Administração PúblicaLiteratura

Uma manhã com o decano da ABL

por João Villaverde

Da última vez que conversou com Octavio, José percebeu que a voz ao telefone estava tão fraca que era quase impossível entender o que era dito. O fim estava próximo. José queria visitar o amigo de tantos anos e se preparara para visitar a Cidade do México. Ligou pouco antes e conversou com Marie-José, esposa de Octavio. “Ela me disse que a condição dele era muito frágil e pediu que eu não o visitasse.” José acatou e não viajou. Octavio faleceu pouco depois, aos 84 anos.

Octavio Paz, prêmio Nobel de Literatura, foi um dos maiores escritores de todos os tempos. Sua obra é menos conhecida no Brasil do que deveria ser, a despeito de uma recente – e linda – edição de As armadilhas da fé (Editora Ubu). Marie-José Tramini, francesa naturalizada mexicana, sua segunda esposa, viveu vinte anos a mais que o autor mexicano.

José Sarney, o amigo de Octavio, contou-me essa história durante conversa de 1 hora e 35 minutos que tivemos em sua residência, em Brasília, em abril. O que você, que lê agora este texto, encontrará aqui é meu depoimento sobre essa conversa com o grande escritor maranhense e ex-presidente da República.

Foto de Maíra Ribeiro, Brasília, 13/04/2022

Sim, leitor e leitora cá do Estado da Arte. José Sarney. Ex-presidente do Senado por quatro ocasiões, ex-governador do Maranhão e um dos mais longevos parlamentares da história brasileira (tendo ocupado cargos públicos de maneira ininterrupta entre 1954 e 2015), Sarney é mais conhecido do público brasileiro por suas decisões como político do que por sua obra literária.

José Sarney, escritor maranhense, é responsável por admirável obra literária, que vai da poesia ao romance, passando por contos e crônicas. Dois de seus livros pertencem ao panteão de grandes obras literárias do país: Norte das Águas (1970) e O dono do Mar (1995). O primeiro, que resenhei neste espaço dois anos atrás, é um livro de contos que retratam os homens e mulheres do Maranhão rural e interiorano. O segundo é um romance extraordinário, que navega, a partir do realismo mágico, pela vida de pescadores maranhenses.

Octavio Paz, o amigo de quem José Sarney não conseguiu se despedir 25 anos atrás, escreveu o seguinte sobre O dono do Mar: “José Sarney, poeta e defensor da liberdade”. Sobre O dono do Mar, aliás, Sarney colecionou admiradores marcantes: o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss classificou o livro como uma “obra monumental”; Darcy Ribeiro anotou ser Sarney “o intérprete o intérprete de uma das matrizes básicas da cultura brasileira, a dos pescadores; equivalente ao que Zé Lins é para o povo dos engenhos e Jorge Amado para o gentio dos cacauais.”. Sobre Norte das águas, livro que o lançou, Jorge Amado disse estar diante da “revelação de um grande contista, um grande ficcionista brasileiro”.

Por conta da política, no entanto, a obra literária de Sarney é muito menos lida por aqui do que deveria ser. Ao leitor e à leitora, uma lembrança: José Sarney foi escolhido imortal da Academia Brasileira de Letras em 1980, muito antes de sua eleição (junto de Tancredo Neves) para a Presidência da República.

O escritor José Sarney foi especialmente vilipendiado por críticos do presidente – para atacar seu governo, usaram sua obra. Uma artimanha lamentável. A atuação política também fez com que as editoras locais pouco se esforçassem para caprichar na edição de seus livros: Norte das Águas é um, por exemplo, que merece uma reedição cuidadosa.

Como admirador da obra literária de José Sarney, venho escrevendo nos últimos anos sobre seus livros. Tive entusiasmada acolhida do editor Gilberto Morbach, aqui no Estado da Arte. Após minha resenha, publicada em 2020, também fiz uma entrevista sobre literatura com Sarney, aqui publicada em 2021. Busquei, então, o incansável Pedro Costa, fiel amigo do escritor, para solicitar uma conversa presencial. Agradeço ao Pedro o empenho para viabilizá-la. O encontro foi marcado e, no meio da manhã do dia 13 de abril deste 2022, uma quarta-feira, lá estava eu nos jardins ao lado de fora da residência de José Sarney, em Brasília, aguardando a hora certa.

