por Alexandre Pinheiro Hasegawa
Em nosso último texto (“Horácio elogia Augusto, novo deus na terra, e a defesa da poesia contemporânea”), em que tratamos da epístola dirigida a Augusto, vimos que Horácio, autor de encômio ao princeps e poeta que ensina hinos (epist. 2. 1. 132 e ss.), como o Carmen Saeculare (“Canto Secular”), recusa fazer o louvor do governante por meio da epopeia (epist. 2. 1. 257 e ss.), incapaz de tal feito elevado. Assim, o poeta latino parece seguir o programa socrático exposto no livro 10 da República de Platão (606e-607a), em que, depois de elogiar Homero, diz, porém, que na cidade ideal apenas devem ser aceitos “hinos aos deuses e encômios aos varões honestos”, excluindo a “Musa aprazível na mélica ou na epopeia”. A falta de forças de Horácio para realização da épica, portanto, faz com que ele louve Augusto naquilo em que as próprias forças permitem: hinos e encômios. Agora, então, a República ideal e o governante perfeito – não o filósofo, mas o novo deus – têm o poeta mais adequado, “útil à cidade” (epist. 2. 1. 124), segundo a prescrição do Sócrates platônico. Leiamos todo o trecho da República na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, com pequena modificação na parte destacada em grego:
“Por conseguinte, ó Gláucon, quando encontrares encomiastas de Homero, a dizerem que esse poeta foi o educador da Grécia, e que é digno de se tomar por modelo no que toca a administração e a educação humana, para aprender com ele a regular toda a nossa vida, deves beijá-los e saudá-los como sendo as melhores pessoas que é possível, e concordar com eles em que Homero é o maior dos poetas e o primeiro dos tragediógrafos, mas reconhecer que, quanto a poesia, somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos e nada mais. Se, porém, acolheres a Musa aprazível na mélica (???????) ou na epopeia, governarão a tua cidade o prazer e a dor, em lugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor”.
Horácio, porém, como vimos em nosso primeiro texto sobre as Epístolas (“O retiro de Horácio e a arte de escrever cartas em Epístolas 1”), diferentemente do Sócrates da República, não afasta Homero, antes diz ser o autor da Ilíada e da Odisseia melhor filósofo do que o estoico Crisipo e o acadêmico Crântore (epist. 1. 2. 1-4). Portanto, só em parte segue o programa do diálogo platônico, de acordo com o que o próprio Horácio disse no início da carreira epistolar: “não estou obrigado a jurar sobre as palavras de um mestre” (epist. 1. 1. 14: nullius addictus iurare in verba magistri). Assim, sem aderir totalmente a uma escola, Horácio constrói um programa próprio, passando por vários gêneros (sátira, iambo, lírica e epístola), imitando diversos autores, mas não sendo “gado servil” (cf. epist. 1. 19. 19), como tentamos fazer ver nesta série de textos dedicada ao poeta do círculo de Mecenas e amigo de Virgílio.
Neste percurso, dedicamo-nos hoje à epist. 2. 2, dirigida a Floro, em geral estudada com as outras duas longas cartas: a epist. 2. 1, dirigida a Augusto, comentada em nosso último texto, e a Arte Poética ou Epístola aos Pisões, que será matéria do próximo. Não sabemos exatamente a cronologia desses textos nem como foram editados ou circularam, mas, em geral, são colocados no fim da carreira de Horácio que se descreve já como velho, renunciando, como fez no início de epist. 1. 1, aos “versos e outros divertimentos” (v. 10: versus et cetera ludicra). Em epist. 2. 2 Horácio retoma a renúncia à poesia (vv. 141-143), desejando agora “aprender os ritmos e as medidas da vida verdadeira” (epist. 2. 2. 144: … verae numerosque modosque ediscere vitae):
nimirum sapere est abiectis utile nugis,
et tempestivum pueris concedere ludum,
ac non verba sequi fidibus modulanda Latinis
(decerto, ser sábio, afastadas as nugas, é útil,
e aos jovens [é] oportuno conceder o jogo,
e não buscar palavras moduláveis com a lira latina.)
Se, como vimos acima, Horácio apresentava na epist. 2. 1, dirigida a Augusto, a poesia como útil à cidade, agora na epist. 2. 2 “útil é ser sábio”, e a poesia deve ser deixada de lado, como algo próprio aos jovens. Estabelece-se assim relação entre a lírica e a juventude, em oposição à filosofia, própria à velhice, idade em que se devem buscar “os ritmos e as medidas da vida verdadeira”. Não passa despercebido pela crítica o jogo irônico (?) – muito sutil, aliás – de se valer de metáfora poética (“ritmos e medidas”) para tratar do abandono da poesia. Seja como for, na passagem acima recorrem termos importantes no início do primeiro livro de Epístolas: em epist. 1. 1, depois de dizer que abandona “versos e divertimentos”, afirma que se ocupa “do que é verdadeiro” (v. 11: quid verum); em epist. 1. 2, segundo Horácio, Homero ensina “o que é útil” (v. 3: quid utile) de modo mais claro e melhor do que os filósofos mencionados acima. Os dois termos destacados em negrito, ambos em passagens que autor opõe poesia à filosofia, reaparecem na epist. 2. 2 em semelhante contexto.
Mas por que o poeta latino volta a essa questão? Por que justificar novamente o abandono da poesia e a busca do verdadeiro e do útil? Retomemos, então, o início da epístola, dirigida a Júlio Floro, “fiel amigo do bom e ilustre Nero (epist. 2. 2. 1: Flore, bono claroque fidelis amice Neroni), a quem já tinha escrito uma carta, epist. 1. 3. 1-2: “Júlio Floro, em que região do mundo milita Cláudio, / o filho adotivo de Augusto, esforço-me por saber” (Iuli Flore, quibus terrarum militet oris / Claudius Augusti privignus, scire laboro). Do que nos diz Horácio sabemos que Júlio Floro fez parte da comitiva de Tibério Cláudio Nero, filho adotivo de Augusto e sucessor do princeps em 14 d.C., enviado à Armênia, por volta de 21/20 a.C., para colocar Tigranes III no trono. Além da estreita relação com o poder, Floro, ao que se pode deduzir de outra passagem de epist. 1. 3, foi autor de poesia lírica (v. 24: … condis amabile carmen). Ademais, de acordo com o comentário do gramático Pompônio Porfirião (séc. III d.C.) à epist. 1. 3, Floro foi “secretário” público (scriba) e escritor de sátiras, imitando Ênio, Lucílio e Varrão (Hic Florus scriba fuit et saturarum scriptor, cuius sunt electae ex Ennio Lucilio Varrone saturae). Se são corretas as informações, havia muitas afinidades entre Floro e Horácio, que foram amigos próximos.
A epístola, depois do endereçamento, que também serve como elogio a Tibério, começa com longa oração condicional (vv. 2-15), em que Horácio imagina a seguinte situação: um vendedor, ao tentar convencer Floro a comprar um escravo, menciona todas as qualidades, mas por fim acrescenta que o escravo se esconde nas escadas, como é costume, com medo do chicote por ter o hábito de fugir. Se a fuga relatada não lhe for um problema, ele fará a compra (v. 16), sabendo, porém, que comprou um ser cheio de vícios (v. 18: vitiosum). Daí, se processar o vendedor, perderá tempo com litígio injusto (v. 19: lite … iniqua). A história serve de comparação à injusta queixa de Floro: Horácio não lhe envia epístolas em resposta. Ora, o poeta assim se justifica:
dixi me pigrum proficiscenti tibi, dixi
talibus officiis prope mancum, ne mea saevus
iurgares ad te quod epistula nulla rediret.
(Disse a ti, que partias, que sou preguiçoso; disse
que, para tais deveres, sou quase maneta, para que, cruel,
não litigasses por não te chegar nenhuma epístola minha.)
