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‘Epigrama de Stálin’
O passo a passo da tradução de um poema de Ossip Mandelstam
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por Astier Basílio
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Nós vivemos sem estar mais sentindo o país,
a dez passos não se ouve o que nossa voz diz.
Meia prosa e já basta que lembrem
o matuto da serra no Kremlin.
Os seus dedos são vermes sebentos, obesos,
as palavras, fiéis, como a marca dos pesos.
Bigodões de barata sorrindo
e os coturnos brilhando de lindo
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Mas lhe cerca a ralé dos chefes cabeçudos
e ele brinca com os seus zumbis de faz-tudo.
Um que chora, um que mia e soluça.
Ele bichopapoa e cutuca,
Como casco de ferro, ato em ato ele acerta:
em um olho, em um cílio, em um púbis, na testa.
Toda pena de morte — uma amora,
peito largo de quem vem da Geórgia
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1933
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1933
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O poema, que praticamente condenou Ossip Mandelstam (1891–1938) à morte, é composto de duas estrofes de oito versos cada. Em ambas, se encenam tensões dicotômicas. Na primeira oitava, temos o povo, cujo discurso não é ouvido, nem a um raio de seis metros, mas caso fale algo contra o governo, seus sussurros serão esquadrinhados e reportados ao montanhês do Kremlin, uma figura diabólica com dedos de verme e bigodes de barata; na segunda oitava, temos este mesmo monstro a subjugar não só as feras que o rodeiam, mas também a população como um todo.
Traduzi assim o primeiro verso: Nós vivemos sem estar mais sentindo o país. O “Nós vivemos” é uma apropriação parodística de Mandelstam de palavras de ordem e slogans oficiais soviéticos dos anos 1930: “Vivemos no país da ditadura do proletariado”, “vivemos em um país que unificou muitas nações em único todo, num único organismo vivo”, “vivemos em um país no qual a classe trabalhadora pôs para si a difícil e dura tarefa: destruir todas as condições que distorcem a vida das pessoas desde sua infância”, etc. Tais exemplos e esta alusão intertextual estão presentes em um belo ensaio escrito por Ilya Vinitsky, professor do Departamento de Línguas e Literatura Eslava, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. A este texto retornarei em momento oportuno.
Cheguei à composição final para tradução do primeiro verso, após retrabalhar uma versão inicialmente pronta, meses antes. Havia escrito: “… sem ter mais noção do país”. Porém, a necessidade de trazer a palavra “sentir” foi imperativa. O que pesou decisivamente nesta alteração foi saber que Mandelstam havia praticamente copiado a estrutura vérsica de seu epigrama de uma balada escrita em 1871 por Alexei Konstantinovich Tolstói (1817-1875), “Potok – O Bogatyr” (?????-????????), composição que se insere na tradição da poesia engajada do século XIX , que buscava no folclore eslavo suas fontes.
Na balada de Tolstói é contada a história de um guerreiro, Potok, que comparece a um baile no qual está presente o próprio czar Vladimir. Entretido com a dança, não percebe os elogios que lhe tece o soberano, tampouco nota a retirada de todos os convidados da festa. Fatigado pela dança, desaba num sono profundo, vindo acordar no futuro. É quando se inicia uma viagem pelo tempo e Potok conhece os séculos vindouros e, então, se constata que a situação na Rússia tende sempre a piorar.
Todavia, Mandelstam não apenas se valeu do desenho estrófico de seu antecessor, Tolstói. Há diálogo intertextual. Quem flagrou esta conversa foi um grande especialista da obra mandesltamiana, Omry Ronen (1937-2012), em seu livro “Poética de Ossip Mandelstam” (??????? ????? ????????????, 2002). Há várias citações. A que me pareceu mais significativa está na sétima estrofe, única que traduzi, com o fim de ilustrar este ensaio:
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Através da janela real, no dossel bangalô,
Luminosas estrelas suspiram ao ver
Como a sombra no branco da parede andou
Pra frente, pra trás o quadril a mexer.
O cansaço chegou a Potok só ao sol nascente
seus pés ágeis, debaixo de si, já não sente
Como o feno no solo a cair,
Cinco séculos ele irá dormir.
