por Pedro Gonzaga
Perder a fé na humanidade é fácil. Não temo dizer que isso aconteça ainda na primeira infância, quando percebemos que a maldade não precisa de pretextos, ou quem sabe um pouco depois, quando reconhecemos os pretextos de que ela se vale. Depois disso, é possível ter no máximo uma fé de segunda mão, porque talvez seja pior viver na total descrença de um bem comum, uma fé feita de tolerância às evidências negativas, de um pesar constante em uma balança constantemente desregulada.
E me parece importante não se excluir da equação. Também em nós tudo fracassa. Uma humanidade feita à minha imagem e semelhança seria o pesadelo de um episódio de “The Twilight Zone”, em que o personagem, depois de declarar que o mais medonho dos males eram as outras pessoas, vê o mundo todo composto de réplicas dele mesmo. Por isso, há muito, resolvi me cercar de artigos de fé, aqueles a quem temos a sorte de amar, aqueles cuja dádiva inexplicável é que nos amem, os livros. Livros dos mais variados assuntos, mas livros humanos, em que vaidade e altruísmo, importância e desperdício se amalgamem. E que deem conta da difícil experiência de estarmos aqui, razão que me fez ver na poesia um caminho como leitor e também escritor. Além disso, procuro buscar poetas em todos os tempos e geografias, um modo de erguer a milenar lanterna. A incomparável poesia chinesa do século 8, os poloneses do século 20, os romanos da era imperial, a voz solitária de Kaváfis, nossos geniais brasileiros da geração de 30. Tal variedade de gosto muitas vezes me fez ser alvo de chacota na roda dos amigos – a humanidade não vale nada –, mas também permitiu, modestamente, que eu desenvolvesse o blogue Poesia em Casa, onde traduzi e traduzo, às vezes em segunda mão, essas fidedignas vozes humanas que fazem a humanidade valer a pena. Hoje deixo com vocês Faiz Ahmed Faiz, o poeta indiano que deu nova vida no século passado à longa tradição do Ghazal, forma poética em dísticos comum ao árabe, ao persa e ao urdu, que equivaleria de algum modo ao nosso soneto.
Lembrança
No deserto da solidão, minha adorada, tremem
As sombras de tua voz, a miragem de teus lábios;
Entre a relva e as cinzas da ausência florescem
Neste deserto, as rosas e os jasmins de nosso amor.
Graças a tua proximidade, o ardor de tua respiração parece se erguer
Queimando sem chama em seu perfume, delicadamente
Em algum lugar ao longe, para além do horizonte, brilha
O suave orvalho caindo gota a gota de teus olhos.
Neste instante a memória de ti golpeia meu coração, amorosamente
Mão sutil a acariciar a face com delicadeza,
Parece, ainda que seja a manhã do exílio,
Que o dia da partida termina, e começa a noite da felicidade.