O trecho é engenhosamente construído: a sequência inicial do v. 20 (di??xi? me?? pi?gru??m …) é espondaica, com todas as sílabas longas, que tornam, por assim dizer, o ritmo mais lento, justamente no trecho em que afirma ser preguiçoso (pigrum). Tal lentidão contrasta com a ideia da partida de Floro (proficiscenti tibi). A anáfora com “disse” (dixi), verbo colocado no início e no fim do verso, indica que não faltou aviso. No verso seguinte (21), a introdução da hipérbole na descrição do vício (“maneta”: mancum), ainda que atenuada por “quase” (prope), traz comicidade à passagem, contrastando com o sério officium (“dever”). Ademais, o ritmo dactílico constante no início desse verso – a observação que se segue não se encontra em nenhum comentário compulsado por nós – é quebrado justamente pela palavra que indica o vício (mancum): ta??li?bu?s o??ffi?ci?i??s pro?pe? ma??ncu?m, ne?? me?a? sæ??vus. Há dáctilo em todas as sedes em que é possível, à exceção do quarto pé ocupado pelo espondeu ma??ncu?m (“maneta”). Lembremos que há um verso latino chamado escazonte ou iambo manco, que se caracteriza por ter o último pé invertido, descrito pelos gramáticos antigos como verso de ritmo vicioso. No v. 22, destaca-se a prolepse de ad te (“te”), reforçada pela cesura que separa ainda mais ad te da oração subordinada a que pertence, enfatizando a ausência de epístolas (nulla epistula) ao destinatário. Merece ainda destaque no v. 23 a palavra epistula, única ocorrência em todo o corpus horaciano e pode ser um argumento de que o título Epistulae fosse original. Seja como for, é incrível também que tal observação sobre o termo esteja ausente dos principais comentários. Por fim, o autor faz uso paródico de termo jurídico (iurgares: “litigasses”) que relaciona a passagem com a história relatada anteriormente cujo desfecho é um litígio injusto, como vimos. Dessa forma, Horácio se desculpa por não responder as cartas do amigo.
Floro, porém, tem outra queixa, segundo o relato de Horácio (vv. 24-25): “Além disso tu te queixas ainda de que / eu, mentiroso, não te envio os poemas esperados” (quereris super hoc etiam quod / expectata tibi non mittam carmina mendax). O poeta, então, inicia abruptamente nova história (vv. 26-40). Um soldado de Luculo – Lúcio Licínio Luculo, que liderou exército na Terceira Guerra Mitridática (74 – 63 a.C.) –, perdido todo dinheiro que juntara, lançou-se, como lobo feroz, contra o inimigo e expulsou a guarda real de um lugar extremamente fortificado e cheio de riquezas. Pelo feito heroico, recebeu as devidas honras e grande soma de dinheiro. Assim, célebre pela ação realizada, é convocado a investir contra outro posto fortificado, mas, após palavras entusiasmadas do pretor para incentivar o soldado, ele não se move e responde: “irá, / irá para onde queres aquele que perdeu o cinto (com dinheiro)” (vv. 39-40: ‘ibit / ibit eo quo vis qui zonam perdidit’ …).
Horácio, em seguida (vv. 41-52), faz resumo da própria vida, que discutimos em parte no primeiro texto desta série (“Horácio, o poeta [não apenas] do carpe diem”), mostrando o cuidado que devemos ter ao ler essas informações biográficas. Dito isso, assim relata o próprio poeta: educado e alimentado em Roma, vai a Atenas, onde se inicia sua jornada filosófica, desejando “discernir o reto do curvo” (v. 44: scilicet ut vellem curvo dinoscere rectum) e “procurar a verdade nos bosques de Academo” (v. 45: atque inter silvas Academi querere verum). Nesta primeira parte da breve autobiografia, não passa despercebida a passagem da poesia, na referência à Ilíada de Homero, ao mencionar Aquiles (v. 42: iratus Grais quantum nocuisset Achilles: “quão grande dano o irado Aquiles causara aos Gregos”), à filosofia, em particular à Academia platônica, localizada em bosque nos arredores de Atenas, onde se supunha estar enterrado o herói ateniense Academo. Ali, com os acadêmicos, Horácio busca o “reto” e o “verdadeiro” – notemos que as palavras, destacadas em negrito acima, ocupam a posição final dos versos sucessivos (44-45). Desse aprazível lugar (v. 46: loco … grato) é levado à guerra civil contra César Augusto (v. 48), sendo derrotado na batalha de Filipos (42 a.C.), narrada com mais detalhe em Odes 2. 7. Ao perder tudo, “a pobreza audaciosa”, ou seja, a pobreza que torna alguém audaz, o impeliu a fazer versos (vv. 51-52: paupertas impulit audax / ut versus facerem). Agora, recuperadas as posses, por que lançar-se de novo à guerra, como o soldado de Luculo? Em outras palavras, por que escrever poemas? O preguiçoso poeta conclui: é melhor dormir do que escrever versos (v. 54: ni melius dormire putem quam scribere versus?). Ora, como não lembrar aqui do início de Sátiras 2. 1 – sobre as Sátiras ver o segundo texto da série: “Eis que chega o satírico Horácio, o conviva satisfeito com pouco” –, quando, em diálogo com o jurista Trebácio, diz que escreve versos, pois não consegue dormir (vv. 1-7)!
