por Idelber Avelar*
A obra do contista, romancista e ensaísta argentino Ricardo Piglia, já conhecida no Brasil graças às traduções, artigos e simpósios a ela dedicados, continua a ser uma grande fonte de reflexão sobre a literatura. Desde suas primeiras colaborações com a revista Literatura y sociedad, ainda na primeira metade dos anos 1960, passando pelas antologias de contos La invasión (1967), Nombre falso (1975) e Cuentos morales (2003), incluindo seus vários volumes de ensaios, de Crítica y ficción (1986) a Las tres vanguardias (2016), e culminando em seus romances Respiración artificial (1980), La ciudad ausente (1992), Plata quemada (1998), Blanco nocturno (2010) e El camino de Ida (2013), Piglia sempre fez da dimensão metaliterária um componente constitutivo de sua escrita. Já no começo da sua trajetória, a revista Literatura y sociedad foi uma intervenção decisiva no campo literário argentino, deslocando a preferência até então dominante pelo realismo lukacsiano e projetando nomes como os de Walter Benjamin e dos formalistas russos Victor Shklóvski e Yuri Tynianov, que relacionaram literatura e substrato social em termos bem menos mecânicos que aqueles privilegiados pela tradição marxista do realismo socialista.
Ao longo dessa trajetória, Piglia foi também um forjador de conceitos. Há uma série de palavras que se repetem, tanto no ensaísmo como na ficção, e que delineam sua concepção de literatura. Uma delas é a própria noção de crítica literária. Em Respiración artificial (1980), talvez o mais importante romance escrito sob a ditadura militar argentina (1976-83), o jovem intelectual Emilio Renzi, alter ego de Piglia, tenta rastrear as pistas de um revolucionário do século XIX, nas quais se cifram uma série de observações sobre o próprio presente de Piglia. Nesse romance, e posteriormente em Crítica y ficción, Piglia elabora uma das definições mais sagazes que temos do que é a crítica literária. Para Piglia, a crítica seria uma forma pós-freudiana de autobiografia, a culminação da tradição inaugurada pelas Confissões, de Rousseau. Diz Piglia: “alguém escreve sua vida quando acredita estar escrevendo suas leituras. Não é o inverso do Quixote?”
Em um glossário deste autor, portanto, a definição de crítica seria: a crítica é o processo de autoalegorização de um sujeito na escrita alheia. A maneira mais produtiva de ler a crítica seria rastrear esses traços autobiográficos presentes na escolha e na análise dos textos literários. Valeria a pena ler a grande síntese da literatura ocidental que é Mimesis, de Erich Auerbach, com atenção ao fato de que ela se escreveu no exílio, em Istambul, como resposta cifrada a um nazi-fascismo que tentava excluí-lo dessa herança. Haveria que se ler, nas reflexões de Walter Benjamin sobre as fantasmagorias modernas nas passagens parisinas do século XIX, uma alegoria do próprio efeito entorpecente de uma fantasia de modernização que havia levado a Europa à barbárie absoluta. O crítico que inventa o conceito de “literatura hispano-americana” é ninguém menos que um apátrida, Pedro Henríquez Ureña, dominicano desterrado em Buenos Aires e levado a imaginar uma literatura que já não era nacional, e sim continental. Nós, críticos, ao escrever sobre um livro, estamos escrevendo autobiografia, estamos escrevendo a história de nossas vidas, mesmo que não saibamos. É Piglia o autor deste extraordinário insight.
O vínculo entre crítica e autobiografia nos leva a outra categoria central em Piglia, que não poderia faltar em nenhum glossário, a categoria de experiencia. Em Respiración artificial, Renzi admite que “no fundo não nos pode acontecer nada extraordinário, nada que valha a pena contar”. O protagonista do conto “En otro país” enfrenta-se com o mesmo vazio ao tentar escrever sua vida: “não acontecia nada, nunca acontece nada, na verdade, mas naquela época isso me preocupava”. O motor dos diários de Piglia não é, portanto, a experiência, e sim a sua crise. A falta de histórias a narrar o leva a roubar experiências dos amigos e depois inventar histórias não vividas. Do diário passa-se à ficção em sentido estrito. A ficção seria, então, uma resposta possível à banalidade da experiência. O diário ficcional se converte, para o protagonista do conto, em um lugar de produção de experiência, de tal forma que ele passa a lembrar como suas, e mais reais e verdadeiras, as experiências manufaturadas no diário, e não a banalidade da chamada vida cotidiana. Daí o postulado de Piglia de que a ideia de experiência individual já é, por si só, um efeito da literatura, um efeito bovarista, por assim dizer, que nos faz esquecer que toda experiência genuína transcende o indivíduo.