O encontro

Cheguei com quarenta minutos de antecedência. Meu excesso de zelo foi equiparado ao de Maira Ribeiro, fotógrafa de Brasília, que chegou pouco depois. A larga copa do abacateiro concedeu sombra diante do forte sol daquela manhã. Era possível imaginar que o silêncio seria grande, dada a proximidade com o lago Paranoá em uma área de residências mais isoladas. Não era o caso: o som do cortador de grama era alto naquele momento.

Maira e eu conversávamos quando a porta principal foi aberta pela primeira vez. Na ocasião, a cadelinha Preta saiu em disparada para vasculhar a grama da rua. Ela foi indiferente a nossa presença, em posição distinta daquela do encarregado por aparar o verde interno, que nos cumprimentou à distância enquanto tentava convencer a cadelinha a voltar para dentro. Ela voltou e a porta foi fechada mais uma vez.

Onze em ponto, atravessamos a rua e tocamos a campainha. Horário marcado, tudo certo. Quem abre a porta é André Luiz Medeiros, assessor cedido pelo Senado para acompanhar o escritor que presidiu a Casa por quatro mandatos. Filho de pai mineiro e mãe maranhense, André assessora José Sarney há alguns anos. Durante toda a nossa permanência na residência, André esteve presente, de forma solene e extremamente educada.

Um, dois, três, quatro degraus da curta escadinha que leva à porta da casa em si, à direita. Entramos, Maira e eu, direto em uma larga sala em que tons de marrom claro e amarelo predominam nas paredes, no piso e nos móveis de madeira, com dezenas de molduras penduradas – registrando telas e fotos do escritor, sua esposa Marly e a família. À esquerda, uma generosa varanda que parece percorrer toda a residência. Sentado em uma poltrona, com os jornais do dia dispostos no criado ao lado, estava o escritor.

José Sarney estava vestido de forma mais social do que nas duas ocasiões em que se deixou fotografar nos dias anteriores. Apenas 24 horas antes de eu entrar em sua residência, Sarney recebera o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) naquela mesma varanda. Na semana anterior, na sala interna que eu acabara de percorrer, Sarney conversara com a senadora Simone Tebet, então pré-candidata presidencial pelo MDB. Em ambas as ocasiões, Sarney trajava um blazer formal, com calça social. As imagens desses dois encontros políticos revelam, ao fundo, os quadros a que me referi há pouco.

Diante de mim, o escritor usava camisa xadrez com tons de azul e leve roxo e uma jaqueta acolchoada para proteger do vento que se despedia do frio da manhã. A foto de Maira Ribeiro não deixa minha memória falhar.

Prestes a completar 92 anos, José Sarney pediu que nos acomodássemos na varanda, para onde ele voltou após os cumprimentos iniciais. Fiquei diante dele, com o jardim interno ao fundo, às suas costas.

Para abrir a conversa, contei ter lido todos os seus livros, tendo Norte das Águas e O dono do Mar como meus preferidos. Enquanto me olhava, perguntei qual era o preferido dele, como autor. Imaginei diversas respostas evasivas para essa pergunta, mas não foi o caso: “O dono do Mar”, respondeu, sem pestanejar. Em seguida, ele entabulou a história sobre como escrevera o romance: à noite, entrando na madrugada, após a jornada de trabalho como senador. Então, ele contou sobre o renascimento de Querente, uma das passagens marcantes no romance.

“O Querente já tinha morrido, mas em uma ocasião, por volta das 2 horas da manhã, enquanto eu trabalhava no livro, é como se ele surgisse diante de mim pedindo para voltar ao livro. E aí ele voltou”, contou Sarney.

A bola voltou para mim. Perguntei a ele sobre o paradeiro de um romance misterioso, que tinha título e tudo (“Major Sertório, 16”). Contei a ele ter descoberto sobre o livro a partir de um registro no segundo volume dos discursos de Sarney no Senado, editado em 1981. “Escrevi todo ele, mas decidi não publicar. Está guardado em algum lugar”, respondeu, fazendo gestos com a mão esquerda como se estivesse apontando para algum cômodo interno na residência.

Ele, então, me perguntou se eu tinha lido o livro mais recente, Galope à Beira-Mar, lançado em 2018. Trata-se de um conjunto de notas, em lembranças de conversas e causos com políticos, jornalistas, escritores e familiares. Respondi que sim, reforçando que tinha, de fato, lido toda a obra literária – romances, poesias, contos, crônicas e notas de memórias. Mencionei, então, uma de minhas histórias preferidas do livro em questão: a que Sarney, junto de Carlos Lacerda, conversa com Otávio Mangabeira em hotel de luxo no Rio de Janeiro (então capital do Brasil), onde Mangabeira morava.

