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O amor bruxo

Vaso de figuras vermelhas representando Zeus, Afrodite e Eros. A deusa tem na mão uma corda à qual está atada uma roda, provavelmente uma iunx. Apúlia, circa 350-340 a.C.

por Gabriel Nocchi Macedo

O termo “simpatia” designa, no vernáculo popular brasileiro, um pequeno ritual supersticioso realizado com o intento de se obter, por intermédio mágico, algum benefício. Ainda que se refira a algo que, hoje em dia, poucos levam a sério, o termo tem uma origem erudita. De fato, o conceito de “magia simpática” foi formalizado pelo grande antropólogo britânico James George Frazer (1854-1941), no seu colossal estudo O ramo de ouro (1890), obra pioneira do estudo de mitologia e religião comparada. Segundo princípio da simpatia (do grego sympatheia, ‘conformidade de sentimentos’, ‘afinidade’, ‘acordo’), pode-se criar entre acontecimentos uma conformidade ou afinidade invisível: uns podem agir sobre os outros à distância, sem que haja entre eles qualquer relação física ou lógica. Assim, o ato de colocar uma estatueta de Santo Antônio de cabeça abaixo em um copo d’água tem por consequência o início de uma nova relação amorosa.

Como demonstrou Frazer, a “lei da simpatia” é presente em quase todas as culturas humanas desde de suas mais primitivas manifestações. O exemplo acima revela um dos objetivos mais comuns da magia simpática: o amor. Encantamentos, poções, amuletos foram (e talvez ainda sejam) recursos comuns para trazer de volta um amor perdido, para despertar desejo ou afeto em outros, e para vingar-se de um amor traído. Os antigos gregos, a quem devemos o desenvolvimento do pensamento racional e do método científico, não se isentaram, porém, a essas práticas, como dão a ver grandes textos da sua literatura.

Na quarta Pítica, o poeta lírico Píndaro (518 – 438 a.C.) descreve como a deusa Afrodite trouxe dos céus o pássaro torcicolo (iunx, em grego) atado a uma roda e o presenteou a Jasão como um instrumento mágico, graças ao qual ele conquistará a princesa Medéia:

Píndaro, Pítica 213-219

(…) e a dama das mais agudas flechas, a deusa de Chipre,

do alto Olimpo trouxe a multicolorida iunx,

presa aos quatro pregos de uma roda inescapável,

um pássaro louco, pela primeira vez à humanidade,

e ensinou a Jasão o conhecimento das rezas e dos encantamentos,

para que ele prive Medéia do respeito por seus pais

e que o desejo de [partir à] Grécia a sacuda, em seu ardente coração,

com o chicote da Persuasão.

Essa é a mais antiga descrição conhecida do tipo de magia amorosa extremamente popular na Antiguidade, o rito de agogè. O objetivo dessa prática é conduzir (agô, em grego, ‘conduzir’, ‘levar’) a mulher amada da sua demora até o homem que a ama, abandonando, se necessário, seus pais ou seu marido. O termo iunx incorporou-se à terminologia amorosa do grego: do nome do pássaro mágico de Píndaro, a palavra passou a designar tão somente a roda à qual ele fora pregado e que era usada como um aparelho mágico (ver imagem); em uma acepção mais geral, iunx passou a significar qualquer encantamento ou charme que provoque atração.

Ao poeta siciliano Teócrito (século III a.C.) devemos uma detalhada descrição de um rito de agogè realizado por uma mulher: na ilha de Cos, Simaita executa uma série de rituais, em uma encruzilhada próxima a um cemitério, para trazer de volta seu amante volúvel, o atleta Delphis. Com ajuda de uma serva, ela queima louro, cevada e uma figura de cera, invocando não somente Afrodite, deusa do amor, mas também a terrível Hécate, divindade associada à magia e às fronteiras entre o mundo dos vivos e dos mortos (por isso, a encruzilhada). Em um refrão repetido dez vezes ao longo do poema, a narradora clama o poder mágico da iunx.

Teócrito, Idílio 2, 23-32

Delfis injuriou-me; eu por Delfis queimo o louro

e como ele crepita com alto som ao pegar fogo

e de repente destrói-se nas chamas, e não vemos nem mesmo as cinzas,

que assim se destrua o corpo de Delfis em uma flama.

Tu, iunx, arrasta-o até minha casa, o meu homem!

Como eu derreto esta cera com ajuda da deusa [Hécate],

que assim derreta imediatamente de amor Delfis de Mindos

e como esta roda de bronze gira com o poder de Afrodite

que assim ele gire perante a minha porta.

Tu, iunx, arrasta-o até minha casa, o meu homem!

Nesse trecho ilustra-se um outro princípio da magia simpática descrito por Frazer, a lei da similaridade, segundo o qual, o efeito de uma ação é semelhante à ação mesma. Em outras palavras, para se obter um resultado qualquer, basta imitá-lo. No poema, o princípio se traduz em metáforas. Simaita queima folhas de louro para que seu amante queime por ela; ela derrete uma figura de cera para que ele derreta de amor. As imagens poéticas ilustram a pungência da paixão da feiticeira, cujo amor por Delfis é em si um sofrimento cuja cura só a magia pode trazer. Ao fim, Simaita proclama que, se seus ritos não forem eficazes, ela deverá matá-lo com “malvados feitiços”.

Figura de argila de uma mulher ajoelhada e perfurada por 13 agulhas. Encontrada no Egito, em um vaso de terracotta, junto a uma tábua de chumbo contendo um encantamento. Século IV d.C.

Além da literatura, conhecem-se exemplos reais de prática da magia amorosa. Em um papiro do século IV, proveniente do Egito e hoje conservado em Paris, preservou-se uma longa coleção de feitiços e hinos mágicos em grego e em egípcio. Um dos encantamentos instrui homens a “atar” a si o amor de uma mulher.