O zumbido benjaminiano aqui é nítido, e todos sabemos do interesse e da leitura cuidadosa que dedicou Piglia à obra de Walter Benjamin. Sobre o tema da experiência, o texto capital de Benjamin é o estudo da obra de Nicolai Leskov, “O narrador” (1936), no qual se formula uma teoria da crise da transmissibilidade da experiência. Benjamin notava que a volta dos soldados da Primeira Guerra Mundial não se traduzia em um enriquecimento de sua capacidade narrativa, e sim todo o contrário. A experiência se encontrava em declínio porque o vivido individual havia perdido seus laços com a coletividade. Substituída pela informação – que é sempre atomizada, à qual é, por definição, impossível perguntar “o que acontece depois?” –, a experiência já não poderia se converter em matéria narrável.
Benjamin expressa esse bloqueio na conversão do vivido individual em matéria narrável com um jogo que envolve duas palavras, ambas normalmente traduzidas como “experiência” ao português. Erlebnis é a forma substantivada do verbo leben (viver, morar). Ela é normalmente traduzida como “experiência”, mas é mais literalmente rendida como “o vivido”. Trata-se de vocábulo de história bastante problemática, que aparece abundantemente no ensaísmo dos anos 1910 e 1920 associada ao sangue, à terra, e à excepcionalidade do povo alemão. Basta conferir, por exemplo, o ensaísmo de Martin Buber desse período, encharcado de referências à Erlebnis. Na outra palavra que designa experiência, Erfahrung, ouvem-se os ecos de sua raíz etimológica, Gefahr (“perigo”). Essa é a palavra que reserva Benjamin para designar a crise da narrabilidade da experiência. Ou seja, a crise moderna da transmissibilidade da experiência seria a impossibilidade de converter a Erlebnis em Erfahrung, a impossibilidade de transformar o vivido em matéria narrável.
Ricardo Piglia é um dos escritores contemporâneos que mais incisivamente respondeu a essa crise de narrabilidade da experiência. Em vez de simplesmente aceitar o divórcio entre narração e experiência, e escrever uma literatura desprovida de conteúdo experencial (como, digamos, tentou fazer o nouveau roman francês) ou, por outro lado, escrever uma literatura que ignora o divórcio entre narração e experiência e se alimenta de um cotidiano banalizado, de pura vivência, como fazem certas versões de um pós-modernismo pop e light, a narrativa de Piglia não aceita nem ignora a crise da transmissibilidade narrativa da experiência. Ele parte dessa crise e faz dela seu próprio material. A pergunta, então, já não seria o que resta de narrável na experiência, mas outra pergunta, mais radical: em que medida a automação e a banalização da vida atingiram um ponto em que a única possibilidade de produzir experiência se encontra nas linhas de fuga que a ficção pode construir? Em que medida poderíamos pensar a ficção como zona limítrofe da experiência ou como sua própria condição de possibilidade?
Daí a insistência de Piglia em uma estratégia narrativa armada em torno do apócrifo – outra palavra que deveria estar presente em qualquer glossário desse autor. Ao distanciar o conceito de experiência de qualquer egologia, qualquer primazia do sujeito, qualquer crença romântica na unidade e na singularidade da experiência, Piglia não elimina o recurso ao problema da experiência, mas a torna irredutível ao nome próprio. Submeter o próprio – nos dois sentidos do termo, ontológico e econômico, propriety e property – à vertigem do embaralhamento de nomes, às leis do anonimato, do pseudônimo, das assinaturas falsas: aí está a grande lição que Piglia retira da obra de Borges. Isso explica a recorrência de um certo modelo sintagmático nos títulos das obras de Piglia: “nome falso”, “respiração artificial”, “cidade ausente”, “grana queimada”. Todos esses títulos têm em comum uma mesma operação retórica, a construção de um sintagma no qual o substantivo é negado, esvaziado pelo adjetivo que o qualifica. Um nome falso não é um nome, é um apelido, um pseudônimo; a respiração, se é artificial, na verdade não é respiração; queimar dinheiro é realizar um atentado contra a própria natureza do dinheiro. O recurso retórico fundamental dos títulos de Piglia é, portanto, o paradoxo, mobilizado em uma operação borgeana de desapropriação do próprio. A imagem definitiva dessa operação é a máquina de relatos que ocupa o centro da trama em La ciudad ausente: em uma cidade distópica, futurista e repressiva, há uma máquina que prolifera histórias. Sua motivação inicial é um afeto pessoal, o luto de Macedonio por sua companheira Elena de Obieta. Essa máquina, que tem seu ponto de partida no mais pessoal dos afetos, no entanto, não pode realizar seu trabalho afetivo sem se converter em museu de relatos apócrifos, impessoais, única garantia de preservação da memória coletiva em uma cidade corroída pelo esquecimento.
Aqui as intervenções da obra de Piglia sobre a subjetividade e os gêneros se entrecruzam com a política. É difícil avaliar a radicalidade de sua obra sem uma compreensão da trajetória da esquerda argentina nas últimas décadas, apesar de que as posições de Piglia sobre a relação entre literatura e política diferem bastante das posições dominantes entre a esquerda. Piglia declarou várias vezes: “se se quer fazer política, há que se abandonar a ficção”. O alvo do ataque de Piglia é a posição que tende a reduzir a ficção a uma mera crônica da política, a uma espécie de retrato das pequenas mudanças políticas. Para entender esta posição basta recorrer a leitura que ele faz da obra de Roberto Arlt. Arlt, filho de imigrantes e cronistas do baixo mundo portenho dos anos 1930, é um escritor revolucionário exatamente porque escolheu não seguir o caminho da maioria dos escritores “políticos” de sua época, o retrato da conjuntura, o neonaturalismo, o realismo socialista. Para Piglia, a ficção realmente revolucionária seria aquela que, como em Arlt, capta o núcleo secreto da política, seu modelo de realidade, e o transforma em motor, em matriz organizadora do retrato. Caso se opte pelo contrário, ou seja, pela simples conversão da política em tema da ficção, perde-se o fundamental da política e o fundamental da ficção. Ficamos com uma política conformista e uma ficção esteticamente conservadora.
Qual seria esse núcleo secreto, esse modelo do real do qual a ficção se apropria? No caso argentino, para Piglia, esse modelo é a conspiração, o complô, a política entendida como ficção estatal secreta e paranoica. Pensar a política, em Piglia, é sobretudo pensar a teoria da paranoia: tradição muito argentina, diga-se de passagem. O paranoico se caracteriza pela conversão incessante de objetos em signos; tudo, para ele, é signo de algo. A imagem perfeita aqui é a de Arocena, o personagem que é censor, interceptador e decifrador de textos a serviço da inteligência estatal em Respiración artificial. O paranoico arranca do objeto presente o anúncio de algo por vir; nesse sentido, a paranoia possui uma estrutura messiânica. Ela vive, permanentemente, na antecipação do futuro. A ficção replica esta estrutura ao trabalhar com aqueles resíduos do presente que anunciam o futuro. Para Piglia, é aí que se jogaria a tarefa da ficção na Argentina.
No caso brasileiro, a teoria de Piglia teria que ser adaptada. Nosso modus operandi essencial não é a paranoia, mas o pacto, a conciliação, o acordo. Ao contrário do sujeito paranoico, que suspeita permanentemente, o sujeito pactário é um crédulo por excelência. Diz-se traído, desiludido, abandonado. A narrativa estatal brasileira, poderíamos deduzir a partida da ficção de Piglia, é a quebra de um acordo que nunca houve, a desilusão com uma promessa que nunca foi feita. Paranoia e pacto, suspeição e desilusão: a partir dessas categorias, um glossário da obra de Ricardo Piglia nos ofereceria também duas matrizes fundamentais para pensar a política latino-americana.
* Agradeço a Aline Passos pelo auxílio na revisão deste ensaio.