Acresce Horácio ainda outras razões para não escrever mais, não fazer novos versos que lhe pede o amigo Floro. O tempo, por exemplo, que tudo devora, rouba de todos nós os gracejos, o amor, os banquetes e o divertimento; “os anos” (v. 55: anni), nas palavras do poeta, se esforçam por arrancar até mesmo os poemas (v. 57: tendunt extorquere poemata). O que pode fazer? A passagem é tópica. Virgílio, nas Bucólicas (9. 51), dirá: “tudo leva o tempo, até mesmo o ânimo” (Omnia fert aetas, animum quoque); em epigrama atribuído a Platão (Antologia Palatina, 9. 51. 1): “o tempo leva tudo” (???? ????? ?????). A passagem da epístola, porém, faz pensar, por contraste, nas célebres odes, em que Horácio diz que por seus carmina não morrerá de todo, boa parte dele evitará a morte (cf. Odes 3. 30. 6-7), que não será retido pela onda estígia (cf. Odes 2. 20. 8), ou seja, o tempo pode arrancar até mesmo os poemas, mas os versos já feitos sobrevivem ao tempo voraz.
Ao declarar o abandono da poesia, as dificuldades de escrevê-la em Roma, lugar de tantas preocupações e trabalhos (epist. 2. 2. 65 e ss.), parece exigir do leitor que retome a produção anterior e faça o confronto dos textos. Trecho fundamental para essa leitura que propomos é aquele em que lembra da dificuldade de agradar a todos, pois muito diversos são os gostos dos leitores. Valendo-se de metáfora gastronômica, relembra os três gêneros praticados: a lírica (v. 59: carmine), o iambo (v. 59: iambis) e a sátira (v. 60: Bioneis sermonibus). Não menciona a epístola que está a praticar neste exato momento. Assim, a necessidade de servir pratos tão variados, sem agradar a nenhum dos convidados (v. 61: convivae), também leva o poeta a desistir dos versos. Leiamos novamente o trecho, já citado ao longo dessa série (epist. 2. 2. 58-62):
denique non omnes eadem mirantur amantque;
carmine tu gaudes, hic delectatur iambis,
ille Bioneis sermonibus et sale nigro.
tres mihi convivae prope dissentire videntur,
poscentes vario multum diversa palato.
(Ademais, nem todos admiram e amam as mesmas coisas;
tu te alegras com a lírica, este se deleita com os iambos;
aquele com as conversações de Bíon e o sal negro.
Parece-me que os três convivas estão a ponto de discordar,
exigindo coisas muito diversas para o variado paladar.)
