por Gabriel Nocchi
O poema latino conhecido como “Alceste de Barcelona” (Alcestis Barcinonensis) foi conservado em uma única cópia: um manuscrito do século IV d.C. proveniente do Egito e atualmente conservado na abadia beneditina de Santa Maria de Montserrat, próxima a Barcelona . Composto em hexâmetros datílicos, o verso canônico da épica latina, o poema, cujo autor é desconhecido, oferece uma versão do mito de Alceste, rainha da Tessália, que decide morrer no lugar de seu marido, o rei Admeto. Contrariamente à tragédia de Eurípides (480-406 a.C.), em que o herói Hércules, cheio de admiração pelo auto-sacrifício de Alceste, a resgata do inferno e a devolve a seu esposo, o poema anónimo não parece ter um final feliz. Tendo feito os preparativos para o seu proprio funeral, Alceste despede-se dos filhos e do marido e sente a morte apoderar-se do seu corpo. Não é impossível, porém, que o texto do manuscrito seja incompleto e que o fim original do poema tenha sido perdido.
A construção do poema é fortemente influenciada pelo gênero da etopéia, um tipo de exercício retórico popular na Antiguidade tardia, que consiste na apresentação ou imitação do caráter e das emoções de um personagem em um discurso em primeira pessoa. Figuras mitológicas eram frequentemente usadas por estudantes de retórica para esse tipo de exercício. A “Alceste de Barcelona” é, de fato, composta de uma série de discursos de cinco personagens—Admeto, o deus Apolo, o pai e a mãe de Admeto e Alceste—intercalados com intervenções do narrador. Notam-se no texto elementos típicos do gosto literário da Antiguidade tardia e a influência das correntes filosóficas helenísticas. O discurso da mãe de Admeto (v. 46-70), por exemplo, reflete princípios do estoicismo, tais como foram explicados por Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.). O gosto pelo patético e a representação de emoções observam-se na imploração de Admeto (v. 26-32) e no solilóquio de Alcetse (v. 72-102). Estima-se que o poema tenha sido composto no século III ou IV d.C.
Publicado pela primeira vez em 1982 com uma tradução em catalão, a “Alceste de Barcelona” foi traduzida em oito línguas. Esta é a primeira tradução em língua portuguesa. Os colchetes indicam as lacunas no texto do manuscrito.
O Alceste de Barcelona
ADMETO:
1. « Mestre do loureiro conhecedor do futuro, filho de Latona, Délio, Peã,
2.invoco-te e os loureiros pelo teu nome protegidos :
3. Apolo, dá a saber o dia, dá a conhecer quando
4. as Irmãs romperão os fios do destino de Admeto,
5. qual será o fim de minha vida, a quem me abandonarei após a realização do meu destino,
6. anuncia quando minh’alma há de subir aos ares estrelados.
7. Embora seja um tormento para o homem saber se a vida futura será próspera
8. ou se o dia será sombrio e a vida pálida,
9. revela-o todavia ; se te prestei culto, se te recebi como servo
10. amedrontado e acolhi-te como chefe dos rebanhos após as acusações dos deuses
11. e se eu mesmo te ordenei a dar teus gritos de júbilo nas florestas. »
12. Ai ! Peã que conhece o futuro diz:
APOLO
« Lamento, mas confessarei a verdade
13. : a morte aproxima-se e chegou tua hora, infeliz, de partir para o reino do Aqueronte
14. e de abandonar a luz que te é cara.
15. Mas, se alguém puder sofrer as penas da morte no teu lugar
16. e atrair para a si o fado iminente,
17. tu poderás doravante viver o destino de um outro.
18. Como teu pai e tua cara mãe ainda estão em vida,
19. E tua esposa e teus filhos ainda jovens, busca alguém que no teu lugar
20. Feche os olhos e que, aceitando teu fado no teu túmulo, seja cremado. »
21. Ele retorna ao lar após essas palavras; infeliz,
22. deita-se em seu rico leito e enche de prantos sua morada.
23. Ao seu filho o pai acorre tristemente e,
24. suspirando do fundo do peito, pergunta a causa das lágrimas.
25. Ele informa ao pai os sofrimentos decididos pelas Irmãs :
Admeto
26. « É chegado o dia que me levará, pai ; prepara o funeral do teu filho.
27. Esse é o ultraje que as Parcas revelaram e que o nosso querido Apolo,
28. contra a vontade, pai, faz-me saber. Mas, tu podes, pai, restituir-me a vida,
29. tu que és irrepreensível, tu podes, se me deres tempo,
30. se consentires sofrer no meu lugar
31. a morte súbida e o túmulo e conceder a luz
[ao teu filho. »
32. Assim falou esse pai, não como um pai :
PAI
« Se me pedires os olhos,
33. conceder-te-ei, e uma mão que, como parte do meu corpo, me é cara,
34. filho, se quiseres, dar-te-ei : viverei com a outra mão.
35. Se eu não tiver olhos, parecerei ainda assim ser algo.
36. Nada serei, se der aquilo que sou. Quão pouca
37. é a vida que resta à minha velhice ; queres tomar-me uma vida tão curta ?
38. Por quê ? Porque te dei o reino, deixei-te o castelo,
39. contente só com vida, nada me sendo mais caro que ela.
40. Depois da morte, se tu quisesses devolvê-la,
41. filho, conceder-te-ia e habitaria teu túmulo,
42. destinado a ver a luz do dia após a morte. » Rejeitado,
43. ele volta-se aos pés da mãe, adora-lhe os passos, lisonjeando-a,
44. e derrete-se em lágrimas em seu seio. Ela foge do filho suplicante ;
45. perversa e culpada, nada a vence, nem a piedade, nem os prantos.
