por Fabrício Tavares de Moraes
If you knew time as well as I do, you would not call it – it’s Him, disse o Chapeleiro Louco. Ou, em vernáculo, na tradução de Maria Luiza X. de A. Borges: “‘Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu’, disse o Chapeleiro, ‘falaria dele com mais respeito’”.
Talvez deveríamos nos preocupar pelo fato de que quanto mais nossos cronogramas se mostram como grelhas fatiando em nacos uniformes a massa de nosso tempo biológico, mais nosso discurso acerca do tempo se assemelha ao do personagem de Carroll.
Um dos muitos males atuais, porém, é precisamente a fossilização do tempo, as declarações e mais declarações sobre sua marcha invicta, os lugares-comuns da brevidade da vida que, em algum momento, foram embriões tenros de experiência.
Daí, numa estranha forma de mitridatismo, abrandamos nossa sensação de perda, de fugacidade, com pequenas doses de tempo perdido. E aquele que se propõe a redigir algumas notas ou apontamentos sobre a irrevocabilidade do tempo se arrisca ao epíteto de perdulário, já que dissipa seu próprio quinhão temporal, ou ao de usurpador, quando arrebata o quinhão alheio.
Isto, todavia, nos surpreende na medida em que a literatura ainda se arrisca nesse território cercado pelo arame farpado do cinismo, e, a despeito disso, faz-nos quase infalivelmente imergir numa temporalidade distinta. Edgar Allan Poe dizia, por exemplo, que, no domínio da prosa, o conto é o gênero que desfere o impacto mais forte sobre o leitor, já que, sendo conciso, promove a imersão total do leitor.
Por conseguinte, a extensão superior do romance dilui a fusão de nossa consciência com o universo ficcional, visto que o ritmo de leitura é escandido por dias, quando não semanas, necessários para a tarefa. Em contrapartida, porém, os grandes romances também exercem um poder de síntese sobre nossos dias; seus conflitos e resoluções servem de epígrafe às nossas rotinas, e sua cadência, por fim, se infiltra nas brechas de nossos afazeres.
Hans Meyerhoff e Adam A. Mendilow diziam que, de modo geral, toda a tradição romanesca moderna fundamentava-se na tensão entre temporalidades distintas – a subjetiva, a física ou a histórica – ou na percepção do tempo como a substância que galvaniza a identidade humana.
Assim demonstram as colossais obras de Tolstói, em especial Guerra e Paz, no qual o desdobramento do tempo é um modo de imitação do próprio cosmos, numa narrativa que espelha o ideal do “mundo-como-processo”; passando pela percepção da aridez e vacuidade da rotina em L’Emploi du Temps, de Michel Bütor; e chegando às irradiações da eternidade na história humana (ou talvez a regressão da história ao ciclo eterno) nos contos e poemas de Borges. Evidentemente, a omissão a Proust e Joyce aqui é deliberada.
Há algumas semanas, o periódico do American Psychology Association publicou o estudo realizado pelos linguistas Emanuel Bylund e Panos Athanasopoulos, cujos resultados indicam que as diferentes línguas moldam percepções distintas sobre o tempo, isto é, segundo os pesquisadores, não somente nossas línguas nativas moldam a forma como percebemos o tempo, mas também a aquisição de um novo idioma traz consigo novas possibilidades ou olhares sobre o horizonte temporal.
De certo modo, a ideia não é nova, ao menos nas Humanidades, e, pelo menos, desde as veementes exclamações de Nietzsche e, marcadamente, com a Hipótese Sapir-Whorf. Por volta de 1960, um teólogo norueguês, Thorleif Boman, publicou um estudo que, embora hoje faça a maioria dos estudiosos virar o nariz ou tergiversar, exerceu uma profunda influência não somente sobre a exegese acadêmica dos textos bíblicos, mas também na interpretação literária.
A obra, traduzida para o inglês como Hebrew Thought Compared with Greek [O pensamento hebraico comparado ao grego], versa, de maneira extremamente erudita, como as diferenças filológicas, sintáticas e mesmo morfológicas são frutos de uma cosmovisão exclusivista, e influenciam, quase determinantemente, o modo de pensamento dos povos. E isto aplicado aos polos espirituais ao redor dos quais orbita o pensamento ocidental: Jerusalém e Atenas.
Dito de outro modo, a língua nativa – para o bem ou para o mal, com vantagens e desvantagens – define as estruturas simbólicas e intelectuais do indivíduo e, consequentemente, de seu povo. Inclusive, há uma seção da obra em que Boman trata das diferentes concepções de tempo grega e hebraica, partindo da análise sinonímica dos termos para designação cronológica.
A ideia talvez tenha recebido novo impulso com a ideia subjacente ao filme A Chegada (2016), baseado no conto História da sua vida, de Ted Chiang. Na película, somos apresentados a uma linguista que, tendo dominado a linguagem de alienígenas, torna-se capaz de perceber o futuro, já que os próprios caracteres, por assim dizer, dessa língua reproduzem a noção de circularidade do tempo.
E nisto chegamos ao ponto nodal de nosso raciocínio: o que o tempo, nossa percepção dele, e a literatura têm em comum? Ora, Agostinho reúne essas questões em suas Confissões, quando lança uma ponte entre estas duas questões centrais: a primeira diz respeito à individualidade humana, pois Agostinho, pressupondo que a identidade humana se realiza verticalmente em contato com um ouvinte onisciente, desceu ao fundo de sua personalidade, descobrindo a realidade dentro de si mesmo; em segundo lugar, a natureza do tempo, indecifrável em si mesmo, e imortalizado em sua declaração: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei”.
A ponte que liga a individualidade humana ao tempo é precisamente a narrativa, a confissão, a representação da autoconsciência. A literatura, portanto, é uma das instâncias que refaz ou constrói uma ponte entre o processo temporal e a individualidade humana.
A ordenação da alma por meio da narrativa garante a sobrevivência da singularidade, impedindo-a de soçobrar no oceano da generalidade ou nos detritos históricos. Ademais, como Agostinho provou, ela é capaz de alcançar a raiz da senciência humana – o desejo profundo pela eternidade (desiderium aeternitatis).
Porém, conforme se sabe, a própria literatura está sujeita ao processo temporal, sendo, muitas vezes, soterrada ou apagada por aquilo que ela busca transcender. Portanto, se, como dizia Tomás de Aquino, a verdade é filha do tempo, segue-se que o cânone é o núcleo rarefeito de eternidade na literatura, uma ânsia de perpetuação e preservação.
E, tal como a verdade, o cânone é também filho do tempo, ainda que haja sempre espaço para obras nascidas prematuramente. Afinal, ele “não é o criado das elites”, como dizia Harold Bloom, “mas o ministro da morte”.