Sarney educadamente me interrompeu e então contou a história, preenchendo com viva memória os detalhes que eu me esquecera, inclusive imitando, com as mãos, o movimento que Mangabeira fez a eles, dentro do Hotel Glória, no fim dos anos 1950: aquele gesto que todos fazemos com as mãos abertas, fazendo os dedos tocarem um nos outros, em movimento de ir e vir, como quem diz “tanto faz”. Enquanto repetia o gesto de Mangabeira diante de mim, Sarney repetia as palavras que ouviu dele: “na minha idade, eu nem sei mais quem paga as minhas contas.”.

Dedicatória de Jorge Amado logo na abertura de seu romance O Sumiço da Santa (Record e Companhia das Letras).

Os 10 mil livros

O escritor contou que são mais de 10 mil livros em sua biblioteca particular, organizada majoritariamente em São Luís, Maranhão. São nove décadas de livros comprados em livrarias e sebos, no Brasil, em Portugal e na França, principalmente. O escritor também tem guardado em um cofre os originais de Espumas Flutuantes, manuscritos por Castro Alves em 1870. José Sarney ficou especialmente emocionado ao mencionar essa joia. Perguntei o que ele pretendia fazer com os originais no futuro. Ele respondeu: “entendo que eles deveriam ficar na Bahia, como patrimônio do povo, mas a verdade é que hoje em dia ninguém mais se interessa por escritores e obras grandiosas como se interessavam no passado”.

Foi José Sarney quem estimulou Josué Montello, conterrâneo e igualmente imortal da Academia, a escrever sua obra maior, Os Tambores de São Luís (1975). “Estávamos jantando, ele e a esposa, eu e Marly, em minha residência, quando contei a ele que os processos originais da Baronesa de Grajaú estavam guardados comigo. Ele ficou vibrante: pediu para ler e aí o romance dele ganhou corpo e, de fato, ele escreveu um livro extraordinário”, me contou o escritor.

Sarney começou sua carreira profissional como ajudante administrativo do Tribunal de Justiça do Maranhão aos 16 anos, em 1946. Por conta do acúmulo de papeis, o Tribunal decidira na ocasião queimar processos antigos, para abrir espaço aos novos. Sarney tinha de levar de carroça para um ponto determinado e então queimar aqueles papeis centenários. Decidiu guardar alguns, entre eles o da baronesa.

Trata-se de uma história que causou escândalo em 1876, quando o processo – que consome 800 páginas – foi iniciado em São Luís (se você quiser saber mais sobre o caso, vale ler essa reportagem de Juliana Sayuri na BBC Brasil); o próprio processo, salvo da fogueira pelo jovem José Sarney, está todo digitalizado no site do Ministério Público do Maranhão.

Além de Octavio Paz e Josué Montello, nossa conversa passou também por outros amigos escritores de José Sarney, como Jorge Amado, de quem foi muito próximo. Em determinado momento, perguntei a ele se, nas décadas como senador em Brasília ou mesmo como presidente da República, tinha tido algum amigo, entre os caciques políticos, com quem conversava sobre literatura. Ele me observou e após breve silêncio, em que parecia repassar os diferentes rostos de parlamentares com quem conversou, respondeu: “não, não”.

Foi um momento raro aquele, do silêncio curto: Sarney, em sua nona década, tem pensamento ligeiro. Não me recordo de nenhum outro momento em nossa interação em sua casa que uma resposta não tenha saído rápida e articulada.  

O futuro

O escritor continua produzindo muitos textos. Além da coluna semanal, escrita para jornais maranhenses e distribuída em portais nacionais, ele ainda trabalha em dois livros. Eu sabia de apenas um, de memórias, que ele revelou estar escrevendo quando o entrevistei no ano passado. A novidade é um romance, que já tem título (O Solar dos Tarquínios), mas que está um pouco distante do término: “tenho cerca de 40% já escrito, mas este tem andado muito lentamente.”.

Mencionei ao escritor o fato de ele ter sido o relator, no Senado, da emenda constitucional que encerrou o AI-5, em 1978. Ele ficou feliz com a lembrança e, em meio a breves reminiscências daquele período, cometi uma interrupção respeitosa de suas memórias para mencionar o horror que tem sido, no presente, ver o atual governo falar em AI-5, além de ter abertamente sabotado a vacinação no Brasil em meio a uma pandemia.

“Que coisa, que coisa. O presidente atacando vacinação. Mas veja a população brasileira: foi lá e se vacinou. Mais de 80% das pessoas tomou a vacina. Isso é motivo de orgulho”, disse o escritor.