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Aqui a forma fixa é moldada em função de dar corpo ao conteúdo. Em Tolstói, a variação de um verso mais longo para um mais curto, simula o ritmo da dança de Potok e dos avanços de sua viagem no tempo. Já Mandelstam imprime um andamento de marcha militar, ao descrever uma nação subjugada pelas botas lustrosas de um ditador.
Ao descrever o sentimento de seu personagem, a anestesia resultante do alongado período de dança, Tolstói usa a expressão “??? ?????” (“Pod soboy”), a significar “debaixo de si”, “sob si mesmo”, que é a mesmíssima usada por Mandelstam: “?? ?????, ??? ????? ?? ??? ??????”. A pequena diferença de letras se dá pela declinação do caso.
Do primeiro para o segundo verso, Mandelstam encena uma contradição. Se o povo, “o nós”, não sente o país sob os pés, o que configura um estado de letargia, por outro lado, este mesmo povo profere um discurso, elabora uma fala. E há que se destacar um ponto importante: tal fala não é ouvida nem a dez passos. Mas qual a razão de Mandelstam usar, precisamente, esta cifra? Quem respondeu a esta curiosa questão foi Yuri Freydin, psiquiatra, crítico literário, e um dos presidentes da Sociedade Mandelstam. Em um debate sobre este poema, Freydin reconheceu a estranheza dos “dez passos”, número este que poderia muito bem ser substituído por vários outros, a caber no ajuste necessário para os dois pés da contagem métrica. “É uma coisa meio estranha e hoje em dia nem é mais atual. É a distância para se fazer aferição de som. Por exemplo, na admissão do serviço militar. A qualidade do som era medido em seis metros, ou seja, dez passos”.
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Um aspecto importante na formação de Mandelstam foi a música. Sua mãe, Flora Osipovna (1866-1919) foi professora de música. Raramente, Mandelstam escrevia seus poemas. Seu método de composição era oral. Criava inicialmente uma melodia. Andava enquanto repetia os sons a formar sua estrutura musical. Só depois disso é que punha os versos em cima, como um compositor que fizesse primeiro a música e depois a letra de uma canção. Seu epigrama, com alternância de dísticos longos e curtos, metaforicamente, cria a atmosfera de uma fuga, que, conforme o dicionário é uma “forma de composição contrapontística, na qual as várias vozes se imitam sucessivamente ao longo do discurso musical”. Mas os contrapontos não são evidenciados apenas no aspecto formal, com os versos que se dobram em metros maiores e menores. O conteúdo traz também tensão dualística.
Como uma costura imagética e sonora, Mandelstam apresenta a letargia da nação que não sente o país sobre si, mas cujo discurso é proferido e ignorado, em até um raio de dez metros, desde que não seja qualquer coisa contra o governo, porque aí até os balbucios são esquadrinhados. A câmera do poeta, que inicialmente focaliza no povo, como que no encerramento da primeira oitava, fecha o seu quadro no chefe político que ocupa o centro do poder russo. O movimento vai do maior (povo, fala, discurso) para o menor (meia prosa, informantes, Stalin). Aqui vale a pena ressaltar um dado importante na história da criação deste poema. Inicialmente, o terceiro e quarto versos possuíam uma redação bem mais agressiva:
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Só se ouve o montanhês do Kremlin —
assassino e homem lutador.
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Ao contrário de “?????????” palavra dicionarizada, usada inclusive por Pushkin, “???????????” é uma fusão de dois termos: “?????”, cujo equivalente seria “homem” (talvez o mais próximo seria “macho” por acentuar o caráter de força e brutalidade) e “?????” que pode ser traduzido como “lutador”. Ao retrabalhar seu poema, e dar-lhe a forma final, Mandelstam continuou guiando-se pela noção de contraponto, tecendo sua fuga. Trago aqui uma tradução não artística deste dístico:
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mas onde meia palavra é suficiente,
lá vão se lembrar do montanhês do Kremlin.
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Nos meios literários russos, teve ampla repercussão um artigo escrito pelos linguistas Alexander Konstantinowitsch Scholkowski e Lada Gennad?evna Panova no qual se especula que Mandelstam, ao imprecar contra Stálin, teria lançado mão de um recurso politicamente incorreto. Eles chegam a dizer, inclusive, que no famoso poema é perpetrado uma espécie de “ataque racista”. Traduzo um trecho do artigo: “A ideia é mais ou menos a seguinte: nosso Kremlin, e por extensão nossa língua russa […] foi invadido e profanado por bárbaros, tártaros e alguns caipiras asiáticos”.
