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Por que acreditamos em mentiras nas redes sociais? O descompasso entre as rápidas mudanças tecnológicas e a lenta evolução biológica do cérebro

por Pedro Antônio Schmidt do Prado Lima e André Luis Fernandes Palmini

por Ana Pereira do Prado Lima

Podemos considerar um privilégio ou uma praga, mas a realidade é que vivemos em um daqueles tempos históricos em que a tecnologia muda mais rápido do que o cérebro pode se adaptar.

O cérebro humano é o resultado de uma lenta evolução biológica, moldada em um ambiente escassos em recursos. Sua capacidade de interpretar e reagir é predominantemente baseada na motivação para lidar com a possibilidade de recompensa ou punição.

A cultura e a sociedade proveem parâmetros para que o cérebro interprete e responda ao ambiente. Mudanças tecnológicas desencadeiam mudanças culturais adaptativas. Entretanto, em períodos em que as mudanças tecnológicas são muito rápidas pode haver um descompasso entre os parâmetros cerebrais ditados pela cultura e as necessidades geradas pelo avanço tecnológico.

A resolução desta inadequação é a progressiva formação de uma nova cultura que seja adaptada à nova tecnologia. Até que isto ocorra, as respostas do cérebro ao novo ambiente estarão defasadas e menos eficientes. Inevitavelmente há um lapso de tempo entre as mudanças tecnológicas e o surgimento desta nova cultura, levando a um período de instabilidade.

Introdução

O cérebro humano é o resultado de um longo e demorado processo evolutivo que se iniciou desde a formação dos primeiros neurônios há 700 milhões de anos1. Entre 6 e 7 milhões de anos atrás nossa linhagem separou-se dos chipanzés.2,3,4 Há aproximadamente 3 milhões de anos nossos ancestrais tornaram-se bípedes5,6 e fabricaram as primeiras ferramentas de pedra7. Há 2 milhões de anos houve um crescimento substancial no tamanho do cérebro.8 Finalmente, há cerca de 12.000 anos, a sociedade se desenvolveu como a conhecemos hoje, após a domesticação de plantas e animais, o abandono da vida nômade e o desenvolvimento de civilizações9.

O tamanho médio do cérebro humano atingiu seu máximo há 15.000 anos e, desde então, encolheu aproximadamente 6,7%10. Foi evolutivamente moldado ao longo de centenas de milhares de anos através da seleção natural, por um ambiente muito diferente do que vivemos hoje. Um ambiente escasso em recursos, onde a sociedade, a cultura e a tecnologia – que o próprio cérebro criou – eram mais simples e estáveis.

Por outro lado, o abandono da vida nômade, propiciada pela domesticação de plantas e animais, desencadeou o surgimento de sociedades complexas que possibilitaram um rápido desenvolvimento tecnológico e cultural, além de mudanças ecológicas abruptas9. Desde então, houve uma clara dissociação entre a velocidade crescente das transformações tecnológicas, ambientais, culturais e sociais e a lenta evolução da biologia cerebral.

A relação do cérebro com a sociedade, cultura e tecnologia é muito complexa: Ao mesmo tempo em que o cérebro cria estes elementos, eles imediatamente se tornam parte do ambiente, que por meio da seleção natural molda o próprio cérebro. Outra questão importante é que a sociedade e a cultura estabelecem os parâmetros pelos quais o cérebro reage ao ambiente11.

A cultura e a sociedade podem definir o funcionamento de circuitos cerebrais

Vamos nos concentrar na relação entre o cérebro e a cultura. A cultura pode ser definida como um padrão de interpretação do ambiente e de si mesmo, bem como as respostas (emoções e comportamentos) moldadas por um determinado grupo social ao longo do tempo. O mesmo sistema subjacente à seleção natural fundamenta a modelagem da cultura12. Diante das demandas ambientais, diversos comportamentos são possíveis, e os mais adequados para aquele grupo, naquele momento, serão selecionados, repetidos e automatizados, tornando-se um hábito. Assim se forma a cultura. Portanto é um processo dinâmico e contínuo. A moral, que cria regras de convivência, é parte da cultura, portanto sujeita a esta transformação contínua.

Como se pode perceber, ocorre um ciclo em que o cérebro cria a cultura e a cultura, fazendo parte do ambiente, passa a exercer um papel na seleção natural11. No entanto, a evolução biológica do cérebro é muito lenta em comparação com as mudanças culturais, sociais e ambientais, e será imperceptível mesmo ao longo de várias gerações. Desta forma, a rápida modificação de padrões culturais interage com um cérebro que não mudou biologicamente.