Foram 1h35 de conversa sobre literatura, sobre as obras de Sarney e sobre o país. Ao final, levantamos e ele nos acompanhou até a porta. Disse que dali alguns dias voltaria a São Luís para comemorar por lá seu aniversário de 92 anos.

Desde então, Sarney fez outra viagem importante: foi ao Rio de Janeiro para, na condição de decano da Academia Brasileira de Letras, proferir o discurso de abertura da sessão solene de 125 anos da instituição. Defendeu a democracia brasileira e o sistema eleitoral.

Um discurso de impacto: escrito por quem, como presidente da República em 1985, liderou a emenda que liberou o voto pleno. Desde então, qualquer pessoa, alfabetizada ou não, pode votar em quem desejar. Essa verdadeira democratização foi aprimorada com a implementação da urna eletrônica.

A caminhada do país, desde que a democracia verdadeiramente se instaurou, foi inspiradora. A hiperinflação, gerada pela desastrosa gestão econômica da ditadura militar, foi debelada por uma obra original de economistas brasileiros (Persio Arida e André Lara Resende). A dívida externa, que sufocava a ação doméstica do Estado brasileiro, foi solucionada a partir de renegociações transparentes feitas por civis. A censura foi terminada, bem como uma Constituição foi formulada do zero, entre 1987-88. Passamos a escolher direta e livremente os chefes dos Executivos e os parlamentares do Legislativo, nas três esferas.

A questão social, que estava em situação lastimável, foi enfrentada pela primeira vez apenas em governos civis, notadamente com o programa Bolsa Família. A educação pública passou a ganhar mecanismos institucionais (como a Lei de Diretrizes e Bases, modelada por Darcy Ribeiro em 1996; e o Fundef – depois Fundeb), além da inclusão de milhões de meninas e meninos nas escolas. O SUS foi criado e colocado de pé, permitindo que todas e todos tivessem o direito à saúde. O meio ambiente e a Amazônia, vistos pelos militares como “entraves ao desenvolvimento”, passaram a ser defendidos como marca constitutiva da cultura brasileira: o Ibama foi fundado já em 1989, pelo governo José Sarney, logo após a Constituição. Desde então, a política ambiental brasileira ganhou também o ICMBio e diretrizes modernas de acompanhamento público e privado, com uma ministra, Marina Silva, condecorada na ONU por conta de seus incríveis feitos na proteção da fauna, da flora e dos povos originários.

José Sarney fotografado por Orlando Brito – Brasília, anos 1990.

Diferentes homens e mulheres, com seus erros e acertos, escreveram essa história. Alguns avanços poderiam ser mais velozes, claro. Muitos vícios poderiam não ter sido cometidos, decerto. Mas o copo meio cheio da Terceira República, inaugurada em 1985, deve ser defendido neste momento em que o atual ocupante do governo federal busca diuturnamente negar qualquer sucesso e, pior, tenta uma volta a um passado terrível, ditatorial e radicalizado.

Nós somos maiores do que isso.

Um país que conhece a sua própria história, que abraça a sua cultura – musical, esportiva, teatral, folclórica, gastronômica, cinematográfica, plástica, literária – é um país que acerta mais. Um texto que trata de uma conversa sobre literatura com um grande escritor (ainda que pouco lido) não poderia terminar de outra forma: nenhum país pode ser uma grande potência se não for uma grande potência cultural.

João Villaverde é professor, mestre e doutorando em Administração Pública e Governo na FGV-SP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, em Nova York (EUA). É autor de dois livros e co-organizador (com Felipe Salto e Laura Karpuska) do recém-lançado Reconstrução (Saraiva, 2022), livro que traz diferentes autoras e autores tratando das políticas públicas necessárias para o país nesta década.

P.S. O autor agradece, de coração, a ajuda da amiga Ariana Frances, que indicou a incrível Maira Ribeiro; e do meu compadre Iuri Dantas, que fez a leitura crítica da primeira versão. Agradeço, também, ao Pedro Costa por seu empenho em viabilizar esta conversa com o escritor José Sarney.

João Villaverde

João Villaverde é mestre e doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-SP. É professor para turmas de graduação no mesmo programa, na FGV-SP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, em Nova York. É autor do livro Perigosas Pedaladas (Geração Editorial, 2016), sobre o impeachment de Dilma Rousseff; e co-autor (com José Márcio Rego) do livro Rupturas do Pensamento (Editora 34, 2021), as memórias de Luiz Carlos Bresser-Pereira em entrevistas aos coautores.