Sem entrar no mérito do que é defendido, visto a complexidade que seria falar em politicamente correto sob a percepção russa, há que se reconhecer a justeza de um aspecto abordado: o original russo comporta uma eloquente carga ofensiva, que está relacionada diretamente com a referência à origem de Stalin. Por mais que para nossa sensibilidade ocidental o que talvez possa chamar mais atenção sejam as imprecações de viés grotesco, como as partes do corpo comparadas com coisas asquerosas como vermes gordurosos e baratas, a ofensa étnica é tão ou até mais injuriosa quanto. Não à toa, Pasternak, escritor de raízes judaicas, chegou a dizer à esposa de Mandelstam, Nadezda Yakovlevna (1899-1989): “como ele pode escrever tais versos sendo judeu!” Em outras palavras, como alguém que sofria tanto preconceito por sua origem étnica poderia valer-se do mesmo reprovável expediente.
Ao mediar um debate sobre Mandelstam, realizado no Centro Sakharov, o historiador Nikita Petrov expressou opinião que corrobora este posicionamento de ofensa étnica. “Eu diria que ele (Stálin) poderia se ofender apenas com um verso, o último: ‘o largo peito ossetino’. Aqui realmente é algo sério e é possível se sentir ofendido”. Chamar Stálin como originário desta região mereceu, em uma aula, uma espécie de defesa, por assim dizer, do escritor Dmitry Bykov, alguém de viés liberal, sem qualquer vinculação com o camarada georgiano. “Com Ossétia Stálin não tinha qualquer tipo de relação”.
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Quem chamou a atenção para ligação quase umbilical entre os termos “montanhês” e “ossetino” (ou seja, proveniente de Ossétia, região montanhosa da Geórgia), presente no último verso, foi o professor do Departamento de Línguas e Literatura Eslava, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, Ilya Vinitsky, a quem nos referimos anteriormente. Não à toa o título de seu ensaio é: “Por que Mandelstam para ofender Stálin o chamou de ossetino”. A leitura deste escrito foi decisiva para minha escolha em traduzir “?????” (gortsa) não como “montanhês”, mas como “matuto da serra”.
A meu ver, traduzir ????? (“gortsa”) por “montanhês” se perderia muito do tom de ultraje que é evocado no original. Para termos uma ideia, do que poderia representar para nós tal insulto, seria preciso fazer um exercício de imaginação, no qual, nos anos 1960, um poeta com o intuito de ofender o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente do ciclo da ditadura militar, o chamasse de “Paraíba” ou “Baiano” e ainda fizesse chacota das características físicas dele, como a cabeça achatada.
A tessitura em contraponto prossegue. Se por um lado, os dedos de Stalin lembram vermes gordos e gordurosos, por outro, o que ele fala não só tem peso como é algo fiel. O retrato é contraditório: se a mão do ditador é repugnante, há precisão e fidelidade no que ele diz.
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Os seus dedos são vermes sebentos, obesos,
as palavras, fiéis, como a marca dos pesos.
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Aqui, neste trecho, eu presto homenagem ao mestre e um dos pioneiros da tradução da poesia russa no Brasil, Augusto de Campos, e valho-me das mesmas rimas usadas por ele ao traduzir este poema de Mandelstam (“Seus dedos grossos são vermes obesos/ Suas palavras caem como pesos”).
Para mim, a principal dificuldade aqui foi escapar do redundante, posto que “????” é aquele peso usado na musculação, de formato esférico, com entrada para encaixe na mão, ao passo que “???????” seria algo como “muito pesado”. Teríamos, portanto, numa tradução literal algo como: “Seus gordos dedos, como vermes, gordurosos/ mas suas palavras, como pesos pesados, verdadeiras”.
Prosseguindo com sua fuga, Mandelstam desenvolve outro contraponto. O grotesco do bigodão de barata é sucedido pelo apolíneo das botas bem lustradas.
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Bigodões de barata sorrindo
e os coturnos brilhando de lindo
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O curto dístico final, da primeira oitava, é motivo de certa discussão por conta de uma pequena variação. O registro dos “bigodões de barata” varia para “olhões de barata”. Embora quando foi interrogado nos porões da Lubianka, sede do serviço secreto russo, Mandelstam tenha escrito “olhões” (???????), optei pelo registro anterior pela razão de ter se consolidado com mais força no imaginário dos leitores russos. Lembro de assistir a um documentário sobre Mandelstam no qual um diretor de cinema, Karen Shakhnazarov, falava que sempre que via uma foto de Stálin ou imagens suas na televisão se recordava, imediatamente, dos “bigodões de barata”.