Papyri Graecae Magicae IV, 296-466

Maravilhoso feitiço para vincular uma mulher: toma cera (ou argila) da roda de um oleiro e faze duas imagens, um homem e uma mulher. Faze o homem na forma do deus Ares armado, segurando uma espada na mão esquerda e ameaçando de enfiá-la no pescoço da mulher. E faze-a com as mãos atadas atrás das costas e ajoelhada (…) Escreve na figura da mulher atraída o seguinte: na sua cabeça “ISEÈ IAÔ ITHI OUNE BRIDÔ LÔTHIÔN NEBOUTOSOUALÈTH”; na orelha direita “OUER MÈCHAN”; na orelha esquerda “LIBABA ÔIMATHOTHO”; no rosto “AMOUNABRÈO”

(…)

E toma treze agulhas de cobre e finca uma no cérebro dizendo “Eu perfuro teu cérebro, nome da mulher”; finca duas nas orelhas, duas nos olhos, uma na boca, uma na cintura, uma nas mãos, duas nos genitais, duas nas solas dos pés, dizendo cada vez “Eu perfuro tal e tal membro dela, nome da mulher, para que ela se lembre de mim e só de mim, teu nome”.

E toma uma tábua de chumbo e escreve o mesmo feitiço e recita-o. Ata a folha de chumbo às imagens com um fio do tear após ter feito 365 nós, dizendo, como aprendeste “ABRASAX, segura-a forte”. Coloque [os objetos], ao pôr-do-sol, ao lado do túmulo de alguém que morreu prematuramente ou de maneira violenta e põe também flores da estação.

Aqui vê-se a intensidade quase violenta da magia erótica dos antigos gregos. O que se busca é a total submissão do alvo do feitiço (a mulher) ao feiticeiro (o homem). As estranhas palavras que se devem escrever na imagem são voces magicae (“vozes mágicas”), sequências de sons sem significado que teriam, de acordo com a crença mágica, poderes sobrenaturais, exatamente como “abracadabra” e “hocus pocus”. Os praticantes de magia, antigos como modernos, não requerem explicações; eles executam os ritos necessários. O significado das voces não importa, tão somente o poder que elas contêm.

O amor que Jasão, Simaita e os usuários do papiro desejam suscitar em seus amados é designado em grego pela palavra erôs (daí “erótico” e derivados). Trata-se de um tipo de amor particular, caracterizado como uma pulsão sexual, uma intensa paixão. Outros ritos mágicos buscam, porém, um outro amor, philia, definido como ‘afeição’ ou ‘carinho’. Esse tipo de magia é praticado sobretudo por mulheres que buscam reestabelecer relações rompidas ou trazer de volta a harmonia e a amabilidade ao seu casal. Como na magia erótica, o objetivo é submeter o alvo do feitiço ao controle do feiticeiro, mas com rituais, imagens e uma linguagem menos violentos. Amiúde, a magia de philia envolve amuletos, talismãs e poções, ou seja, objetos que de alguma forma garantem a afeição e a proximidade do amado. O autor de um tratado sobremoral, erroneamente atribuído a Aristóteles, narra o caso, presumidamente real, de uma mulher ateniense acusada de homicídio e absolvida:

Magna Moralia XVI

Diz-se que uma vez uma mulher deu a beber uma poção a um homem, então o homem morreu por efeito da poção, mas a corte do Areópago absolveu a mulher. Eles liberaram a acusada por nenhuma outra razão, mas somente porque ela não agiu deliberadamente. Ela deu-lhe a poção para obter afeto (philia), mas enganou-se. Por isso, decidiu-se que o ato não foi voluntário, porque ela não deu a poção com o intento de assassiná-lo.

Uma outra tentativa falida de obter afeição masculina é o motor d’As Traquínias, grande tragédia de Sófocles (497/6 – 406/5 a.C.). Tornando a casa após uma campanha militar, Héracles traz consigo a bela Iole, sua nova favorita. A esposa do herói, Dejanira, está acostumada às infidelidades do marido, mas sente-se ameaçada pela presença da amante em sua própria casa. Ela decide usar um feitiço que lhe ensinara o centauro Nessos para recuperar o afeto conjugal:

Sofócles, As Traquínias, 568-578

Dejanira

Morrendo, a fera [Nessos] disse-me: “Filha do velho Oineus, tu tirarás vantagem da minha viagem, se me escutares, pois és a última pessoa que carrego. Se tomares em tuas mãos o sangue coagulado ao redor de minhas feridas—onde a criatura de Lerna, Hidra, lançou flechas de negro fel—ele será para ti um encantamento para o coração de Héracles, de modo que, onde quer que ele olhe, nunca amará uma mulher mais que ti”.

Mas Nessos a enganou. O centauro estava carregando Dejanira através de um rio quando Héracles, crendo que ela estava em perigo, lançou contra eles as flechas da hidra. O encantamento é sua vingança, pois, ao dar-lhe a túnica banhada no sangue do centauro, Dejanira provoca a morte de Héracles.

Em conclusão, aos leitores sem sucesso no Tinder e companhia, ou que se cansaram de discutir a relação sem resultados, sugiro voltar aos velhos textos clássicos em busca de simpatias (de preferência, uma que não envolva poções ou sangue). A eficiência eu não garanto, mas o prazer da leitura vale indiscutivelmente a pena.

Gabriel Nocchi Macedo

Gabriel Nocchi Macedo é doutor em Línguas e Literaturas Clássicas pela Universidade de Liège (Bélgica) e leciona atualmente na Universidade do Michigan.