Notas sobre Blumenthal — e um quase inédito do autor

Hoje — ainda e sempre lamentando a irreparável perda do colaborador e amigo Thiago Blumenthal — trazemos as breves notas de Eduardo Cesar Maia sobre o estilo em Blumenthal, seguidas por um ensaio do autor publicado na versão impressa da revista Café Colombo e ainda inédito na internet. Descanse em paz, Thiago, grande ensaísta, grande pessoa; afinal, “não se faz um grande ensaio sem uma grande personalidade, sem uma perspectiva personalíssima sobre o mundo e os valores”.

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Hoje — ainda e sempre lamentando a irreparável perda do colaborador e amigo Thiago Blumenthal — trazemos as breves notas de Eduardo Cesar Maia sobre o estilo em Blumenthal, seguidas por um ensaio do autor publicado na versão impressa da revista Café Colombo e ainda inédito na internet.

Descanse em paz, Thiago, grande ensaísta, grande pessoa; afinal, “não se faz um grande ensaio sem uma grande personalidade, sem uma perspectiva personalíssima sobre o mundo e os valores”.

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(Reprodução: Lote 42)

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Notas sobre Blumenthal

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por Eduardo Cesar Maia

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Conheci Thiago Blumenthal em 2016 através de um grande amigo comum, o escritor e crítico Cristhiano Aguiar, no congresso internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), no Rio de Janeiro. Em nosso simpósio a respeito da relação entre crítica literária e o debate público de ideias, Thiago apresentou um trabalho sobre “A ascensão do leitor e o debate crítico de Proust e Sainte-Beuve”. Chamou-me muito a atenção a maneira como ele tratava de seu tema: não havia muletas teóricas ou uso de jargões abstrusos, e nem muito menos artificialismos comuns em apresentações nesse tipo de evento acadêmico. O sujeito tratava de Proust, de Crítica, de Filosofia e de Literatura como quem se referia a um jogo de futebol de seu time preferido; e com o afeto e a proximidade de quem fala sobre memórias, amigos e situações de sua própria vida. No ano seguinte, no mesmo evento, ele apresentou uma perspectiva corajosa e polêmica sobre a postura um tanto submissa da crítica em relação ao cinema ativista de Kléber Mendonça Filho.

Talvez esse pequeno relato possa sugerir a alguns que se tratava de alguém que abordava a literatura “superficialmente”… O que quero sugerir aqui, no entanto, é exatamente o contrário disso. Desde o primeiro encontro, e daí em diante, uma coisa que sempre me impressionava era como o caráter peculiar dele e sua forma individualíssima de perceber o mundo, a cultura e, fundamentalmente, a vida concreta, com todas as suas contradições, belezas e falta de sentido, refletia-se em seus textos como estilo, como forma. Hoje, passados alguns anos e tendo lido suas publicações e conversado com ele sobre temas pessoais e intelectuais (âmbitos que ele mal separava em sua vida interior), consigo entender bem o que naquele momento apenas intuí sobre aquele cara magro, fisicamente frágil, tímido e tão especial: o que nele chamava a atenção era sempre, e justamente, a forma: seja na elegância pessoal no trato com os amigos ou no estilo que plasmava em tudo que escrevia.

O leitor pode conferir isso que digo sem dificuldade em qualquer um de seus ensaios, sejam os vários publicados aqui no Estado da Arte, ou em outros meios, mesmo os acadêmicos. Não importava se Thiago escrevia sobre neurociência, sobre boxe, sobre Woody Allen, sobre culinária ou sobre Michael Jordan — ele sempre escrevia sobre ele mesmo. E é assim que se constrói um grande ensaísta, pois não se faz um grande ensaio sem uma grande personalidade, sem uma perspectiva personalíssima sobre o mundo e os valores. Thiago constituiu cedo um estilo muito próprio, o que não é coisa simples na crítica cultural em nossos dias, em que parece que o que mais importa é aderir ao coletivo, às grandes pautas, aos chavões bem-intencionados, aos movimentos gregários, e silenciar o que pode haver de único, de singular, em quem se dispõe a pensar sobre as coisas de forma autônoma.

Essa mistura de influências diversas e inusitadas nele também era fundamental para seu estilo. Ignorava com ironia e bom-humor hierarquias culturais estabelecidas, aproveitando-se antropofagicamente de tudo que gostava de consumir culturalmente – literatura, cinema, séries de TV, rock, programas sobre culinária, esportes, cultura pop e qualquer outra coisa que entrasse no seu radar —, num processo que me parecia ser, no primeiro momento, irreverente (por destruir cânones e fetiches culturais), para depois, já deglutidas, mastigadas e assimiladas vitalmente todas essas referências, virarem agora sim algo reverenciável. Seu cânone pessoal era fruto desse procedimento personalista, como o é, repito, em todo grande ensaísta. O que importa não são as “ideais arranjadas”, como dizia o jagunço Riobaldo, mas a vida, a vida concreta, os amores, as decepções, a amizade, a tristeza… Seu olhar peculiar sobre as coisas, refletido em tudo que escrevia, já previa e contava com a fragilidade de tudo isso. Enquanto a maioria dos críticos de cultura costuma se apegar apaixonadamente a grandes ideias e grandes causas como meio de redenção e intervenção no social, Thiago preferia encarar de frente o “mundo à revelia”.

Esse enfretamento sem subterfúgios da precariedade de todas as coisas, das boas e das ruins, com um sorriso irônico no canto da boca, parece-me ser a marca do seu ensaio e de sua visão de mundo. A forma ensaística do seu texto não refletia somente suas ideias, mas principalmente o que ele era na vida, a variedade de seus interesses, de suas contradições, do que desprezava e do que mais profundamente amava. Por tudo isso, afirmo sem receio: um dos mais interessantes e talentosos ensaístas da minha geração nos deixou no último sábado. Nos textos de Thiago Blumenthal, estilo e personalidade eram uma só coisa. E dizer que, nele, vida intelectual e vida pessoal eram uma só coisa não é somente uma frase bonita de obituário. Ele não pensava em abstrato, como fazem a maioria dos que se dedicam às ideias — os que aprendem ferramentas teóricas, metodologias e vocabulários e acabam acreditando que encontraram a chave que pode abrir todos os mundos e todas as verdades.

De minha parte, prefiro os ensaístas como ele, que escrevem não para evangelizar, normatizar e nem mesmo exatamente para convencer… Thiago Blumenthal escrevia para dar o testemunho do que amava, e não somente do que sabia. Trata-se, a meu ver, de uma importante diferença, mesmo parecendo somente uma sutileza retórica. Muitas vezes, ao lê-lo, sinto que seus argumentos parecem não pretender ser exatamente uma proposição “real” sobre o mundo. Imagino-o dizendo: “não importa tanto se tenho razão, mas é assim que vejo as coisas e as organizo em minha forma de estimar”.

Com sua partida “para fora daqui”, como no conto de Kafka, fico me perguntando o que nós, seus leitores, irremediavelmente perdemos. O que ele poderia fazer daqui em diante nunca poderemos saber, mas estou certo de que ninguém poderá fazer igual.

Estaremos sempre em busca de um tempo perdido, Thiago.

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(Reprodução: Acervo pessoal)

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Rufam os tambores do leitor

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por Thiago Blumenthal

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Ensaio publicado originalmente na revista Café Colombo #7

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Como uma teoria antropofágica às avessas, o autor é devorado pelo leitor, que o mastiga a ponto de destruí-lo em seus círculos sociais, redes sociais, funções sociais

A impressão que tenho hoje, e que pode render uma discussão relevante no circuito literário, é a de que estamos vivendo a potência máxima de uma experiência coletiva da leitura. Onde lemos com fins cívicos, para impressionar; seja postando uma foto daquela página no Instagram, uma citação entre aspas, o que for.

Quem volta a triunfar hoje não é o autor, e sim o leitor — que mostra eloquência, conhecimento, inteligência, que não é filisteu. Enquanto o autor se perde e se desespera por reconhecimento. Não importa o que lemos, se um artigo interessante ou um livro de 800 páginas, precisamos mostrar o que estamos lendo e o quanto aquilo que estamos lendo é interessante — e, no limite, o quanto somos todos interessantes (mais do que o conteúdo compartilhado). Voltamos àquele período que precede o romantismo. Como se pudéssemos traçar, em uma linha do tempo, uma curva que se inicia em 1750, suspende-se e começa a declinar em 1913 (com Marcel Proust) e cai vertiginosamente no século 21, com a experiência que gosto de chamar de “ultracompartilhada” da leitura. Ou algo mais ou menos previsto por Marshall McLuhan há algumas décadas, do fenômeno de “we become what we behold”.

A experiência interiorizada do leitor, e da memória, que eleva o autor, atinge seu ápice em Proust. Com a Recherche, publicada entre 1913 e 1927, o autor francês, recluso em seu apartamento situado no efervescente bulevar Haussmann, celebrava o apogeu de seu narrador, um personagem que, tal qual Proust, desejava escrever um livro a partir de suas memórias; ao mesmo tempo, contudo, a obra se debatia dentro de um vórtice antagônico diante da sociedade então ali retratada: a vida nos salões de Paris que se contrapõe à experiência individual, da leitura, da escrita, da recuperação das imagens que mais nos marcam, via literatura, no silêncio de um quarto. A solidão propicia e delibera o romance e, quando este se volta a si mesmo, como no caso da Recherche, entramos, nós como leitores, em um circuito de alta tensão com a sociedade que demanda a nossa cara na rua, nos salões. Assim, a meu ver, a obra de sete volumes, hoje um clássico, encerra uma espécie de ciclo do indivíduo, de leitura individual, aquela que começou com o romantismo alemão, para apresentar, em contato de choque, uma nova realidade, ainda que muito incipiente: lemos para mostrar aos outros que lemos.

Lembro-me de uma entrevista mais ou menos recente com Bruno Maron, em que o autor diz que a pseudo-erudição é um mercado aquecido. Fernando Gabeira, nos idos de 1960, na Ilustrada, disse sobre Glauber Rocha e Terra em Transe que era “realizado para uma minoria intelectualizada e que se supunha capaz de entender e interpretar suas alegorias, mas dele nada pode aproveitar em tempos de compreensão de uma realidade nacional ou latino-americana”. Ambas as entrevistas, separadas por 50 anos, dão uma boa noção deste fenômeno, que celebra o leitor (ou espectador, no caso de Glauber Rocha), muito mais do que o autor.

Apesar de vivermos em uma era de massiva superprodução de livros, de muito papel para manter a ilusão perdida mais crucial, que é a de que um escritor sempre será uma figura séria em um mundo ignorantão, parece-me que o autor morreu e vive nas citações ou referências daquele que o consome. Essa quantidade enorme de papel serve para o leitor, não mais para a glória do autor. Como uma teoria antropofágica às avessas, o autor é devorado pelo leitor, que o mastiga a ponto de destruí-lo em seus círculos sociais, redes sociais, funções sociais. Mais importante do que Glauber Rocha sou eu que falo de Glauber Rocha.

Flaubert dizia que o discurso humano mais parece uma chaleira rachada da qual tiramos melodias para os ursos dançarem, quando, no fundo, desejaríamos mesmo era comover as estrelas. E Hannah Arendt, em um ensaio sobre a reputação literária, pergunta se é possível haver de fato um gênio não reconhecido. Ou se é um caso de delírio daqueles que não são gênios. Ainda não há filosofia o bastante que possa nos fornecer hoje uma resposta a esse fenômeno em que o leitor figura acima do autor. Não há psicanálise possível pois precisamos de um distanciamento histórico para melhor observarmos as razões e as motivações sociais do leitor. Por ora estamos todos sendo sugados, os vivos, os mortos, a literatura, os deuses que inventamos, as memórias, as histórias, os amores.

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