por Rodrigo de Lemos
Há todo um subgênero de romances que se interessam pelas vidas que transcorrem em metrópoles periféricas. Essas obras elegem como tema as relações tensas entre as elites sociais e seu meio imediato. Talvez o principal deles em língua portuguesa seja Os Maias, o grande romance sobre altas esperanças juvenis frustradas pela mediocridade de um meio – no caso, uma Lisboa estagnada, habitada por “uma gente feiíssima, encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada”, como define Carlos da Maia de retorno à cidade após anos nas capitais europeias: “Isto é horrível quando se vem de fora!”. Nova York e as grandes cidades da Costa Leste americana ofereceram um quadro para sentimentos desse tipo no romance do século XIX, ainda que com uma diferença fundamental: enquanto a modorra na Lisboa de Eça de Queirós é resultado de um longo declínio que fez da primeira capital ocidental globalizada uma metrópole agonizante, a morosidade de Nova York ou de Boston em Henry James é a de um lugar ainda há pouco civilizado, ignorante quanto aos refinamentos comuns nas metrópoles plurisseculares do Velho Mundo, mas prenhe de um futuro – nada acontece ali porque ali nada aconteceu, e por isso mesmo tudo ainda é possível.
A Nova York de Edith Wharton em A Idade da Inocência (1920) se insere de pleno nessa linhagem, ainda que com suas peculiaridades. Romance escrito já no século XX, Wharton se volta nele à Gilded Age americana (1865-1901) da sua infância com um olhar ao mesmo tempo nostálgico e irônico, sensível à jequice da alta-sociedade novaiorquina de um passado ainda recente e às linhas de continuidade desse passado com um Entre-Guerras em que Nova York já despontava como rival das velhas senhoras que eram Londres e Paris.
Assim como a Lisboa provinciana de Eça de Queirós sufoca os jovens Carlos da Maia e João da Ega, o drama de Newland Archer é o de um desencontro constante entre suas aspirações e sua cidade, faltando a esse “contemplativo” (como o descreve Wharton) o impulso inicial para uma ruptura definitiva. Archer é um esteta leitor de Ruskin e de Pater em uma sociedade mercantil, um inconformado tácito em meio a um rígido convencionalismo, um cosmopolita no meio de provincianos – mas esteta, inconformado e cosmopolita apenas em estado íntimo, encoberto por uma fachada de inquestionável respeitabilidade. Archer não abandona sua carreira ociosa num tradicional escritório de advocacia para viver a vida estética na boêmia, nem põe em prática suas veleidades de cosmopolitismo ou de liberação feminina, mas tenta uma impossível conciliação entre sua posição social e os pensamentos sugeridos nas suas leituras estrangeiras. Desentravadas por sua falta de resistência enérgica, as engrenagens sociais da carreira, da família, da classe e do casamento não deixarão de afastá-lo das sua vida ideada – do amor, da beleza, da aventura, e a ironia amarga de Wharton é a de acabar por fazer de Archer uma encarnação do cidadão americano modelar.
Antes de simplesmente condená-lo por seu caráter talvez excessivamente delicado, fruto quem sabe de uma educação por demais perfeita, Wharton mostra o quanto o meio de Archer não lhe deixava fartura de opções. Onde viver essa vida estética, essa independência quanto aos preconceitos em uma Nova York ainda provinciana? Um provincianismo que se definia por uma relação ambígua, de fascínio e de rejeição, quanto ao mundo exterior, em especial à Europa, fonte de todos os prazeres finos, mas também de todas as perversões.
Assim como entre as elites urbanas da América Latina, um tour pelo Velho Continente como os realizados pelos Archer era tido pelo coroamento de qualquer educação de sucesso; esperava-se na conversação mundana familiaridade com os principais monumentos e paisagens europeus, e importava-se tudo de Paris – vestidos, livros, mesmo construções gramaticais traduzidas do francês para o inglês como sinal de elegância e de cosmopolitismo. Ao mesmo tempo, vinham também da Europa tendências inquietantes no que diz respeito tanto à vida sexual quanto à condição feminina – seja a arquitetura francesa da casa de Manson Mingott, com seus “incentivos à imoralidade” (os apartamentos tinham todos os quartos no mesmo andar), sejam os modos de sociabilidade europeus, em que as mulheres mesclavam-se ao mundo masculino de forma inédita e suspeita a olhos puritanos. É essa suspeita que está no fundamento das reações negativas quanto à americana émigrée (e portanto potencialmente traidora) que é Madame Olenska, como a mãe de Archer deixa transparecer em uma discussão com seu filho:
“Nova York não é Paris nem Londres.”
