por Ary Quintella
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Alguns dos acontecimentos literários mais importantes no Brasil, no surpreendente ano de 2020, foram sem dúvida os lançamentos da coleção de cartas de Clarice Lispector e da nova edição da obra de João Cabral de Melo Neto. Todas as Cartas, pela editora Rocco, vem com prefácio e notas de Teresa Montero, biógrafa de Clarice, e posfácio de Pedro Karp Vasquez. Poesia completa, pela Alfaguara, é organizado por Antonio Carlos Secchin.
Vivendo e trabalhando na Malásia, não pude comprar nenhum dos dois volumes. Por causa deles, fiquei tentado a finalmente aceitar a modernidade e encomendar um kindle. Cheguei a escolher o modelo, a cor da capa, mas na hora de terminar o pedido hesitei.
Faria sentido, para alguém na minha profissão, parar de comprar livros físicos e tê-los todos em um aparelhinho cômodo, fácil de carregar, que não ocupa espaço, e que tornaria obsoleta a centena de caixas que carrego por todo lado. Mas por favor, não me digam que o kindle é um bom substituto para o livro como objeto. Nada pode se sobrepor às delícias de segurar um volume, tocá-lo, cheirá-lo, sentir a textura do papel — ainda que de má qualidade — e abrir uma página ao acaso.
Se você, leitor amigo, vier me visitar quando a pandemia terminar e as fronteiras da Malásia reabrirem, por favor coloque na mala, além das cartas de Clarice e os poemas de João Cabral, a biografia de Paulo Rónai por Ana Cecilia Impellizieri Martins, O homem que aprendeu o Brasil, publicado pela Todavia. Se houver espaço na bagagem, traga também dois romances, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, também pela Todavia, e Marrom e Amarelo, de Paulo Scott, com o selo da Alfaguara. Quando os dois foram lançados, em 2019, eu já me preparava para partir para a Malásia e achei que não seria difícil encomendá-los daqui. Não podia prever o novo coronavírus, motivo pelo qual, aparentemente, as livrarias brasileiras na Internet não estão aceitando encomendas do exterior.
Sem acesso aos lançamentos no Brasil no ano passado, e embora ninguém tenha me perguntado nada, vou comentar alguns livros que, lidos ou relidos, estiveram ao alcance da minha mão em 2020.
Os contos de Clarice Lispector em Laços de Família nos fazem, como poucos outros, entrar no sentimento de seus personagens. Isso me permitiu sair da minha experiência pessoal que tem sido, como a de todo mundo, de luto e preocupação. Se eu tivesse de escolher apenas um, seria A Imitação da Rosa, no qual, ao remoer a condescendência com que é tratada pelo marido, pelo médico, pela melhor amiga, uma jovem percebe que a condição psiquiátrica de que acaba de se tratar em um sanatório está voltando. “A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais”, pensa Laura. Talvez a doença mental que ela sente regressar seja causada por sua noção apurada das regras de dominação ou indiferença que ditam os relacionamentos humanos.
Em setembro de 2019, o historiador Philip Mansel lançou na Inglaterra King of the World, biografia de um homem, Luís XIV, acostumado a encarar a todos com condescendência. Em O Delacroix de Chelsea contei como cheguei a comprar o livro para oferecê-lo de presente, em Londres, mas acabei trazendo-o na mala ao voltar para o Brasil.
Nas nossas estantes, a bibliografia sobre Luís XIV é extensa. Pensei nunca ler a contribuição de Philip Mansel, mais uma entre tantas; achei que não haveria tempo útil de vida, e que ela nada acrescentaria ao que já sei. Em 2020, porém, tradução publicada na França causou sensação entre os franceses que sigo no Twitter. Decidi então ler o original, mas descobri que estava em Singapura. Como minha mulher e eu ficamos, por causa da pandemia, quase o ano todo sem poder ver um ao outro, o Mansel estava inacessível. Autorizada pelo governo malásio a vir passar o Natal, ela desembarcou em Kula Lumpur com o Rei do Mundo.