Como o cérebro se adapta às rápidas modificações tecnológicas e ambientais?

Para responder a esta questão é necessário expor um paradoxo interessante: Existem circuitos cerebrais responsáveis pela tomada de decisões morais13, entretanto o que é considerado moral ou imoral, depende da cultura e da sociedade em que esta pessoa está imersa.

Por exemplo, em algumas sociedades antigas, matar alguém em um sacrifício religioso podia ser aceito e socialmente desejável, enquanto o mesmo ato em nossa sociedade ocidental é um crime. Matar em uma guerra pode ser altamente valorizado a ponto de ser premiado com uma medalha, porém o mesmo ato cometido em um ambiente civil pode levar a uma condenação por assassinato e punição severa. Assim, o cérebro possui circuitos que moldam o comportamento moral14, entretanto o que é considerado moral ou não depende de parâmetros culturais e sociais. A mesma decisão moral, por exemplo, matar ou não uma pessoa, pode desencadear respostas muito diferentes nestes circuitos cerebrais, dependendo da cultura e da sociedade em que o indivíduo está imerso – levando a sentimentos ou de orgulho ou de culpa e remorso.

Nessa espiral de interdependência entre cérebro e cultura há uma dinâmica complexa, que se vale da capacidade do cérebro de adaptar-se à cultura. Uma outra questão importante é que a cultura, em seus diferentes aspectos, pode estar em maior ou menor sintonia com as funções primordiais, instintivas do cérebro, em maior ou menor sintonia com o comportamento ligado ao ambiente ancestral onde o cérebro evoluiu, quando éramos caçadores e coletores. Por exemplo, na sociedade ocidental predominava um código moral de fazer sexo somente após o casamento. Isto até o advento da revolução sexual, que foi facilitada por uma nova tecnologia, a pílula anticoncepcional15. No entanto, esse código moral contrastava com o processo natural de tomada de decisão cerebral em relação ao sexo, que direcionaria o indivíduo a satisfazer o desejo sexual. Nesse caso, os parâmetros culturais levavam o cérebro a responder de uma forma que não seria a mais natural. Aqui, por naturalidade, pode-se entender a resposta mais ligada ao ambiente ancestral que moldou o cérebro por milhões de anos.

Outro exemplo é a cultura iluminista e científica. Ambas exigem o respeito à opinião contraditória e a inibição dos vieses de confirmação. Estas duas atitudes requerem aprendizado, porque contradizem a tendência natural de funcionamento do cérebro16.

Desta forma, a cultura provê os parâmetros de funcionamento dos circuitos cerebrais que possibilitam a adaptação do cérebro à tecnologia e ao ambiente do seu tempo, o que contribuiu em grande parte para o sucesso da nossa espécie.

O descompasso entre as mudanças biológicas, culturais e tecnológicas: focando na revolução digital

Períodos de grandes mudanças culturais, sociais, ecológicas ou tecnológicas são conhecidos por gerar instabilidade, exatamente porque parâmetros prévios de interpretação/resposta do cérebro tornam-se altamente ineficientes. Esses ciclos de mudanças disruptivas ocorreram com bastante frequência no passado, e um bom paralelo das transformações que estamos vivendo é a revolução industrial.

Neste ponto, é interessante considerar o momento atual em que vivemos, especificamente a relação entre a revolução digital, que é a mudança tecnológica, e as mudanças culturais e sociais necessárias para fornecer os parâmetros adequados para lidar com a nova tecnologia.

A revolução digital, criada pelo cérebro humano, trouxe enormes consequências sociais, que por sua vez vão acarretar uma mudança cultural. Essa mudança de cultura será um processo adaptativo para lidar com os benefícios e problemas gerados pela nova tecnologia. No entanto, o maior problema é o lapso de tempo entre a inovação tecnológica e a consequente modificação social e cultural, pois até que haja uma completa adaptação social e cultural à nova tecnologia, a resposta do cérebro será inadequada, baseada em pressupostos ultrapassados.

A revolução digital e o viés de confirmação

Voltando à revolução digital, esta maravilhosa tecnologia, que facilitou um acesso mais equitativo à informação, também criou intensa instabilidade política. Não no sentido positivo, de coibir governos ditatoriais, oferecendo formas de contornar a censura, mas, ao contrário, permitindo a disseminação de desinformação e mentiras que aumentam a manipulação social. Como isso aconteceu?