Passemos agora para a segunda estrofe. O que se nota, de imediato, é a mudança de foco. O “nós” se desloca para um “eles”. E como bem atesta os já citados Alexander Konstantinowitsch Scholkowski e Lada Gennad?evna Panova, dentro da tradição poética russa, o tom lírico se transmuta em satírico. Nesta segunda oitava, há uma espécie de chave para compreensão do poema. Trata-se de um neologismo: “???????” (babachit). O texto de Mandelstam traz algo de difícil significado. Mesmo para os russos. Desde o princípio, imaginei que se o leitor do original, via-se diante de uma palavra inventada, se fazia imprescindível encontrar, em português, uma solução que passasse também pela criação de um vocábulo novo. Mas qual? Era preciso ao menos ter uma ideia do que “babachit” poderia significar.
Houve esforços de pesquisadores para elucidar o termo. Com muita frequência são mencionadas as especulações do letão Evgeni? Abramovich Toddes (1941-2014), para quem “babachit” seria “falar a respeito”, “responder”, além de “comandar, “dominar”, mas cujas raízes estariam no idioma turco-tártaro “babay” (“avô”). O crítico literário estabeleceu ainda uma relação do termo com a palavra “babay” também usada para designar um personagem do folclore eslavo, um fantasma evocado pelos pais com o intuito de se fazerem obedecidos pelos seus filhos, algo como o nosso “bicho-papão” ou a “Cuca” (“nana neném, que a Cuca vem pegar…”). Por fim, Toddes também viu a presença de outro personagem importantíssimo dos contos de fadas russos, a Baba Yaga.
A dimensão da atmosfera de pesadelo criada por Mandelstam, na segunda estrofe, acessou profundas raízes do inconsciente russo. Quem conseguiu observar isto com precisão foi um dos grandes estudiosos da poesia russa, Mikhail Gasparov (1935-2005). Ele escreveu que “babachit” é um “magnífico verbo inexistente”, que se situa como que ao fundo das “reminiscências do sonho de Tatiana”, personagem de Eugenio Oneguin, de Pushkin. A referência está no capítulo cinco, da estrofe XI até a XXI. Nesta passagem, Tatiana é conduzida por um urso até uma cabana, onde uma verdadeira atmosfera fantasmagórica se deslinda: um caranguejo montando uma aranha, uma caveira, de boné vermelho, em cima do pescoço de um cisne, um moinho que se agacha e bate palmas.
Ou seja, era como se, diante de uma corte de horrores, composta pelos “caciques de pescoço fino”, “meio humanos”, Stálin se avultasse como o monstro que sobrepuja as demais feras. Outra fonte decisiva para mim foi Leonid Mikhailovich Vidgof (1952–), grande especialista na obra de Mandelstam, que fez uma observação luminosa a respeito do vocábulo “babachit”. Na sua opinião, era como se “o montanhês do Kremlin falasse em ‘barbarês’, em seu dialeto meio bestial. Ele nem é mesmo humano”.
Vejamos como Mandelstam, então, descortina esta atmosfera fantasmagórica, que era a corte do Czar Vermelho, logo no primeiro dístico da segunda oitava:
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Mas lhe cerca a ralé dos chefes cabeçudos
e ele brinca com os seus zumbis de faz-tudo
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Enquanto revisava este texto, me dei conta do quanto me angustiavam algumas soluções por mim encontradas. A primeira delas, era uma tradução literal: “caciques de pescoço fino”. Desde que eu havia visto um vídeo no YouTube uma leitura deste poema, me chamaram atenção as ilustrações destes “chefes cabeçudos”. Justamente neste verso, aparecia uma caricatura de Stálin, como uma espécie de sol, rodeado por satélites macabros, retratados em caricaturas com cabeças imensas. Tal traço físico é algo bem acentuado em, por exemplo, o também georgiano Lavrenti Beria (1899-1953), braço direito de Stalin. Ou seja, o insulto de “pescoço fino”, para os russos, talvez seja o que para nós é “cabeça grande” ou “cabeça chata”.
Outro problema aqui foi a palavra “??????” (vozhdey), usada para designar os líderes, mas quem a puser no site de buscas do Yandex, principal mecanismo de buscas daqui, na parte de fotografias, verá imagens de indígenas. Se na nossa percepção o “cacique” político tem lá o seu aspecto negativo, no russo não há qualquer nuance depreciativa. Dia desses vi numa página de celebração aos comunistas, na rede social VKontakte, a mais popular aqui na Rússia, uma fotografia de Lênin, com o uso desta mesma palavra “?????” a exaltá-lo. Além disso, vários poemas de louvor a Stálin usam o mesmíssimo termo. Como acredito que dificilmente alguém escreveria um elogio a um político e o chamaria de “cacique”, resolvi alterar e trazer o termo “chefe”, que é uma palavra bem mais positiva.
Assim sendo, numa versão anterior, o dístico inicial da segunda estrofe ficou: “Mas lhe cerca a ralé, os caciques de pescoço fino/ Ele brinca com a entrega destes mortos-vivos”. O que me causava desconforto porque tais versos resultavam neutros, mornos, e o poema original não possui neutralidade nenhuma: é uma obra de ataque. Mais do que “morto-vivo”, a palavra em português que melhor se aproxima do impulso original no russo “?????????” (polulyudey) é, a meu ver, “zumbis”. Embora haja certo risco de se evocar associações com a cultura pop, resolvi bancar a aposta.
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Agora, chegamos a um dos momentos mais difíceis da tradução, o espelhamento de dois versos. Em ambos, sequências de ações marcadas por uma enumeração verbal. Mostremos o primeiro deles:
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Um que chora, um que mia e soluça.
Ele bichopapoa e cutuca,
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??? ???????, ??? ??????, ??? ??????,
?? ???? ???? ??????? ? ?????,
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Em uma das versões anteriores da tradução deste dístico, optei, devido ajuste rimático, por quebrar a sequência de verbos. Ocorre que esta mesma reiteração rítmica, este mesmo tom retórico, se reflete no dístico seguinte:
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Como casco de ferro, ato em ato ele acerta:
em um olho, em um cílio, em um púbis, na testa.
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Comparando as duas estrofes é possível verificar que estamos diante de um espelho invertido. Se, inicialmente, tínhamos um olhar que partia do maior (povo) para o menor (o Kremlin), aqui, temos o inverso: vemos a dimensão do absoluto controle exercido por Stálin que castiga do seu círculo íntimo (o menor) até o povo (o maior), nas mais variadas áreas da vida cotidiana, exemplificados na metonímia (“olho”, “cílio”, “púbis”, “testa”).
Numa tradução sem preocupações métricas e rítmicas, teríamos algo como: “Um que assobia, um que mia, um que choraminga e ele apenas ‘babatich’ e cutuca”. Para o neologismo mandelstamiano, inicialmente criei o verbo “papafigar”. E qual não foi minha surpresa ao verificar que o personagem Papa-figo, de onde eu inventara meu verbo, era uma referência do folclore predominantemente conhecido em apenas três estados brasileiros: a minha Paraíba, Pernambuco e Bahia. “Ele só papafiga e cutuca”. Embora soe mais bonito e traga mais mistério, o que poderia dar uma semelhança no efeito causado na leitura do original, tive que buscar outro neologismo, a partir do folclore brasileiro e de abrangência mais ampla.
Minha história com o idioma russo começou em fevereiro de 2017. Inicialmente, fiz um ano e meio de curso pago no Instituto Estatal Pushkin, em Moscou, e depois obtive uma bolsa do governo russo para um mestrado, do qual um ano escolar foi dedicado apenas ao estudo do idioma, na cidade de Petrozavodsk, na Carélia. Optei por me transferir e cursar o mestrado em literatura, no mesmo instituto moscovita onde iniciei meus estudos.
Minhas tentativas de tradução se deram, no ano passado, quando estava enfurnado numa dacha, em Vologda, terra do poeta Varlam Shalamov, me pondo a salvo da pandemia, folheando uma coletânea soviética. Embora como poeta sempre tenha prezado pelo uso das formas fixas, eu o fazia de modo intuitivo. Herança de meu pai, repentista. Todo meu repertório métrico era oral. Espontaneamente, o professor e tradutor Rafael Frate, ao ver algumas daquelas traduções, me estimulou. Mesmo com os erros, a inobservância ao sistema métrico russo, via alguma vocação e mais do que isso, me orientou e apontou sugestões importantes. No começo de 2021, eu o contactei para que tivéssemos encontros regulares como aulas, nas quais eu trazia minhas traduções, elas eram corrigidas e nós discutíamos o processo. O primeiro poema que trabalhamos foi justamente o “Epigrama de Stálin”, bem como o que mais consumiu encontros até hoje. Chamo-o aqui de “epigrama” mais em sua dimensão metafórica, como o fizeram a própria esposa de Mandelstam, Nadejda Iakovlevna, guardiã de sua obra, entre outros, mesmo não o sendo, se nos ativermos à classificação estrita do gênero.
Iniciei com Frate um trabalho de tutoria que se mantém até hoje. Sempre que possível nos encontramos e analisamos o material traduzido, não apenas de Mandelstam, mas de outros poetas com os quais venho trabalhando. Não foram poucas as vezes em que fui presenteado com sugestões salvadoras e iluminadas. Em 10 de março, enviei uma nova versão a Rafael que me respondeu: “acho que temos um poema”.
Desde que, por assim dizer, fechamos a tradução, todo este tempo continuei lendo, vendo palestras e seminários sobre Mandelstam. Meses depois, ao reler o “Epigrama” não estava feliz com alguns trechos. Havíamos encontrado uma saída para o “babatich” que, ao invés de colocar o neologismo em cena, como um problema, antes o resolvia. Era como se naquele trecho, a tradução facilitasse, quando no original, Mandelstam colocava para seus leitores um enigma. Foi quando surgiu o “bichopapoa” que, se por um lado, não traz todos os múltiplos sentidos do original, ao menos arrisca alguma estranheza.
Voltando à segunda estrofe do poema, eis que surge um dos momentos de maior grandeza e maestria. Quando nos deparamos com o momento em que Mandelstam faz com que a poesia atinja as dimensões do absoluto. É fundado um território de magia e beleza, mas, infelizmente, é praticamente impossível reproduzir toda esta conjugação entre força, beleza e violência, em outro idioma.
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Como casco de ferro, ato em ato ele acerta:
em um olho, em um cílio, em um púbis, na testa.
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Analisemos, de início, a estrutura sonora. No original, há uma sequência de sons semelhantes. O ‘k’ cavalga-se espraiando suas pancadas: “Kak podkovu, kuyet za ukazom ukaz”. Numa tradução não artística teríamos algo mais ou menos assim: “como ferradura, de um decreto se forja o decreto”. A seguir, temos o trecho que mais me deu trabalho. Aqui a aliteração se mantém pelo pronome “a quem” “????” (Komu). A arquitetura fônica imita, justamente, algo como uma sequência de bofetadas. Vertendo ao português este verso sem preocupações estilísticas, teríamos: “Em alguém (se bate) na virilha, em alguém (se bate) na testa, em alguém (se bate) na sobrancelha, em alguém (se bate) nos olhos”. Além de mostrar a amplitude dos castigos impostos pelo regime totalitário, mais uma vez, Mandelstam bebe nas fontes orais. Desta vez, vale-se de um provérbio: “Não na sobrancelha, mas no olho” (“?? ? ?????, ? ? ????”, “Ne v Brov’, a v glaz”). A lenda diz que a origem do termo vem de um episódio em que um cossaco teria atirado uma flecha na sobrancelha do inimigo, vindo a desculpar-se com o czar, prometendo que da próxima vez acertaria no olho. A expressão, utilizada ainda nos dias de hoje, significa exatidão, precisão. Usada também quando alguém faz um comentário certeiro. O sentido subterrâneo do provérbio é impossível de traduzir. Embora tenhamos a expressão equivalente “na lata”, não há qualquer dito popular semelhante em nossa cultura.
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Por fim, chegamos ao último dístico, que encerra com um final abrupto e estranho inclusive para os próprios russos. Mandelstam escreve, literalmente, o “peito largo ossetino”. Os ossetas são um povo, com língua própria, que vivem no Cáucaso, região montanhosa, na planície do Leste Europeu, que delineia a fronteira entre a Ásia e a Europa e se estende pelo território da Rússia, Geórgia, Azerbaijão e Armênia. A adjetivação do peitoral largo vai encontrar referência na iconografia russa do século XIX, começo do século XX, quando os ossetas eram representados desta forma: cinto de balas com cartucheiras cruzando o peito, sabre no quadril esquerdo e uma adaga, além de uma pistola. Tal descrição está numa gravura presente em uma dissertação de 1890 chamada “Antropologia do Cáucaso – Ossetas”.