46. Outrossim, ela o censura nestes termos :
MÃE
«Negligente de teus pais
47. tu, celerado, podes contemplar a morte de tua mãe ?
48. Tu podes alegrar-te com o meu túmulo ? Tu, último dos homens, impeles as chamas a destruir [este seio,
49. o fogo a consumir o ventre
50. que te engendrou, inimigo da minha
51. luz, inimigo, meu filho, da luz do teu pai. Eu gostaria de conceder-te a vida,
52. se pudesses habitar sempre a morada eterna.
53. Por que temes a morte para a qual nós nascemos ? Foge para longe,
54. lá onde o Parto, o Medo, o Árabe,
55. onde o pássaro selvagem t55 nasce e para nós de novo <…>:
56. lá, meu filho, esconde-te, <…> teu destino seguir-te-á.
57. Nada é perpétuo, nada foi criado sem morte :
58. a luz é roubada, a noite levanta-se ; mesmo os anos morrem.
59. A terra não devora os lugares que antes criara ?
60. O próprio pai do mundo, diz-se, partiu, enterrado,
61. e seu irmão, punido, desceu ao reino do Estige.
62. A tradição diz que Baco pereceu por um artifício dos Titãs,
63. e que Ceres e Vênus atravessaram os vaus do Lete.
64. Por que eu sofreria por um filho que o destino reclama ?
65. Por que eu não choraria como choraram
[outras antes de mim ?
66. Diômeda perdeu seu filho, Agave despedaçou o seu,
67. Altéia matou seu filho, a deusa Ino matou o seu,
68. Progne chorou Itys e recolheu-o ensanguentado.
69. Caem, perecem, morrem e são enterradas
70. todas as coisas que <…> ou o ar errante. »
71. Quando a filha de Pélias viu que eram tais os prantos de seu esposo :
ALCESTE
72. « A mim, » exclama, « leva-me a mim, esposo, leva-me ao sepulcro,
73. concedo de bom grado, Admeto, dou-te o tempo que me resta ;
74. no lugar do esposo, a esposa.
75. Se venço a mãe, venço pela piedade os pais ;
76. se morro, minha glória será grande ; após meu funeral,
77. não mais existirei, mas meu feito será narrado todos os anos
78. e sempre serei a esposa piedosa. Não verei tristemente os rostos
79. sombrios, não chorarei todo o tempo
80. nem conservarei tuas cinzas. Longe de mim uma vida
81. de lágrimas ! Agrada-me essa morte. Leva-me ao sepulcro ;
82. é melhor que me transporte Porthmeus do véu negro.
83. Só isto eu peço na hora de morrer, que, após minha morte, t
84. nenhuma outra te seja mais doce, que nenhuma esposa mais
85. querida cubra os meus passos. E tu, não me adores somente por meu nome :
86. imagina que me deito contigo à noite.
87. Não desdenhes de tomar sobre teus joelhos as minhas cinzas,
88. de acariciá-las com uma mão destemida, de umidificar minhas cinzas
89. com perfume e de cercar minha lápide com flores frescas.
90. Se é verdade que as sombras retornam, virei deitar-me contigo à noite.
91. Porém, qualquer que seja minha forma como esposa,que tu não me abandones
92. e que não sofra porque abandono a vida por ti.
93. Antes de todos, confio-te os testemunhos piedosos, nossos filhos,
94. testemunhos que, fecundada somente por ti, por ti
95. engendrei : assim, que esta morte não cause lamentações ;
96. eu não pereço nem morro. Crê, conservo-me,
97. eu que, moribunda, deixo filhos tão parecidos contigo.
98. Peço que a mão indigna de uma madrasta não os traia,
99. pequenos como são, e que a sombra piedosa da mãe não deva vingar seus filhos chorosos.
100. Se negligenciares esse dever, minha doce imagem
101. não virá à noite nem ao menos brevemente ; quanto a ti, aprende a morrer
102. por teu caro esposo, aprende o exemplo da piedade.
POETA
103. A noite já se pintava de estrelas e o sono alado
104. enchera todas as coisas de orvalho soporífero.
105. Apressando-se em direção à morte, Alceste estava deitada colada ao esposo
106. e via, moribunda, as lágrimas do homem.
107. Ela ordena aos filhos e ao marido de chorarem por ela com frequência ;
108. dá ordens aos servos, organiza, alegre, seu funeral
109. com leitos pintados de pavões coloridos,
110. folhagens exóticas e aromas, incenso e açafrão;
111. de um ramo úmido, ela raspa um balsamo pálido;
112. reduz em pó o amomo tirado de um ninho ;
113. raspa canela seca de ramos púrpuros
114. e dispõe todos os aromas que queimarão consigo.
115. Aproximava-se a hora que ia roubar a luz da jovem,
116. e a rigidez alastrava-se sobre suas mãos e tudo destruía.
117. À beira da morte, ela olhava suas unhas azuladas
118. e seus pés gelados. Opressa pelo frio fatal,
119. a imagem da fugiente refugia-se no peito de Admeto.
120. Quando ela percebe tais sensações :
ALCESTE
« Esposo, caríssimo
esposo »,
121. exclama, « estou sendo levada. Ela veio, a morte extrema veio,
122. e o deus infernal há de encerrar […] meus membros no sono eterno. »
Leia mais: