por Fabrício Tavares de Moraes
Em Ontem Não Te Vi em Babilônia (2006), romance que narra uma noite de insônia de quatro personagens aflitos, a menina Ana Emília, que se enforcou na árvore do quintal, assume, ao que parece, a voz de sua mãe, relatando num estilo límpido mas intenso suas memórias, encerrando a obra com uma definição do próprio estilo de seu autor, António Lobo Antunes: “porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro”.
O mote revela dois aspectos fundamentais da prosa daquele que é considerado o maior autor em língua portuguesa em atividade. Por um lado, sua escrita é afeita à noite: lúgubre e densa, favorável ao desvario. Não coincidentemente, alguns de seus romances se passam numa só noite, e alguns dos títulos são reveladores: Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000), retirado do famoso poema de Dylan Thomas, ou Não é Meia-Noite Quem Quer (2012), inspirado no poema Entraperçue, de René Char.
Por outro lado, se a escrita de Lobo Antunes pode ser lida no escuro, isto implica que se trata de uma escrita refulgente, não porque celebra uma alegria fácil, mas porque transmite euforia perante a plenitude de vozes que permeiam todo evento deste mundo. Suas narrativas vasculham, num clarão de radiografia, os antros em que a miséria humana se incumba. Daí temos casarões em ruínas, casebres e quintas abandonadas, os “bairros de lata”, os prostíbulos, as salas de tortura e bares decadentes como cenários recorrentes de seus romances. Essa dualidade de sua escrita foi resumida por Lobo Antunes, para quem “escrever é sempre estruturar um delírio”.
Em seu último romance, Para Aquela Que Está Sentada no Escuro À Minha Espera, publicado em fins de 2016, Lobo Antunes não somente retoma, mas implode uma de suas temáticas recorrentes – a memória. O enredo, como a maior parte de seus romances, é esquelético: a vida de uma atriz aposentada e senil, que havendo se mudado para Lisboa quando jovem, foi, por um tempo, celebridade no teatro. Na medida em que vemos a deterioração de sua mente percebemos também a impetuosidade com que suas memórias antigas – sua infância, seus papéis e seus dois casamentos – vêm à tona. Juntamente a isso, a degeneração de seu cérebro transfigura o mundo e o tempo:
“[…] a certa altura o relógio de cuco, dilatado por horas sem fim, principiou a estalar, os encaixes das tábuas separaram-se e um enxame de cucos carregando consigo todos os minutos do mundo atravessou o compartimento, desordenado, confuso, agitando asas de pau, cruzou a nespereira e foi diminuindo na direção das ondas num chiar de dobradiças empenadas deixando o tempo fixo desde então, dá ideia que se altera mas é o mesmo sempre e é no interior desse tempo que continuo a esmorecer devagar com o motor do gato até ao fim da cauda, calando-se consoante me calo a olhar-vos.”
Na grande cadeia do ser que é a sequência dos romances antunianos, há uma densidade crescente – o autor, abrindo mão das inusitadas e barrocas metáforas de suas primeiras obras, abandonou de modo progressivo a adjetivação de seus textos. O que resta é uma escrita substantiva, povoada de objetos concretos em meio aos quais os personagens se tornam vozes cada vez mais diáfanas que se modulam ao longo de uma grande sinfonia. Mais correto, todavia, seria comparar suas páginas a partituras de jazz, com síncopes temporais, improvisos que irrompem o fluxo narrativo, frases distendidas que revelam uma tensão entre o ritmo do homem e o compasso do tempo, e refrãos que marcam a melodia dos capítulos, coerindo os sons expansivos à uma frágil unidade. A comparação não é inédita – Catarina Vaz Warrot já havia analisado num ensaio – e tem muito a dizer sobre a composição de Lobo Antunes, que assim como o estilo musical, traça paralelamente o caminho do cerebralismo e da impulsividade.
Curiosamente, o romance Para Aquela Que Está Sentada no Escuro À Minha Espera é dividido em três partes denominadas respectivamente primeiro, segundo e terceiro andamentos. Trata-se de uma grande sinfonia dissonante composta de memórias que se imbricam com a imaginação, desvarios causados pelo estado mental da atriz e suas expectativas que logo são abortadas pelas circunstâncias.
O que se percebe na obra é que o romance total que o autor confessa buscar em suas entrevistas e crônicas começa a ser delineado no grande ciclo de sua obra. Nas palavras de uma de suas recentes crônicas, Lobo Antunes “escreve até que as pedras se tornem mais leves que a água”, até que algumas impressões e relíquias de nossa vida humana sejam salvas do naufrágio.
É um projeto abrangente em sua inteireza: tanto nos seus espécimes individuais – os romances – quanto na unidade imagética que formam quando agrupados como um grande arco literário. E este arco se estende sobre as mais inimagináveis contingências de uma nação que no último século foi perpassada por convulsões sociais, e abarca condições antitéticas da vida humana. Assim, de um livro de estreia (Memória de Elefante, 1979), cujo próprio título denuncia o diagnóstico nietzschiano de que o europeu é “um homem doente de história”, o autor nos conduz agora a uma memória cada vez mais exangue, que se esvai a cada sentença. Também em seu primeiro romance, nos guiou pela noite de intemperança de um homem que se recusa a amadurecer; presentemente nos imerge nas marcas de senilidade de uma mulher.
Ora, a protagonista é, em certos aspectos, adumbrada no antepenúltimo romance do autor, Caminho Como uma Casa em Chamas (2014), em que cada capítulo descreve as agruras não exatamente dos personagens, mas dos apartamentos de um edifício em ruínas. Cada um deles moradores miseráveis que são metonímias de um Portugal esfacelado, artefatos do “último império”: retornados da guerra em Angola, judeus refugiados, dipsomaníacos, burocratas, ex-torturadores da ditadura salazarista etc. No apartamento “terceiro direito”, todavia, reside uma atriz decadente e afetada pela demência, que concebe, mais do que rememora, dias idos e célebres. Isto nos mostra que, em Lobo Antunes, as personagens são encaradas como embriões que podem e, de fato, são reaproveitados em seu universo literário.
Retomando a ideia subjacente à crônica anteriormente citada, Lobo Antunes, afinal, confessa: “não são romances o que faço, não conto histórias, não pretendo entreter, nem ser divertido, nem ser interessante: só quero que as pedras se tornem mais leves que a água”. Nesse último livro, contemplamos, mais do que deciframos, uma profusão de reminiscências candentes, ilusões que ora vingam, ora definham, compondo a textura fibrosa daquilo que se chama vida. Não há um desfecho – ao menos não no sentido formalista de resolução dos conflitos –, somente uma modulação no ritmo e no colorido da voz. A incompletude e a dispersão são a forma mais apropriada de um autor que, numa tarefa de Sísifo, busca alocar a vida entre as capas de um livro: “porque nada é do meu tempo agora, tudo novo, maior, o que fui cinzas, o que desejei cinzas, pozinhos dispersos que o vento dissolveu, talvez só a lebre continue muito depressa canavial fora pulando o riacho que levou sumiço há milênios”.
Após o súbito clarão da consciência, talvez seja a morte – temática em que Lobo Antunes se lança cada vez mais obsessivamente – que esteja sentada no escuro à nossa espera.