“Oh, não, não é”, seu filho exclamou.
“Você quer dizer, eu suponho, que a sociedade aqui não é brilhante? Você está certo, eu diria; mas este é o nosso lugar, e devem-se respeitar nossos costumes quando se fica entre nós. Ellen Olenska especialmente; ela voltou para se afastar do tipo de vida que se leva em sociedades brilhantes.”
Mesmo confrontando sua mãe, Archer nesse ponto lhe dá razão; como ele observa em outro momento, essas “velhas e complicadas comunidades europeias”, essas “ricas e ociosas sociedades ornamentais”, não seriam propícias a que uma mulher, “pela força das circunstâncias”, fosse “arrastada a um laço amoroso inescusável segundo padrões convencionais”?
De temperamento intelectual, Archer não encontra onde realizar qualquer ambição de escrita ou de criação numa Nova York que ainda levaria décadas a se consolidar como centro das artes. Sempre pensando bovaristicamente na Europa, fantasmada a partir de suas leituras de Mérimée e de Thackeray e de William Morris, Archer sabia dessas “sociedades em que poetas e pintores e romancistas e homens de ciência, e até mesmo grandes atores, eram paparicados como duques” e que ao mesmo tempo “isso era inconcebível em Nova York”. Ao contrário dos mundos inglês ou italiano ou francês, em que as elites do pensamento e as elites do poder se misturavam em salões e academias, Archer conhecia bem demais o destino dos “sujeitos que escrevem” de Nova York, enclausurados no bairro boêmio da cidade. Sabia também que “o mundo deles era pequeno”, tão pequeno quanto o mundo burguês que ele próprio habitava, e que “a única maneira de alargá-los a ambos era atingir um estágio dos costumes em que eles iriam naturalmente misturar-se”. “Pintores? Há pintores em Nova York”, surpreende-se em outro momento o banqueiro Beaufort.
Daí a amargura de seu amigo Ned Winsett, escritor manqué improvisado em jornalista para sustentar a família, “puro homem de letras, nascido inoportunamente num mundo que não precisava de letras”. Como o próprio Winsett analisa, expressando-se ironicamente nos mesmos termos mercantis que lhe esmagaram a existência: “só tenho uma mercadoria a produzir, e não há mercado para ela aqui, e não haverá enquanto eu viver”. E ele conclui, inconformado: “Meu Deus! Se eu pudesse emigrar!”. À compreensível aspiração de Winsett de deixar Nova York, Wharton contrapõe, com um humor cruel, a figura do francês M. Rivière, intelectual frequentador dos Goncourt e dos Flaubert cultuados por Archer, forçado a sobreviver como tutor e secretário de milionários, e que cogita imigirar para Nova York, como ele confia a Archer quando da viagem deste a Londres. Rivière ouvira falar da cidade como de uma metrópole e a imagina conforme o modelo europeu, propícia a seus prazeres preferidos, os da conversação e da vida intelectual. Ao exprimir a ideia, Archer “fitava M. Rivière com perplexidade, imaginando como dizer-lhe que suas superioridades e talentos certamente prejudicariam o seu sucesso” em uma cidade como Nova York: “Nova York – Nova York – tem de ser especialmente Nova York?”.
Se a via do intelecto puro é barrada a Archer, também é assim quanto a qualquer aplicação de sua educação e de sua cultura à vida pública. Ned Winsett repreende-o por sua inação e insta-o à política. Archer, no entanto, sabe que os Estados Unidos do século XIX são uma cleptocracia desavergonhada, governada por elites políticas corruptas e clientelistas, não muito diferentes do que é hoje o caso nas grandes potências emergentes como os próprios EUA então eram. Archer diz a si mesmo: “todos nos círculos polidos sabiam que, na América, ‘um gentleman não pode fazer política’. Mas, dado que ele não podia dizer isso assim a Winsett, ele respondeu evasivamente: ‘Veja a carreira dos homens honestos na política americana! Eles não nos querem!”, e mais tarde: “todos conheciam o destino melancólico dos poucos gentlemen que arriscaram a pele na política municipal e estadual em Nova York. Foram-se os dias em que esse tipo de coisa era possível: o país estava em posse de chefes políticos e de migrantes, e gente decente tinha que se limitar ao lazer e à cultura”. A última palavra, no entanto, não estava dada, e entre os tempos de Archer e a escritura do romance em 1920, teve lugar, no início do século XX, a Era Progressista, de Theodore Roosevelt, que alterou profundamente os Estados Unidos e que tinha por objetivo sanear a política americana. Já um homem maduro, as altas virtudes de Archer, bem como sua posição social e sua reputação, levam os líderes do movimento a sondá-lo com insistência para transformá-lo na efígie do cidadão ideal. Archer resiste, fiel tanto a seu caráter contemplativo quanto à sua função imaginada como gentleman: “Um gentleman simplesmente fica em casa e se abstém”.
Sinais da grandeza vindoura de Nova York não são raros no romance, como as transformações que sofre o Museu Metropolitano. Resta que a leitura de A Idade da Inocência nos convence quando não mais da existência da História; o mundo é imprevisível, e a roça metropolitana de hoje pode se transformar na capital do mundo de amanhã. Uma tal percepção tem algo de perturbador em um mundo de múltiplos centros de poder com múltiplos centros cosmopolitanos concorrentes e nos deixa com a pergunta: qual será a próxima Nova York? Virá da Ásia, da África, das Américas? E haverá algo como uma capital do mundo em um mundo de hegemonia constantemente disputada?
Também o romance de Wharton revela as linhas de continuidade não apenas entre a Nova York de Archer e a dos anos 20, mas entre ambas e a nossa época. Em um recente romance do escritor americano Ian McKenzie, Feast Days (2018), um casal novaiorquino se expatria em uma dessas candidatas a nova métropole do mundo emergente: São Paulo. Em um sentido contrário aos dos personagens de James, eles partem de uma metrópole central e se instalam em uma periférica. O marido é um banqueiro enviado ao Brasil por Wall Street; a esposa, Emma (Bovary?), é uma intelectual desocupada, formada em um curso de Humanidades de alguma Ivy League. Ele encarna o sucesso material irrefletido e seguro de si; ela é uma descendente espiritual do Ned Winsett de Edith Wharton, rondada por um mal-estar decorrente da deslegitimitação das Humanidades na academia em uma sociedade americana ainda habitada por uma forte tendência anti-intelectual.
O desconforto do casal em uma São Paulo conflagrada pelas manifestações de 2013 se dá porque a capital do Sul funciona como um espelho magnificante dos males da própria sociedade americana: a estratificação social brasileira reflete ao absurdo as desigualdades ascendentes nos EUA, e os brasileiros que, como a narradora observa, não visitam museus no exterior e que pouco leem ecoam os valores anti-intelectuais que vitimam nos próprios Estados Unidos a existência social de Emma, irônica e amarga quanto à sua carreira inexistente. Explicitando o parentesco, São Paulo é para Emma a imagem do futuro americano fantasiado pela geração dos anos 50, ao mesmo tempo “brilhante e decrépito”, feito de uma mistura sem transição entre salas de concerto luxuosas e viciados em craque. À parte da profunda irmandade entre os gigantes do Novo Mundo que são os Estados Unidos e o Brasil, surge constantemente na narrativa de Emma a Europa, seja pelas referências a esse americano refratário que foi o expatriado T.S. Eliot, seja pelas reminiscências de uma viagem do casal à Itália, memória tingida de cores suaves em contraste com a brutal realidade urbana brasileira. A narrativa termina com uma referência de Emma a seu próprio casamento a partir da cena final de Romance na Itália, do diretor italiano entre os italianos que foi Rossellini – sinal de que, assim como nas épocas de Archer e de Wharton (e de Nabuco e de Borges…), ainda buscamos no Velho Continente uma história e um sentido para nossas vidas que nos escapa, filhos que somos de um mundo novo a um só tempo ralo e promissor, forçados a nos dotarmos da espessura de um passado e de uma cultura que são nossos e que não são.