respondeu o Gato. “Não me importo muito para onde…”, retrucou Alice. “Então não importa o caminho que você escolha”, disse o Gato. “…contanto que dê em algum lugar”, Alice completou. “Oh, você pode ter certeza que vai chegar”, disse o Gato, “se você caminhar bastante.”

Alice sentiu que isso não deveria ser negado, então ela tentou outra pergunta. “Que tipo de gente vive lá?” “Naquela direção”, o Gato disse, apontando sua pata direita em círculo, “vive o Chapeleiro, e naquela”, apontando a outra pata, “vive a Lebre de Março. Visite qualquer um que você queira, os dois são malucos.” “Mas eu não quero ficar entre gente maluca”, Alice retrucou. “Oh, você não tem saída”, disse o Gato, “nós somos todos malucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.” “Como você sabe que eu sou louca?”, perguntou Alice. “Você deve ser”, afirmou o Gato, “ou então não teria vindo para cá.” Alice não achou que isso provasse nada afinal: entretanto, ela continuou: “E como você sabe que você é maluco?” “Para começar”, disse o Gato, “um cachorro não é louco. Você concorda?” “Eu suponho que sim”, respondeu Alice. “Então, bem”, o Gato continuou, “você vê os cães rosnarem quando estão bravos e balançar o rabo quando estão contentes. Bem, eu rosno quando estou feliz e balanço o rabo quando estou bravo. Portanto, eu sou louco”.

…..

Sim, se em qualquer um dos caminhos que Alice tomar ela caminhar o suficiente, chegará em algum lugar. Questões lógicas e interessantes. E, claro, Alice não deseja estar entre loucos, mas, através da prova por contradição, e da aceitação da regra do jogo, o Gato prova que todos (inclusive Alice) são loucos. A questão levantada por Carroll é interessante do ponto de vista matemático: o postulado, regra ou axioma enunciado pelo Gato: “um cachorro não é louco” é aceito por Alice. Ao estar de acordo com o jogo, Alice continua aceitando os argumentos do Gato. Ao argumentar que os cães rosnam quando estão bravos e balançam o rabo quando contentes, o Gato constrói a negação do argumento, dizendo que ele é justamente o contrário, logo seria um “cachorro doido”, provando que todos ali são doidos. Aqui encontramos os conectivos lógicos “e” e a “negação” bem construídos e conhecidos por Carroll.

O Cheshire Cat de Sir John Tenniel

…..

OULIPO e Italo Calvino

Do encontro entre Noël Arnaud, Jacques Bens, Claude Berge, Jacques Duchateau, Latis, Jean Lescure, François Le Lionnais, Raymond Queneau e Albert-Marie Schmidt, nasceu o OULIPO, grupo que se fundamentou, inicialmente, na possibilidade de incorporação de estruturas matemáticas em trabalhos literários através de métodos restritivos, as chamadas contraintes. OULIPO significa OUvroir, já que pretende trabalhar, LIttérature, pois diz respeito à literatura, e POtentielle, devido à sua potencialidade. Segundo Jacques Bens, outro membro do OULIPO, a potencialidade é um trabalho que não é limitado somente pelas aparências, mas que contém segredos a explorar, pois há um fator combinatório entre as várias formas de leitura. O OULIPO trabalha com estruturas bem definidas e acordadas anteriormente. Para compor um texto, utilizam contraintes, que têm como objetivo, segundo os oulipianos, ajudar no desenvolvimento de seu trabalho.

Calvino entra oficialmente no OULIPO em 1973 e produz alguns livros utilizando retrições de maneira declarada. Porém, mesmo antes de sua entrada, ele já produzia na mesma linha que o OULIPO: era um “plagiador por antecipação”. Se um viajante numa noite de inverno é um hiper-romance (utilizando o conceito de hipertexto ou hiper-romance discutido pelo próprio Calvino) que constrói sua narrativa seguindo um modelo previamente determinado, um algoritmo que o próprio Calvino apresenta nas obras conjuntas do OULIPO. Já em O castelo dos destinos cruzados, o escritor italiano constrói uma máquina narrativa literária segundo os moldes do OULIPO: “a ideia de utilizar o tarô como uma máquina narrativa combinatória me veio de Paolo Fabbri […] o significado de cada carta depende de como ela se coloca em relação às outras cartas que a precedem e as que a procedem; partindo dessa idéia, procedi de maneira autônoma segundo as exigências do meu texto”. Calvino também “compartilhava com o OULIPO muitas ideias e predileções: a importância das contraintes nas obras literárias, a aplicação meticulosa de regras de jogos estritos, o retorno aos procedimentos combinatórios, a criação de novas obras utilizando materiais já existentes”. Em As cosmicômicas, o nome do personagem principal do livro é um palíndromo, Qfwfq. Há também outras referências de personagens que utilizam o mesmo contrainte (Pfwfp). Qfwfq se apresenta em várias épocas, em vários lugares e sob várias formas (ou não-formas). A partir de conjecturas e leis físicas, o personagem recorda momentos marcantes de sua evolução juntamente com as dos universos (difícil nomear, já que ele “brinca” de construir universos com suas partículas formadoras).

Os três principais livros explicitamente oulipianos de Calvino são As cidades invisíveis, O castelo dos destinos cruzados e Se um viajante numa noite de inverno. Em As cidades invisíveis, a contrainte está na construção dos capítulos e nas relações entre eles. Já nos outros dois livros, essas contraintes são melhor desenvolvidas. Na Bibliotèque oulipienne no 20, Calvino apresenta um texto em que mostra como construirá seu livro – a estrutura geral da obra, as relações entre os personagens de cada capítulo e a posição do leitor e do autor.

Em “Prose et anticombinatoire”, texto publicado no Atlas de littérature potentielle, Calvino reflete sobre o limite da utilização da combinatória na literatura, sendo esta algumas vezes auxiliada pelos computadores. A utilização dos computadores, segundo Calvino, ajuda em situações nas quais as estruturas escolhidas pelo autor têm número restrito, mas as realizações possíveis são combinatoriamente exponenciais, apenas sendo passíveis de execução por um computador. Já quando o computador seleciona algumas realizações compatíveis com certas contraintes, essa ferramenta assume um caráter anticombinatório. Calvino discorre sobre um exemplo em que a utilização da combinatória fornece uma solução estúpida para seu enigma policial, e, devido a isso, conclui que o computador não irá substituir o ato criador e o artista, e sim libertá-lo dessa sua servidão.

….

Ambigrama do Oulipo

…..

Borges e Perec

No artigo “Georges Perec et les mathématiques”, o grande estudioso da obra de Pere, Bernard Magné o apresenta como um jovem que não gostava muito de matemática, mas que era bastante interessado e intrigado pelos grandes enigmas e jogos. Perec constrói uma aritmética original, com estruturas recorrentes como o carré e as “simetrias bilaterais”. O carré pode ser visto como um tabuleiro clássico de xadrez (8 x 8), um outro tabuleiro presente em A vida modo de usar (de tamanho 10 x 10), ou ainda um de 9 x 9 presente no Deux cent quarente-trois cartes postales. Já a simetria bilateral pode ser vista por meio do jogo de palíndromos, da utilização das letras W e X e de suas devidas representações geométricas e da combinatória, presentes, por exemplo, em Alphabets.

A aproximação entre a matemática de Perec e a verdadeira matemática é simplista, já que Perec era um amador na área. Sua utilização por Perec se deve ao amor que ele nutria por jogos e contraintes e, logicamente, por sua vinculação ao grupo OULIPO. A estrutura bicarré latino utilizada em A vida modo de usar, por exemplo, foi dada à Perec por Claude Berge, matemático membro do OULIPO: “Em 1967, durante uma sessão do OULIPO, tive a oportunidade de conversar com Georges Perec sobre o projeto que realizou com o título de Carrés Latinos, um primeiro rascunho do que se tornaria A vida modo de usar.

Perec tinha também uma obsessão pelos números, sendo considerado, além de um manipulador de palavras e letras, um manipulador também de números e cifras. Em Je me souviens escreve: “Eu me recordo da teoria matemática da transitividade. Eu me recordo que todos os números cuja soma de seus elementos dão um total de nove são divisíveis por nove (às vezes, eu passava as tardes a verificar)”. E também em suas palavras, em 53 jours: “As nove maneiras onde o número 53 faz parte de uma sequência de Fibonacci. Os Holandeses dizem que todo número pode ser a soma de seus K primos (Conjectura de Goldbach)”.

Em Perec, lipogramas, palíndromos e as contraintes do jogo de xadrez podem ser representados como de natureza matemática. Segundo a pesquisadora e atual professora de Sorbonne, Christelle Reggiani, “estamos então face à uma concepção instrumental da relação entre matemática e invenção literária: a matemática será retida pela atitude oulipiana em razão do seu caráter formal, evidentemente interessante para uma literatura que se escreve essencialmente em torno de estruturas”.

Perec

….

Enquanto Perec, assim como os oulipianos, utiliza a matemática de forma estrutural, Borges aplicou diferentes conceitos matemáticos para criar suas ficções, que se “deleita na teoria moderna de conjuntos e lê textos matemáticos para aprender mais” (HAYLES, 1984, p.25). Os conceitos mais importantes presentes em sua obra, que objetivam criar uma ligação entre matemática e literatura, são a Cabala, os paradoxos autorreferentes e a análise matemática. Assim escreve Hayles sobre a utilização dos paradoxos autorreferentes na obra de Borges, seu intuito e a desestruturação, desconstrução e incerteza por eles ocasionados:

O que fascina Borges é a perspectiva de um conjunto que contém a si mesmo, um conjunto que contém e está contido em sua parte. Tais paradoxos são implícitos em muitas representações de modelos de campo, porque a representação é ao mesmo tempo do todo, no sentido em que traz as imagens do campo, e da parte, no sentido de que ele está contido dentro de tudo que figura. Este paradoxo, central nas ficções de Borges, é explorado através dos conjuntos infinitos e dos números transfinitos de Cantor presentes na sua teoria dos conjuntos. O pressuposto de Borges é que o universo newtoniano deve desintegrar-se quando confrontado com antinomias a que esta teoria deu origem. Mas ele não quer uma nova realidade também. Ao contrário, ele contrapõe a perda da “nova certeza”, com as velhas certezas, para tornar tudo incerto (HAYLES, 1984, p.27).

Os livros Unthinking thinking: Jorge Luis Borges, mathematics, and the new Physics, de Floyd Merrell (1991), The unimaginable mathematics of Borges’ Library of Babel, de William Goldbloom Bloch (2008) e Borges y la matemática, de Guillermo Martínez (2003) mostram muitos desses conceitos.

Por outra via, o uso da matemática por Borges serve para mostrar a potencialidade de suas obras, conforme análise de Italo Calvino em Por que ler os clássicos, o que nos permite a aproximação de Borges com os trabalhos oulipianos:

….

O que mais me interessa anotar aqui é que nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura como extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usar um termo que será desenvolvido mais tarde na França, mas cujos os prenúncios podem ser encontrados em Ficciones, nos estímulos e formas daquelas que poderiam ter sido as obras de um hipotético Herbert Quain (CALVINO, 1993, p.248-249).

….

Italo Calvino

….

De acordo com Calvino, o mundo para Borges é construído e governado pelo intelecto, ideia esta que está na contracorrente do curso principal da literatura do século XX, que tende para o sentido da exploração do inconsciente, do acúmulo magmático da existência na linguagem. Escritor conciso e breve, Borges inventa em si um narrador infinito e apresenta toda a literatura como já escrita por um outro hipotético autor desconhecido e falsário. Em suas obras, o escritor argentino introduz os conceitos matemáticos. No conto “O Aleph” podemos, por exemplo, observar claramente o conceito matemático de infinito de Cantor:

…..