Uma das características do cérebro é o viés de confirmação, que é a tendência natural de prestar atenção e considerar opiniões que concordam com o que já pensamos ou acreditamos, e desconsiderar aquelas que são contrárias16. Em 1844, Arthur Schopenhauer, em seu livro O mundo como vontade e representação, descreveu assim o viés de confirmação: “Uma hipótese adotada nos dá olhos de lince para tudo que a confirma e nos cega para tudo que a contradiz”.

Como em qualquer processo biológico, a tendência humana natural para o viés de confirmação16,17 varia em intensidade entre os indivíduos. Mas, além desta variabilidade biológica, a extensão em que essa tendência se manifesta depende de parâmetros sociais e culturais que regulam a ativação das regiões cerebrais responsáveis ??por levar em consideração informações contrárias às expectativas (principalmente o córtex pré-frontal em sua região medial posterior)16,18.

Por exemplo, na sociedade iluminista, o respeito e a consideração pela opinião contrária é parte integrante da educação e da razoabilidade social. Esta consideração também é uma parte essencial do pensamento científico19. Desta forma, a atenuação do viés de confirmação é necessária tanto para uma atitude iluminista quanto científica.

Em outras palavras, é a cultura e a sociedade que fornecerão os parâmetros para o cérebro do que é razoável ou não em termos de viés de confirmação em determinada sociedade (ou grupo social) em determinado momento da história. No entanto, as atitudes e o modo científico de pensar herdados do Iluminismo não fazem necessariamente parte da natureza imutável do cérebro. Existem outras formas de raciocínio que talvez sejam mais naturais ou automáticas, atitudes que seriam mais apropriadas ao ambiente ancestral que moldou o cérebro humano.

De uma perspectiva evolutiva, qual seria a vantagem adaptativa do viés de confirmação? Essa reflexão é importante, pois o viés de confirmação costuma ser visto como um comportamento deletério que deve ser evitado. Mas este é talvez um julgamento baseado em nossa perspectiva cultural atual. Essa interpretação provavelmente ocorre porque a cultura iluminista favoreceu o respeito e a compreensão do ponto de vista oposto ao nosso. A questão que deve ser feita é se o viés de confirmação conferiu alguma vantagem adaptativa no ambiente original ao longo da evolução e se essa vantagem persiste no momento atual.

Existem várias teorias sobre a vantagem adaptativa do viés de confirmação, incluindo a possibilidade de facilitar o alinhamento intencional entre os indivíduos, garantindo uma visão compartilhada e favorecendo ações altamente colaborativas e solidárias dentro de um grupo17,20. Neste caso o viés de confirmação contribuiria para a formação da cultura. Outra explicação sugere que ele permite que indivíduos e grupos mantenham crenças que têm o poder de mudar a realidade, numa espécie de profecia autorrealizável20. Um exemplo seria um pai que acredita falsamente que sua filha adolescente não usa álcool. Essa filha percebe que seu pai expressa essa visão otimista sobre ela para seus amigos, o que a motiva a resistir progressivamente ao consumo de álcool, conformando-se gradualmente com a crença otimista de seu pai21.

Portanto, ao proteger essas falsas crenças, o viés de confirmação pode levar a um resultado positivo, embora também possa ser pernicioso quando essas crenças são baseadas em concepções sociais negativas, como estereótipos, preconceito, medo e hostilidade20.

A mídia social, tende a amplificar o viés de confirmação, a ponto de mentiras flagrantes parecerem críveis. “É fake, mas é verdade.” Esta frase sem sentido torna-se plausível. Isso ocorre em parte porque as redes sociais digitais concentram pessoas com as mesmas afinidades, que pensam igual, ampliando assim o viés de confirmação por meio da falsa impressão de que todo mundo pensa assim, todos acreditam naquela informação. Além disso, dependendo a mídia social, há a ação do algoritmo direcionando informações que são congruentes com as crenças do usuário, amplificando desta forma o viés de confirmação.

Essa amplificação do viés de confirmação ocorre porque a cultura ainda não se adaptou às mídias sociais. A mesma credibilidade tradicionalmente dada à grande imprensa, atualmente pode ser atribuída, por muitos, às redes sociais digitais. Até este momento, frequentemente o conteúdo das mídias sociais não é interpretado como deveria ser em muitos casos, como uma conversa sujeita a todo tipo de exagero, desinformação, bravata, fofoca e até mentira. Será por meio da observação coletiva dos problemas decorrentes da disseminação de informações falsas, como se fossem verdadeiras, que a cultura criará mecanismos para lidar com as mídias sociais, provavelmente aumentando a capacidade das pessoas de verificar a veracidade das afirmações, de serem mais céticas e de relativizar as informações. Esse processo provavelmente começará em segmentos da sociedade e gradualmente se tornará parte da cultura de quase todos. Até lá, os parâmetros de comportamento (e, consequentemente, de ativação de diferentes circuitos cerebrais relacionados) podem estar inadaptados em relação a essa inovação disruptiva causada pela revolução digital.

A revolução digital e o viés de conformação

Uma outra característica do cérebro, que influencia o comportamento nas redes sociais, é o viés de conformação. Ele se refere ao ato de mudar o próprio comportamento e julgamento, para corresponder ao de outras pessoas22. O objetivo é adequar-se às expectativas, normas sociais e culturais de seu grupo.

Existem várias teorias sobre a vantagem adaptativa do viés de conformação22. Ele pode propiciar uma interpretação melhor da realidade, por exemplo, agindo em oposição ao viés de confirmação. Pode facilitar a inserção social, uma vez que sintoniza o comportamento da pessoa com o que é a expectativa social. Ao provocar uma sintonia de crenças e comportamentos, ele também é um dos mecanismos de criação da cultura.

Entretanto, em um ambiente de redes sociais digitais, o viés de conformação pode ter um efeito deletério. Nelas agrupam-se pessoas com certas afinidades e crenças semelhantes. A constante comunicação tende a normatizar estas crenças como verdadeiras e socialmente desejáveis, conformando os participantes a pensamentos e comportamentos predominantes no grupo.

Mudanças tecnológicas podem “sequestrar” circuitos cerebrais

Exatamente como drogas, as mídias sociais digitais podem “viciar”23 e, portanto, “sequestrar” sistemas cerebrais. A maneira como o cérebro funciona facilita este sequestro, particularmente sua capacidade de organizar comportamentos de acordo com recompensas e a necessidade de conexão social. Como em relação a qualquer substância ou comportamento aditivo, há pessoas mais e outras menos suscetíveis a este efeito.

Por que isto ocorre? A opção evolutiva dos mamíferos foi aprender à custa dos instintos. Animais em que o instinto é o condutor preponderante do comportamento sempre fazem as coisas da mesma maneira. Se o ambiente muda, eles são incapazes de se adaptar (não alteram significativamente as respostas em função do aprendizado) e talvez só possam sobreviver como espécie por causa da variabilidade criada pelas mutações. Por outro lado, animais cujo comportamento é predominantemente baseado em motivação (recompensa ou punição) e aprendizado podem ter comportamentos mais flexíveis e se adaptar mais facilmente às mudanças do ambiente24.

A capacidade de aprender requer nascer com um cérebro grande que sabe muito pouco. Este indivíduo, no início de sua vida, precisa ser nutrido e ensinado, e esta tarefa é desempenhada pela mãe e pelo grupo social.  A evolução possibilitou diversas mudanças cerebrais que se traduziram não só na maior capacidade de aprendizagem, mas também a necessidade da conexão entre a mãe e o grupo social com a prole, e vice-versa. O cérebro humano é o extremo desta opção evolutiva, com grande capacidade de aprendizagem e grande necessidade de conexões sociais, como ilustra de forma contundente o título do livro de Matthew Lieberman: Social, why our brains are wired to connect25.

Portanto, não é de surpreender que o aspecto mais popular e atraente da revolução digital seja a mídia social. As pessoas são sociais! Por essa razão, as mídias sociais digitais invadem, como cavalos de Tróia, sistemas cerebrais que se desenvolveram para promover e sinalizar recompensas por meio da conexão social, sequestrando esses sistemas e desviando-os dos verdadeiros objetivos de socialização para os quais eles originalmente evoluíram. Deve ser enfatizado que não apenas o sistema opioide25(tradicionalmente relacionado ao prazer pelo contato social e ao sofrimento pela rejeição) seria vítima desse sequestro, mas também o nosso sistema motivacional e de recompensa é afetado, gerando comportamentos viciantes em relação a essa tecnologia26.

Neste caso também, é de se esperar que mudanças culturais futuras possam proteger, nas pessoas suscetíveis, sistemas de interação social deste “sequestro”, estabelecendo uma forma saudável de interagir com a mídia digital. Uma analogia de como isto poderá acontecer é o contraste entre a forma como nos comportamos hoje em um supermercado e como nossos ancestrais teriam se comportado caso um supermercado se materializasse ‘magicamente’ no ambiente pré-histórico de recursos escassos. Nessa situação hipotética, qualquer um comeria todos os chocolates e biscoitos expostos nas prateleiras, sem hesitar. Mas o que impede a maioria de nós de se comportar assim são os parâmetros culturais e sociais, que se adaptaram de um ambiente de escassez a um de abundância, apesar do cérebro ser o mesmo.

A ruptura cultural provocada pelas mudanças tecnológicas e o tempo necessário para se adaptar-se a elas

Uma questão complexa é quanto tempo leva para a cultura se adaptar a uma nova situação tecnológica, social ou ecológica. É plausível pensar que o tempo necessário pode ter relação com a natureza da mudança. Mudanças tecnológicas pequenas ensejam pequenas modificações culturais, uma vez que a maior parte da cultura continua provendo as respostas adequadas. Entretanto, novas tecnologias disruptivas tem a capacidade de tornar obsoletas partes da cultura. Neste caso, diversos padrões comportamentais podem emergir, competindo entre si, moldando uma “nova cultura”. A nova cultura não representa, necessariamente, uma evolução nos parâmetros do iluminismo e do humanismo, mas sim um movimento de adaptação a uma nova situação tecnológica, social ou ecológica. Durante esse período de transição, podemos testemunhar o surgimento de comportamentos que desestabilizam aspectos da “velha cultura”, comportamentos que eram altamente benéficos para o bem-estar social de longo prazo.

Voltando ao caso das mídias sociais, dois dos comportamentos que emergiram foram a transgressão e o radicalismo. Uma tendência natural do cérebro é escalar na transgressão quando não há punição perceptível. Essa escalada ocorre porque as áreas do cérebro que sinalizam o risco de uma contrarreação ou punição tendem a se tornar progressivamente dessensibilizadas com a falta de qualquer reação negativa à transgressão27.

O comportamento inicial, adotado por alguns segmentos da sociedade, foi o de reagir emocionalmente e muitas vezes de forma agressiva a questões políticas, religiosas ou de gênero. Este comportamento tendeu a progressivamente aumentar face a não punição ou mesmo desaprovação. A proporção da população mais propensa ao radicalismo pode se engajar intensamente em tal comportamento. Isto porque os radicais tendem a temer e depreciar grupos externos28.

A percepção coletiva das múltiplas consequências de tais comportamentos moldará o consenso cultural sobre como lidar com a tecnologia. Um equilíbrio necessariamente ocorrerá entre os aspectos prejudiciais dos “comportamentos antissociais” recém-estabelecidos, permitidos pelas mídias sociais, e novas soluções que se mostrarão adaptáveis ??e vantajosas a curto e longo prazo. É importante ressaltar que esse processo se dará tanto no cérebro quanto na sociedade e, dessa forma, o consenso da nova cultura imporá novos padrões, mesmo para os reticentes ou retardatários.

Conclusões

A maneira relativamente rápida e eficiente com que o cérebro é capaz de adaptar os parâmetros operacionais de vários de seus circuitos aos padrões culturais e sociais, historicamente forneceu a flexibilidade necessária para que os seres humanos se adaptem a diferentes condições culturais, sociais, ecológicas e tecnológicas.

A introdução de novas tecnologias torna a cultura desatualizada à medida que uma série de novas situações imprevistas começam a ocorrer. Consequentemente, os parâmetros do cérebro para interpretar eventos e para a tomada de decisões também se tornam inadequados em relação ao novo cenário tecnológico. A interação entre os sistemas cerebrais e um ambiente dinâmico, representado pela cultura humana, sociedade, meio ambiente e tecnologia, fornece elementos para a compreensão do comportamento humano e da sociedade em um sentido amplo, tanto em tempos de estabilidade quanto em tempos de mudanças disruptivas.

O surgimento de uma nova cultura, mais bem adaptada à nova realidade tecnológica, redefinirá os parâmetros funcionais de sistemas cerebrais. No entanto, até que essa nova cultura se consolide, as soluções fornecidas pelo cérebro, tanto para o antigo quanto para o novo cenário tecnológico, podem ser inadequadas.

Pedro Antônio Schmidt do Prado Lima é doutor em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

André Luis Fernandes Palmini doutor em Neurologia pela Universidade Estadual de Campinas.

Os autores agradecem Felipe Pimentel, Maurício Silva de Lima, Luis Lamb, Melanie Ogliari Pereira, Tim Donovan, Guido Lenz, Irismar Reis de Oliveira, Peter Kalivas e Adrian Raine por seus incentivos e comentários úteis na confecção deste ensaio.

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