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A erudição acadêmica do texto não impede que o autor construa uma narrativa empolgante, que não é uma elegia ao rei e tenta ser um relato objetivo. Deixou-me consciente da dificuldade, no caso de vidas longas e agitadas, dedicadas à política, de julgar se foram exitosas ou não. Toda carreira pública, se dura muito, só pode ser um contraste de erros e acertos. No livro de Philip Mansel, isso fica claro tanto no que diz respeito ao próprio rei quanto ao cardeal Jules Mazarin, padrinho, mentor e primeiro-ministro de Luís XIV no começo de seu reinado. Figura célebre da História da França, o cardeal nascera porém na Itália, com o nome de Giulio Mazzarino. Uma hora Mansel parece elogiá-lo, noutras é mais severo.
Sou adepto da doutrina segundo a qual Mazarin muito contribuiu, como seu predecessor, o cardeal de Richelieu, primeiro-ministro de Luís XIII, para projetar o poder francês na Europa e, no plano interno, eliminar a autonomia da nobreza, ajudando a transformar a França em um país centralizado, uma nação com um executivo forte. A aura do cardeal, em seu tempo um dos homens mais poderosos e famosos da Europa, já não brilha tanto fora de seu país adotivo. Há poucos anos, em Brasília, quando um grupo de amigos jantava em nossa casa, citei-o e notei com surpresa que meu comentário caíra no vazio. Nenhum dos presentes sabia quem ele era. Em seu livro World Order, Henry Kissinger menciona mais de uma vez Richelieu, mas não Mazarin, embora a perseverança do cardeal tenha sido determinante para a Paz da Vestfália em 1648, e tenha sido ele o negociador do Tratado dos Pirineus com a Espanha em 1659.
A biografia de Mansel, porém, é sobre Luís XIV, não Mazarin. Em seu balanço do reinado, aponta que, depois da morte do cardeal, em 1661, tendo herdado o país mais poderoso e o maior exército da Europa, Luís XIV, imaginava-se, se tornaria o monarca mais importante da História. Mansel lembra no entanto que, quando o rei morreu, em 1715, a França já não era a maior potência europeia, e “sua própria personalidade fora uma causa disso”, em razão de seu amor excessivo pela guerra e de tantos erros de julgamento. O título do último capítulo, “The Shadow of Versailles”, dá a entender que o principal legado do rei teria sido o palácio que mandou construir, mas sugere também que a Cinquième République atual — democrática, com um chefe de Estado eleito pelo voto popular, mas de espírito monárquico — seria a herdeira e beneficiária da política centralizadora de Luís XIV e portanto, concluo, também dos dois cardeais, Richelieu e Mazarin, que prepararam o terreno para o rei.
É bem provável que a obra de Philip Mansel seja traduzida no Brasil, após as críticas entusiasmadas que vem recebendo. Além da tradução francesa, soube há poucos dias por meu amigo Hélio, escrevendo de Roma, que o livro acaba de ser lançado também na Itália. Gostei de ler a biografia. É academicamente impecável, mas não acho que seja melhor do que outros volumes sobre o rei. As biografias de Luís XIV ou os estudos sobre sua época são numerosíssimos, em inglês como em francês. Já em 1751, com Le Siècle de Louis XIV, Voltaire produziu uma análise excelente e ainda válida. Na França, é raro o ano em que não saia livro sobre “o faraó de Versalhes”, como o denominava o historiador Philippe Erlanger, ou sobre algum aspecto de seu reinado, o qual, tendo durado 72 anos, é o mais longo por enquanto da história europeia. Elizabeth II terá de viver quatro anos adicionais para suplantar esse recorde. A biografia de Mansel não me pareceu melhor do que outra mais antiga produzida no universo anglófono, a do americano John B. Wolf, de 1968.
O objetivo de Richelieu e de Mazarin de dar supremacia à França requereu diminuir o peso na Europa de uma dinastia conhecida no século XVII como a Casa d´Áustria e depois, mais usualmente, como os Habsburgos. Outro historiador inglês, Martyn Rady, em um livro lançado em 2020, nos faz acompanhar as origens obscuras da família no século X, sua ascensão, seus revezes e o ocaso final em 1918. Em The Habsburgs: The Rise and Fall of a World Power, Rady transmite bem a ambição universalista da dinastia. O world power do subtítulo eram eles, os Habsburgos, e não um Estado soberano. O autor nos mostra como, ao longo dos séculos, a família se firmou como uma força na Europa e, com o ramo que reinou na Espanha e em suas colônias, no mundo inteiro — inclusive, de 1580 a 1640, no Brasil.
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Martyn Rady tem o dom de encontrar a frase que encapsula uma vida, uma personalidade. Francisco José I da Áustria, Habsburgo que reinou de 1848 a 1916, é outro exemplo de que a longevidade pode deixar uma marca ambivalente na reputação do indivíduo. É impossível visitar Viena sem notar o culto a ele devotado, mantido vivo pelos saudosistas da monarquia e da era em que a Áustria foi uma potência. O imperador é também lendário pelas tragédias pessoais que viveu: fuzilamento do irmão, o efêmero imperador do México, Maximiliano, em 1867, ainda lembrado hoje por causa das versões pintadas por Manet de sua morte; suicídio do filho e herdeiro, Rodolfo, em 1889; assassinato em Genebra, em 1898, da mulher, Elisabete, famosa sob o apelido de Sissi; e, finalmente, o assassinato, em 1914, em Sarajevo — tornado célebre na História pelas suas consequências — do novo herdeiro, o sobrinho, Francisco Ferdinando.
O reinado de Francisco José, apesar da imagem mítica que ainda irradia, foi, no plano externo, catastrófico para o país. Rady nos diz sobre o penúltimo imperador da Áustria e rei da Hungria: “he was inept but convinced in his own superior wisdom”. Em menos de vinte anos, Francisco José perdeu a Lombardia, Veneza e a Confederação Alemã. Dois anos depois de sua morte, como resultado da I Guerra Mundial para cuja eclosão a Áustria-Hungria contribuíra, a família deixou de reinar, e o próprio império se esfacelou.
Sobre Sissi, Martyn Rady escreve uma frase irônica e sucinta: “she luxuriated in her own beauty”. Lembro de uma frase de Marguerite Yourcenar, que fala do “mélancolique narcissisme” da imperatriz e julga que Sissi era “tão ausente do mundo e da vida”, que sequer compreendeu que seu assassino a golpeara de morte. Já a duquesa de Guermantes, com sua condescendência habitual, que não poupa ninguém, define Sissi como “un peu folle, un peu insensée”, mas “muito boazinha, uma louca muito amável”.
O avô de Francisco José, Francisco I, primeiro imperador da Áustria e último imperador do Sacro Império Romano-Germânico — dissolvido em 1806 — foi um dos mais lastimáveis dos Habsburgos, embora politicamente um dos mais bem-sucedidos, graças, paradoxalmente, à sua longevidade. Ao morrer em 1835, vira vir e passar a Revolução francesa e Napoleão, tendo sido humilhado por ambos nos planos político, territorial e militar. Em 1793, nada fez para salvar sua tia, Maria Antonieta. Em 1810, deu de presente a filha mais velha a Napoleão. Então com 18 anos, Maria Luísa crescera no ódio ao “ogro corso”, mas foi entregue a ele como uma presa, quando isso foi visto como útil, e instada pelo pai a abandoná-lo, em 1814, quando a estrela napoleônica se apagou. Em 1817, Francisco I colocou em um navio outra filha, Leopoldina, para que atravessasse o Atlântico e passasse a dividir a cama de nosso futuro Pedro I, que tanto a humilharia.
De forma alguma foram os Habsburgos a única dinastia a sacrificar, para fins políticos, a felicidade pessoal de seus membros, e nem Rady os acusa disso. Sobre o casamento de Leopoldina, o historiador apenas menciona que as cores da camisa da seleção brasileira juntam o verde dos Braganças ao amarelo dos Habsburgos. A mim, porém, a atitude de Francisco I com as filhas sempre pareceu de um certo cinismo, pois ele procurava passar aos súditos uma imagem de homem simples, burguês, devotado à família. Fraco e medíocre, foi bem assessorado por um chanceler poderoso e viveu o suficiente para ver superadas suas derrotas. É sintomático que o capítulo dedicado ao seu reinado se intitule “Metternich and the Map of Europe”. Os admiradores do célebre estadista, entre os quais está Henry Kissinger, encontrarão no livro de Rady uma visão favorável de sua atuação. Mesmo a repressão política e a censura implantadas por Metternich, que já na época marcavam o seu nome tanto quanto a capacidade diplomática, são minimizadas pelo historiador.
Martyn Rady oferece um retrato tradicional de outro Habsburgo, Felipe II de Espanha. O Felipe de Rady é o rei dos manuais escolares, católico intransigente, soturno perseguidor de protestantes, judeus e muçulmanos, trancado no sombrio Escorial. O rei tenebroso que inspirou a Verlaine o poema La Mort de Philippe II e a Verdi a ópera Don Carlos. Esse homem existiu, mas trata-se do Felipe II envelhecido. Antes disso, houve um príncipe jovem, viajante e, como tantos Habsburgos, protetor das artes. É esse o Felipe que aparece no catálogo de uma exposição recente, Love Desire Death, que chegou a ser aberta na National Gallery de Londres, mas teve de ser interrompida por causa da pandemia.
Love Desire Death expôs as sete telas, conhecidas como poesie, encomendadas por Felipe II a Ticiano sobre temas mitológicos inspirados em Ovídio. Entre os sete quadros, hoje espalhados por museus na Inglaterra, na Escócia, na Espanha e nos Estados Unidos, está um dos mais famosos do mundo, O Rapto de Europa, que mora em Boston, para onde foi levado após ter sido celebremente comprado, em 1896, pela colecionadora de arte Isabella Stewart Gardner, amiga de Henry James.
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O catálogo contém ensaios excelentes, de diferentes autores, e belíssimas reproduções dos quadros. Seu coordenador, Mathias Wivel, nos explica como Felipe, aos 21 anos, ainda príncipe e herdeiro do pai, o imperador Carlos V, de passagem por Milão em 1548 pediu a Ticiano que viesse de Veneza encontrá-lo. O pintor, que tinha Carlos V entre seus patronos, era quarenta anos mais velho do que o príncipe. Wivel mostra um Felipe “enérgico e ambicioso”, desenvolvendo com o pintor tão mais velho uma relação “de grande respeito mútuo”. Ticiano recebera total liberdade sobre o formato dos quadros e as cenas a serem representadas; escolheu para a série de poesie temas que pudessem atender a “Philip´s ardent interest in women and his lifelong obsession with hunting”. Aparece assim a imagem de um Felipe namorador, patrono sensível de Ticiano, por quem nutria “genuine affection”.
O ano de 2020 foi trágico para todas as manifestações artísticas e para todos os artistas. Como catálogo de uma exposição interrompida, Love Desire Death simboliza para mim as experiências intelectuais, culturais e sensoriais de que fomos privados em razão da pandemia.
Talleyrand, contemporâneo, amigo e rival de Metternich, é objeto de um estudo que li do historiador francês Emmanuel de Waresquiel e que não deve ser confundido com sua biografia do diplomata. Mas foi graças a Stendhal que comecei a gostar dos livros de Waresquiel, que publicou em 2020 curto volume sobre o escritor, de quem é a bela frase do título, J´ai tant vu le soleil. O livrinho é apresentado por Waresquiel de forma desmerecidamente modesta, como algo “rápido e sucinto demais para ter qualquer valor científico”. Seu propósito é comentar, sem pretensões, aspectos da vida de Stendhal, mas nesse processo Waresquiel ilumina sua própria personalidade e o ato de escrever. “Para quem provou da profunda atividade que é escrever”, diz ele por exemplo, “ler se torna um prazer apenas secundário”.
O livro sobre Stendhal despertou em mim grande interesse pelo estilo do historiador. Li, em seguida, sua visão sobre o processo de Maria Antonieta, Juger la reine, de 2017, e seu livro sobre a Revolução, também publicado em 2020, Sept Jours: 17-23 juin 1789. Neste último, ele desmonta a fábula sobre a suposta bondade e a tolerância de Luís XVI. Mostra, ao contrário, um soberano aferrado aos seus direitos e à herança absolutista, mas sem a firmeza de personalidade necessária para enfrentar o desafio do momento histórico. Waresquiel demonstra que a Revolução se tornou um fato irreversível em decorrência de eventos ocorridos naquela semana de 17 a 23 de junho. Mais do que propor uma história da Revolução, ele se concentra sobre esses sete dias cruciais, apresentando as motivações, as falhas, os êxitos dos diversos atores. Trata de maneira original um tema analisado já tantas vezes, jogando sobre ele uma luz nova. Sua análise sobre o processo de Maria Antonieta, em Juger la reine, mostra as múltiplas razões sociais e políticas por trás de sua condenação e o paralelismo da execução, pelo Terror, da maioria de seus próprios acusadores, cuja vida e personalidade Waresquiel detalha.
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Ao arrumar as prateleiras de livros em Kuala Lumpur, após abrir a mudança em maio, pensei um pouco em Walter Benjamin. Em artigo de 1931 intitulado “Desembalo a minha biblioteca”, ele narra a experiência de tirar os livros das caixas e de colocá-los nas estantes, tendo tido que ficar dois anos sem vê-los. Uma frase lembra a de Emmanuel de Waresquiel no estudo sobre Stendhal. Benjamin diz que os escritores escrevem “por insatisfação em relação aos livros que eles poderiam comprar, mas que não os agradam”.
Pensei muito mais, porém, no nosso próprio delegado Espinosa. Seu criador, o psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza, morreu em abril de 2020, aos 83 anos. É uma tristeza pensar que já não teremos novos romances policiais intrinsecamente cariocas com o seu detetive de nome e índole filosóficos. Garcia-Roza é um desses escritores que eu teria gostado de conhecer pessoalmente, o que teria sido fácil, pois tínhamos amigos em comum. Mas ele partiu sem que eu nunca tenha feito nada a respeito. Fica então o arrependimento.
Espinosa mora no bairro Peixoto, ao lado do qual, na rua Anita Garibaldi, vivia minha avó, e no coração do qual, na Décio Vilares, em frente à pracinha, morava e clinicava uma psicanalista grande amiga de minha mãe, Imelde Farah, que foi para meus irmãos e para mim mais do que uma tia. Neste momento, passo os olhos por Espinosa sem saída e vejo que Irene, namorada do detetive, inspirou a personagem de um conto que escrevi em francês, há dez anos, e que nunca publiquei. Percebo agora, aliás, que em outro conto meu em francês o personagem principal, detetive carioca introspectivo, sofreu clara influência de Espinosa.
Em Perseguido, o detetive de Garcia-Roza sai mais cedo da delegacia para caçar mais livros em um sebo. Lemos que em sua casa não há estantes ou prateleiras, mas sim “uma singular obra de engenharia doméstica”. Espinosa amontoa os volumes contra a parede, em sucessivas camadas, alternadas, de livros deitados e de livros na vertical: “uma biblioteca em estado puro, sem nenhum elemento que não fosse livro”.
Sozinho em Kuala Lumpur durante a maior parte do ano de 2020, com a presença apenas de Kiki, a gata persa dourada, muitas vezes olhei para as montanhas de livros no chão, sem ânimo para arrumá-los nas estantes, e pensei em Espinosa e na morte de seu criador. A ambos dedico estas páginas.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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