Duas observações quero acrescentar: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao cerne de minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o Ein Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para o Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes (BORGES, 1998i, p.695).

….

Até 1870, os matemáticos pensavam que havia somente um infinito. Quando Cantor começa seu trabalho, descobre que havia diferentes classes de infinitos, ou seja, existiam alguns infinitos “maiores” que os outros. A referência que Borges faz é relativa aos números transfinitos, a partir dos quais o todo não é maior que as partes, contrariando o postulado aristotélico segundo o qual o todo deve ser maior que qualquer uma de suas partes. O Mengenlehre é a denominação em alemão da teoria dos conjuntos.

Para entender esse conceito, pensemos no conjunto dos números naturais. Por certo, verificamos a sua infinidade por não conseguirmos achar o maior dos números naturais. A prova é simples, basta conjecturar a existência do maior dos números naturais e chamá-lo de M, por exemplo. Se adicionarmos a M o 1, teríamos o M+1, que é maior que o M e ainda é um número pertencente ao conjunto dos números naturais, logo, por contradição,[1] há um número maior que o maior número. Logo, não há maior número natural, o que leva à infinitude desse conjunto. Tomemos agora um subconjunto dos números naturais definido somente pelos números pares. Podemos fazer uma relação entre o conjunto dos números naturais e seu subconjunto dos números pares, relacionando um elemento de cada conjunto e assim por diante. Por exemplo, relacionamos o 1 com o 2, o 2 com o 4, o 3 com o 6, e assim por diante. Assim, para Cantor, há tantos números pares quanto números naturais. Verificamos que essa relação é infinita e, por isso, demonstramos que a quantidade de elementos presentes nos conjuntos é a mesma, ou seja, o todo não é maior que uma das partes.

Nos contos “A biblioteca de Babel” (1998d) e “O livro de areia” (1999d), Borges novamente fará referências ao infinito, dessa vez a partir dos números racionais.[2] A grande importância de se trabalhar com esse conjunto é que, entre quaisquer dois números racionais, há sempre um outro número. Assim, é impossível achar o primeiro número logo depois de um outro. Sabe-se também que tanto o infinito dos números naturais quanto o infinito dos números racionais é do mesmo tamanho. Utilizando esse conceito, Borges escreve em “O livro de areia”:

 …….

Disse-me que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim. Pediu-me que procurasse a primeira folha. Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o dedo polegar quase pegado ao indicador. Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro (BORGES, 1999i, p.80-81).

….

E escreve também em “A biblioteca de Babel”:

 ….

Letizia Alvarez de Toledo observou que a vasta Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, composto de um número infinito de folhas infinitamente delgadas (BORGES, 1998d, p.523).

No campo da Topologia, Borges faz menção à faixa de Moebius, como percebemos no conto “O disco”:

…..

Abriu a palma da mão, que era ossuda. Não havia nada na mão. Estava vazia. Foi então que notei que sempre a tinha conservado fechada. Disse, olhando-me com firmeza: – Podes tocá-lo. Já com algum receio, pus a ponta dos dedos sobre a palma. Senti uma coisa fria e vi um brilho. A mão se fechou bruscamente. Não disse nada. O outro continuou com paciência, como se falasse com uma criança: – É o disco de Odin. Tem um só lado. Na terra não há outra coisa que tenha um só lado. Enquanto estiver em minha mão, serei rei (BORGES, 1999c, p.77).

…..

A coisa mais importante que notamos na faixa de Moebius é que ela só tem um lado: podemos ir de um ponto de um “lado” da faixa a qualquer ponto do “outro” lado através de um caminho contínuo, sem nunca perfurar a superfície nem passar pela fronteira. Então, a faixa de Moebius não tem um lado de “dentro” nem de “fora”, somente um.