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Esta informação está presente no ensaio que mencionei antes, “Porque Mandelstam para ofender Stalin o chamou de ossetino”, de Ilya Vinitsky, no qual são rastreadas as referências mais diversas relacionando o ditador soviético ao povoado montanhoso como a nota feita pelo crítico literário Alexander Mets na qual se dizia que o verdadeiro sobrenome de Stalin, “Dzhugashvili” significaria literalmente “filho de ossetino”
Como possível indicação a Mandelstam, para a imagem do “peito ossetino”, Vinitsky apresenta um romance, escrito por um dos maiores escritores georgianos no primeiro quartel do século XX, Mikhail Javakhishvili (1880 -1937), cuja tradução para o inglês foi: Jaqo’s Dispossessed. A obra foi escrita após Revolta de Agosto, de 1924, quando o levante nacionalista georgiano foi esmagado pelo poder soviético que, sob Stálin, havia comprimido poucos anos antes em uma só unidade Geórgia, Armênia e Azerbaijão, na chamada República Socialista Federativa Soviética Transcaucasiana, fundada em 1922 e que durou até 1936.
O personagem principal do romance de Javakhishvili é Teimuraz Khevistavi, intelectual e ascendente da nobreza, que após a Revolução de Outubro além de perder sua fortuna e virar mendigo, vê o seu ex-funcionário Jaqo estuprar sua mulher, Margot, vindo a casar-se com ela posteriormente. O povo da região organiza, por sua vez, uma segunda revolução na qual é feito o “despojo” de Jaqo, cuja origem é revelada logo no início da obra: “gigante-ossetino”. O livro foi traduzido e editado para o russo, pelas vias oficiais, em 1929.
A descrição física do corpulento Jaqo beira o grotesco. É comparado a um urso. Possui dedos sujos, lábios gordurosos. Embora eu traduza da tradução em russo, dá para se ter uma ideia da atmosfera bestial evocada. Na cena do estupro de Margot, o narrador usa termos animalescos para se referir ao personagem como “pata” e “relinchar”. Há uma passagem em que Jaqo grita e bate em seu “largo peito”. E aqui a expressão da tradução em russo é “? ???? ??????? ?????” (v svoyu shirokuyu grud’) a mesmíssima usada por Mandelstam no último verso do seu poema.
“Obviamente, que o correlato entre Jaqo Dzhugashvili (sobrenome do personagem) com Joseph Dzhugashvili (sobrenome real de Stalin) (observemos a paronímia ‘Dzhako/ Dzhuga-“) era uma espécie de lugar comum nas discussões da intelectualidade georgiana em fins da década de 1920 […]”, escreve Vinitsky, bem como menciona que nos círculos intelectuais da Geórgia também eram especuladas as origens de Stalin como provenientes das montanhas da Ossétia.
Ilya Vinitsky enumera as referências feitas pela “oposição chauvinista”, dos emigrados russos, relacionando Stalin à Ossétia. Optei por traduzir uma estrofe do que me pareceu ser o exemplo mais eloquente. O serviço secreto russo (à época NKVD, predecessora da KGB) atribuiu a Alexei Vasilyevich Repin, parente de um importante pintor da época, este poema:
…………………
Quem leva o país para a bancarrota?
E quem quarentena decreta,
Crianças às presas de Baal, quem bota?
o honorável Stálin de Ossétia,
E com todas as classes liquida,
Tal facção de chefes somente
Às massas engana, que fazem corrida
até sua morte que virá urgente.
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Mas o “peito ossetino” não era o único mistério do dístico abrupto. O que significaria a referência à “framboesa” “??????” (“malina”), como reação aos decretos capitais expedidos pelo comandante da União Soviética? Em sentido figurado, “framboesa” significa algo agradável, delicioso, muito bom. Há várias expressões idiomáticas relacionadas com a palavra, como por exemplo: “não é serviço, mas framboesa”. Outro sentido que pode ser dado à “framboesa” é o de conotação sexual. Bastante popular é a expressão “cair no meio do campo de framboesas” “????? ? ????????” (“popal v malinnik”) , utilizada quando num grupo só de moças há apenas um rapaz. Diz-se que ele “caiu no campo de framboesas”. O mesmo se pode dizer de uma moça que se vê cercada por homens.
Por fim, “framboesa” é também uma gíria antiga na bandidagem russa, que se refere ao local onde são ocultados os produtos de roubo e furto, bem como apartamento, ou local, onde é feita uma execução ou onde o corpo de uma vítima é abandonado — o que no Brasil chamamos de “desova”.
Optei por substituir “framboesa” por “amora” tendo em vista que esta palavra, além do sentido do sabor, também pode evocar o “amor” pela semelhança sonora, o que poderia oferecer mais associações do que uma tradução mais literal.
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Toda pena de morte — uma amora,
peito largo de quem vem da Geórgia.
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Com relação ao último verso, foi determinante ter sabido que Mandelstam escreveu uma versão anterior, muito mais rude: “e um largo cu georgiano” “? ??????? ???? ???????” (“I shirokaya zhopa gruzina”). Mais uma vez, o poeta operou na tessitura do contraponto. Se comparamos as duas redações, temos: 1) uma palavra de baixo calão (“cu”), bem agressiva, a descrever uma parte do corpo, sendo adjetivada etnicamente (“georgiana”), sem qualquer senso de ofensa 2) uma palavra neutra, (“peito”) a também designar uma parte do corpo, sendo adjetivada etnicamente (“ossetino”), este sim bastante ofensivo.
Na minha tradução, optei por recuperar um trecho da versão anterior, “da Geórgia”, tendo em vista que o nome do país onde Stalin nasceu é muito mais familiar ao leitor brasileiro, estabelecendo as marcações étnicas pretendidas no original. Ossétia é um termo que não tem a mesma força associativa no nosso imaginário e exigiria uma nota de rodapé, algo que inclusive Augusto de Campos chegou a fazer na tradução deste poema, publicada na Antologia da Poesia Russa Moderna.
Por fim, com relação ao que poderia soar como xenofobia ou racismo por parte de Stalin, compartilho aqui o pensamento de Ilya Vinitsky, que tantas vezes citei e que me foi decisivo para as escolhas feitas por mim nesta tradução. Segundo ele, Mandelstam, com seu ataque étnico, se diferencia dos versos chauvinistas publicados pelos imigrantes anti-Stalin, tendo em vista que visava à desconstrução do mito do “maravilhoso georgiano”, expressão bem conhecida de Lênin ao se referir ao seu sucessor. O que Mandelstam queria era pôr em evidência que Stalin não passava de “um impostor patético” e que ele não era o “maior filho do povo georgiano”, mas sim alguém que lhe era alheio. O mesmo expediente — lembra Vinitsky — foi usado em odes panfletárias russas do século XIX contra Napoleão, que não era francês, mas proveniente da Córsega.
Praticamente todas as referências que li e vi são unânimes em asseverar que Mandelstam escreveu um poema não contra o regime soviético, mas contra Stalin. Poeta apolítico, Mandelstam foi tomado por angústia quando viu com os próprios olhos a devastadora fome dos camponeses na Crimeia, o que o fez escrever um poema sobre esta situação. Tal composição, junto com o “Epigrama”, veio a ser arrolada como crime no inquérito que foi aberto contra ele. Nadejda Yakovlevna escreveu que seu marido ficou amargurado com o que havia presenciado e sentiu que “era preciso fazer alguma coisa”.
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O poema foi um grande ato de coragem, próprio da tradução russa que sempre viu em seus poetas uma espécie de profetas que não temia falar a verdade, nem que isso desagradasse aos czares. “Está lamentando o quê, — falou ele — somente aqui se respeita poesia, por ela matam. Posto que em lugar nenhum se mata por causa de poesia”. Foi isto o que Mandelstam disse à sua mulher e ela o registrou em seu livro “Recordação” (????????????), que é de onde traduzo.
Com Mandelstam ficou a lição de que a poesia será sempre maior do que a tirania.
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Ensaio dedicado ao amigo José Nêumanne Pinto, que, na nossa Campina Grande do começo do século, foi quem primeiro me falou de Ossip Mandelstam.
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