O Alceu Romano
Horácio, na sequência, introduz, por meio de brevíssima anedota sobre um jurisconsulto e um retor (vv. 87-89), outro mal que afeta os poetas contemporâneos: elogios mútuos, sem qualquer fundamento. Dois autores, um de lírica (v. 91: carmina) e outro de elegias (v. 91: elegos), assim se louvam: “Admirável de se ver! / Tua obra foi cinzelada pelas nove Musas!” (vv. 91-92: … mirabile visu / caelatumque novem Musis opus). Horácio se identifica com o poeta lírico (v. 91: compono carmina: “componho lírica”), que é declarado pelo elegíaco um outro Alceu (séc. VII/VI a.C.), mélico grego, modelo importante do poeta latino (v. 99: discedo Alcaeus puncto illius: “afasto-me como Alceu, no juízo dele”). Como bem se sabe, não é sem razão a identificação de Horácio com Alceu. O próprio poeta declara ter sido o primeiro a difundi-lo e imitá-lo em Roma (epist. 1. 19. 32-33: hunc ego, non alio dictum prius ore, Latinus / vulgavi fidicen: “esse [Alceu], não cantado antes por outra boca, eu, latino / poeta lírico divulguei”). São já bem estudadas as imitações que Horácio faz do poeta eólico nas Odes: em 1. 9 imita o fr. 338 V.; em 1. 10, fr. 308 V.; em 1. 14, a ode da nau do Estado, frr. 208a e 6 V., e em 1. 37, fr. 332 V., para ficar com alguns poucos exemplos, mais conhecidos, apenas do primeiro livro lírico. Por fim, nas Odes ainda, menciona explicitamente Alceu em 2. 13. 26-28, imaginando um encontro com o poeta no mundo dos mortos, depois de quase morrer com a queda de maldita árvore:
et te sonantem plenius aureo,
Alcaee, plectro dura navis,
dura fugae mala, dura belli
(e a ti, Alceu, soando, com áureo plectro,
de modo mais grave, os duros males da nau,
os duros males da fuga, os duros males da guerra.)
Por fim, o poeta latino menciona Alceu entre Homero, Píndaro, Simônides de Ceos, Estesícoro, Anacreonte e Safo, autores que o tempo não destruiu, assim como não hão de morrer as palavras de Horácio (Odes 4. 9. 1-12). Leiamos, na bela tradução do árcade português Elpino Duriense, o trecho em que o poeta latino rivaliza com Homero e os mélicos gregos, usando “Camenas” (v. 8: Camenae) – traduzido por “Musas” (v. 6) – para se referir à poesia dos modelos, talvez querendo dizer, com a menção às divindades itálicas, que ele já os divulgou no Lácio, como fez com Arquíloco e outros:
Ne forte credas interitura, quae
longe sonantem natus ad Aufidum
non ante volgatas per artis
verba loquor socianda chordis:
non, si priores Maeonius tenet
sedes Homerus, Pindaricae latent
Ceaeque, et Alcaei minaces
Stesichorique graves Camenae:
nec, siquid olim lusit Anacreon,
delevit aetas: spirat adhuc amor,
vivuntque conmissi calore
Aeoliae fidibus puellae
(Precedeiras não creias as palavras,
que eu, natural do altissonante Aufido,
por artes dantes não sabidas canto
para ajustar as cordas:
se tem Meônio Homero o primo assento,
as Pindáricas Musas não se escondem,
nem as de Ceos, e de Alceu minaces,
e as graves de Estesícoro;
nem quanto já cantou Anacreonte
a idade apagou; inda respira
amor e vive o fogo seu entregue
da moça Eólia à lira.)
Não é, portanto, estranho que Horácio seja elogiado como Alceu, já que, conforme vimos, o mélico grego é continuamente imitado e mencionado nas Odes. O problema, porém, está na tentativa de identificação do elegíaco, mencionado sem nome. Houve – e ainda há – muita discussão sobre a passagem. Desde, pelo menos, o séc. XVI julgou-se que o autor das elegias é Propércio, pois, primeiramente, o poeta, no juízo de Horácio, é um outro Calímaco: “afasto-me como Alceu, no juízo dele; quem é ele no meu? / quem senão Calímaco?” (v. 99-100: discedo Alcaeus puncto illius; ille meo quis? / quis nisi Callimachus?). Ora, Propércio, além de várias passagens em que menciona o poeta helenístico (Elegias 2. 1. 40; 2. 34. 32; 3. 1. 1 – primeira palavra do livro –, e 3. 9. 43), afirma ser, na elegia programática e de abertura do quarto livro, o “Calímaco romano” (Elegias 4. 1. 64: Vmbria Romani patria Callimachi: “Úmbria, pátria do Calímaco romano”). Assim, por ser também poeta do círculo de Mecenas, seria provável a identificação com Propércio. Ademais, na continuação da epístola horaciana, o autor diz que se o elegíaco pedir mais elogio, faça-se um Mimnermo (vv. 100-101: si plus adposcere visus, / fit Mimnermus: “se parece pedir mais, torna-se um Mimnermo”). É famoso o verso em que, dirigindo-se a Pôntico, sentencia Propércio: “no amor mais vale um verso de Mimnermo do que Homero” (1. 9. 11: plus in amore valet Mimnermi versus Homero). Se alguns críticos apontam dificuldades cronológicas para a identificação, dizendo, por exemplo, que o livro 4 de Elegias de Propércio é posterior à epist. 2. 2, é provável, porém, que Horácio, fazendo parte do mesmo círculo, já conhecesse o poema em que o elegíaco se identifica como Calímaco. Que se possa, portanto, pensar em Propércio na passagem horaciana não parece improvável, mas não significa necessariamente que haja crítica séria ao colega; antes, parece ser referência cheia de ironia em que Horácio ri de ambos, dele mesmo e do colega, como já fez até mesmo com Mecenas (cf. Epodos 3). Seja ou não Propércio, Horácio quer se ver livre das recitações poéticas e, portanto, deseja abandonar a poesia.
Antes de passar à busca dos “ritmos e medidas da verdadeira vida”, o poeta, alfim, propõe alguns parâmetros para a composição do “poema legítimo”, isto é, de acordo com as regras da arte (v. 109: at qui legitimum cupiet fecisse poema: “mas aquele que deseja fazer um poema legítimo”). Antes de mais nada, o poeta deve ser “honesto censor” (v. 110: censoris … honesti) da própria poesia, eliminando as palavras impróprias. Os primeiros preceitos desta breve poética dizem respeito à doutrina da ?????? ???????? (“escolha das palavras”) ou dos verba singula (“palavras isoladas”), tendo cuidado em usar as palavras correntes (vv. 111-114), as arcaicas (vv. 115-118) e as novas (v. 119). Nos vv. 122-123 passa à doutrina da ???????? ???????? (“combinação de palavras”) ou dos verba coniuncta (“palavras unidas”). Em suma, quem deseja fazer poema legítimo deve, antes de mais nada, conhecer a arte. Não à toa tal passagem é lida em correlação com a Epístola aos Pisões, texto de que trataremos em breve e voltaremos aos preceitos horacianos apenas elencados aqui. Horácio, então, conclui ironicamente, como bem observou pseudo-Acrão (III-IV d.C.), a passagem (epist. 2. 2. 126-128):
praetulerim scriptor delirus inersque uideri,
dum mea delectent mala me uel denique fallant,
quam sapere et ringi
(preferiria parecer delirante escritor e sem arte,
conquanto meus vícios me deleitem ou, então, me enganem,
a saber e irritar-me.)
Justamente saber é o que deseja Horácio, como vimos, na primeira passagem que citamos da epist. 2. 2 (v. 141: nimirum sapere est abiectis utile nugis: “decerto, ser sábio, afastadas as nugas, é útil”). Sem querer forçar a leitura dessa passagem, em que claramente Horácio propõe o abandono da poesia para aprender “os ritmos e as medidas da verdadeira vida”, ou seja, deseja dedicar-se à filosofia, o poeta na Epístola aos Pisões dirá que “o princípio e a fonte do escrever corretamente é o saber” (v. 309: scribendi recte sapere est et principium et fons). Não sem importância, na sequência (v. 310), acrescenta que “os escritos socráticos poderão mostrar a matéria” (rem tibi Socraticae poterunt ostendere chartae); estudada a matéria, seguir-se-ão as palavras, sem esforço. Assim, parece, pois, que, antes de escrever, é necessário dedicar-se a saber, ser sábio, estudar as matérias, e não se comportar como o homem de Argos que julgava ouvir os atores trágicos em um teatro vazio. A anedota, narrada na continuação da epístola (vv. 128-140), ilustra como não saber é agradável e a mais doce ilusão (v. 140: mentis gratissimus error). Daí, como consequência, na segunda metade da epist. 2. 2 (vv. 141-216), abandonados os versos, propõe a aprender “os ritmos e as medidas da verdadeira vida”; parte que discutiremos em outra oportunidade, quando estivermos, como Horácio, menos preguiçosos… e os leitores estiverem menos cansados.
Como conclusão, vamos ao encerramento da epístola que, como dissemos, parece ser um discurso de fechamento da carreira, exigindo do leitor a retomada de toda produção anterior, como procuramos mostrar; discurso de quem, já próximo do fim – da vida e das letras –, relembra o próprio percurso, fazendo um breve resumo da vida (vv. 41-52), desde sua formação em Roma e Atenas, passando pelas tempestades da guerra civil, até o momento presente, poeta de Augusto, escritor de sátiras, iambos, odes e epístolas; discurso ainda de quem se afasta da poesia, abandona os versos, para vê-la melhor. Quase como um epitáfio, na imagem de quem se retira satisfeito do banquete como quem se retira da vida – retomando não só Lucrécio (Da natureza das coisas, 3. 938-962), mas também o início de sua carreira (Sátiras 1. 1. 117-120) –, Horácio abandona não apenas a poesia, mas a própria vida forjada pelos versos. Assim termina, deixando o “tempo de vida” (aetas) como ponto final (vv. 213-216):
vivere si recte nescis, decede peritis.
lusisti satis, edisti satis atque bibisti:
tempus abire tibi est, ne potum largius aequo 215
rideat et pulset lasciva decentius aetas
(se não sabes viver de modo reto, cede aos peritos.
Brincaste assaz, comeste e bebeste assaz;
é tempo de partires, para que a idade, mui decorosamente
brincalhona, não ria de ti, bêbado mais que o justo, e te expulse.)
Para Saber Mais
Para ler Epístolas 2. 2 em português, mencionamos novamente a tradução de R. M. Rosado Fernandes, em Horácio. Arte Poética, Lisboa, 2012, 4ª. Revista e Ampliada, em que se incluem traduções também de Sátiras 1. 4 e Epístolas 2. 1, a Augusto, com introdução e notas do tradutor. Essa edição, como dissemos em texto passado, infelizmente traz alguns problemas também no texto latino estampado da carta aqui comentada. Corrijam-se os seguintes erros: v. 54: seribere por scribere (p. 88); v. 60: eale por sale (p. 88); v. 72: redensptor por redemptor (p.90); v. 102: vatium por vatum (p. 92); v. 111: aplendoris por splendoris (p. 92); v. 127: deleetent por delectent (p. 94); v. 145: haeo por haec (p. 96); v. 151: cararier por curarier (p. 96); v. 186: agram por agrum (p. 98); v. 203: viribns por viribus (p. 100); v. 207: fonnidine por formidine (p. 100). Elencamos aqui alguns poucos artigos para aprofundar a discussão: Freudenburg, K. 2002: “Writing to/through Florus: Criticism and the Addressee Epistles 2. 2”, Memoirs of the American Academy in Rome, 47, pp. 33-55; McGann, M. J. 1954: “Horace’s epistle to Florus (epist. 2.2)”, Rheinisches Museum für Philologie, 97, pp. 343-358; Pasoli, E. 1965: “Per una lettura dell’epistola di Orazio a Giulio Floro (Epist. II, 2)”, Il Verri, 19, pp. 129-141; Rutherford, R. B. 1981: “Horace, Epistles 2. 2: Introspection and Retrospective”, The Classical Quarterly, 31, pp. 375-380. Sobre o trecho “autobiográfico”, ver Fraenkel, E. 1957: Horace, Oxford: Clarendon Press, pp. 7 e ss. Para as imitações de Alceu e Safo em Horácio, ver Campbell, D. A. 1978: “Aeolium carmen: Horace’s Allusions to Sappho and Alcaeus”, Echos du Monde Classique, 22, pp. 94-98. Para as edições e comentários de referência, ver nosso último texto, em que mencionamos alguns estudos nacionais.
O leitor deve ter notado o uso de certas palavras arcaicas no nosso texto, que se deve não só à recomendação horaciana, como vimos (vv. 115-118), mas também à presença, incomum no texto horaciano, de dois infinitivos arcaicos muito próximos (v. 148: faterier por fateri, “confessar”, e v. 151: curarier por curari, “ser curado”). A particularidade elocutiva não deixou de ser observada nos principais comentários, que dá ao texto a gravidade própria de um discurso ético. Assim também há aqueles que buscam em Horácio algum verso célebre para dar solenidade e ares de erudição, mas, prometendo grandes coisas, ao anunciar um passo horaciano, produzem um ridículo rato!