Borges faz menção aos seus estudos matemáticos num artigo que se intitula “La cuarta dimensión”. Em suas palavras:

….

a superfície, o ponto e a reta são ideais geométricos, assim como o volume, e também o hipervolume em quatro dimensões. Não haverá no universo material, um só triângulo absolutamente equilátero, mas podemos imaginar. Não haverá também um hipercone mas podemos imaginá-lo. Essa promessa é dada pelo volume de Hinton, Uma nova era do pensamento. Eu o comprei e comecei a lê-lo e o emprestei. Um fato inegável é, recusar-se a quarta dimensão é limitar o mundo, afirmá-la é enriquecê-lo. De acordo com a terceira dimensão, a dimensão de altura, um ponto preso em um círculo poderia escapar sem tocar a circunferência (BORGES, 1995, p.30.).

….

Borges

Na matemática podemos trabalhar com estruturas pertencentes à dimensão n.[3] Borges argumenta a impossibilidade de visualizarmos a quarta dimensão, já que estamos limitados pelos nossos sentidos. Um exemplo parecido foi fornecido e trabalhado ficcionalmente pelo livro Planolândia, ao qual nos referimos anteriormente. Saber que existe uma quarta dimensão e possuirmos ferramentas matemáticas para descrevê-la torna, do ponto de vista de Borges, o mundo mais rico. Em “Avatares da tartaruga”, Borges escreve: “Há um conceito que corrompe e transtorna os outros. Não falo do Mal cujo limitado império é a ética; falo do infinito” (BORGES, 1998b, p.273).

Na resenha ao livro Men of mathematics, de E.T. Bell, publicada em El Hogar, Borges mostra seu conhecimento em campos diversos da matemática e sua predileção pelos problemas de Cantor:

….

Não é primordialmente uma obra didática; é uma história dos matemáticos europeus, desde Zenão de Eléia até Georg Ludwig Cantor de Halle. Não sem mistério unem-se esses dois nomes: vinte e três séculos os separam, mas uma mesma perplexidade deu fadiga e glória aos dois, e não é aventurado coligir que os estranhos números transfinitos do alemão tenham sido idealizados para de algum modo resolver os enigmas do grego. Outros nomes ilustram este volume: Pitágoras, que descobriu para seu mal os incomensuráveis; Arquimedes, inventor do “número de areia”; Descartes, algebrizador da geometria; Baruch Spinoza, que aplicou infelizmente a linguagem de Euclides à metafísica; Gauss, “que aprendeu a calcular antes que a falar”; Jean Victor Poncelet, inventor do ponto no infinito; Boole, algebrizador da lógica; Riemann, que desacreditou o espaço kantiano (BORGES, 1999e, p.435-436) .

Assim, Borges, Perec, Calvino e outros utilizam alguns conceitos matemáticos para aumentar a potencialidade de leitura de seus contos. Assim a matemática dialoga (muito bem) com a literatura.

….

O autorretrato de Borges, após ter ficado cego (Publicado desta forma em 1976 pela Paris Review, até então só tendo sido visto de cabeça para baixo)

….

..

Notas:

[1] Pode-se usar aqui também o Princípio do Terceiro Excluído, ou seja, um terceiro valor de “verdade” não existe: ou a afirmação é verdadeira ou é falsa. Como no caso conjecturamos a existência do maior número natural e isso nos levou à uma contradição, nossa hipótese estava errada, levando à conclusão de que não existe o maior natural.

[2] Os números racionais são aqueles que podem ser escritos em forma de fração.

[3] O n pode assumir qualquer valor. Se n=4 temos, por exemplo, quatro dimensões.

..

Referências bibliográficas

FUX, Jacques. Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO. São Paulo, Perspectiva: 2016.

FUX, Jacques. Georges Perec: A psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de Guerra. Belo Horizonte, Relicário Edições, 2019.

.

..

COMPARTILHE: