por Pedro Sette-Câmara
No último dia 30 de agosto, meu orientador na UERJ precisou desmarcar uma reunião comigo, e assim me liberou para assistir a uma palestra com seu próprio orientador dos tempos do doutorado que fez em Stanford — e foi assim que tapei a grave lacuna que era nunca ter ido a uma palestra de Hans Ulrich Gumbrecht.
As coincidências, porém, não pararam por aí: Gumbrecht falaria sobre um dos assuntos que vêm me ocupando indiretamente, que é o futuro das Humanidades. Indiretamente porque a questão do momento, para mim, é elucidar uma das propostas mais ousadas de René Girard (também de Stanford), a qual consiste em atualizar o potencial teórico das grandes obras de arte. Imaginemos, por exemplo, não a neurociência lendo Proust, mas Proust lendo a neurociência.
As Reflexões de Gumbrecht
Gumbrecht veio ao Rio de Janeiro fazer um ensaio de uma palestra que dará na Universidade de Luxemburgo. Certo é que ele já pensa no assunto há muito tempo. Se em 2015 o ministro da Educação japonês propôs que certos departamentos “de humanas” fossem podados ou aparados, oito anos antes Gumbrecht já tinha publicado A Future University without the Humanities?.
Por isso, com franco realismo, a palestra começou pela observação de que o mundo já viveu sem as Humanidades, e pode continuar vivendo sem elas. Aquilo que hoje chamamos de “Humanidades” nasceu há cerca de 200 anos, com a “Germanística” dos irmãos Grimm, e consolidou-se com o ideal formulado por Wilhelm von Humboldt (1767-1835) para a Universidade de Berlim, que seria um lugar onde o saber é inventado — a mera transmissão ficaria com os ginásios.
Durante o século XIX, as Humanidades atingiram o máximo do prestígio. Segundo Wolfgang Iser, foi “o século em que a cultura tomou o lugar da religião”. O helenista Wilamowitz, responsável ainda incontestado pela fixação de vários textos antigos, assessorava o imperador da Prússia na redação de seu discurso de fim de ano.
A primeira virada veio com Wilhelm Dilthey (1837-1911), que propôs a separação entre ciências humanas e ciências da natureza. Estas ficariam com a explicação de causas e efeitos, e aquelas com a “interpretação”: a atribuição de sentidos, a explicação das relações entre parte e todo. Segundo Gumbrecht, as disciplinas ficam então “traumatizadas” e começam a “perder realidade”.
A partir daí, a queda é maior. No período entreguerras, as humanidades convertem-se em produtoras de ideologias. E, depois disso, vêm as ondas: estruturalismo, pós-estruturalismo, neomarxismo, New Criticism… Após algum tempo divididas entre o estudo do “texto sem contexto” e o envolvimento com a política, as humanidades param de empolgar.
Neste ponto, Gumbrecht apresentou sua proposta para o futuro das humanidades, centrada nas ideias de “contemplação secular” — a concentração prolongada num único objeto — e de “pensamento com risco”, que seria aquilo que as humanidades fazem de melhor. Se o pensamento técnico busca reduzir possibilidades, nas humanidades o pensamento pode ser realmente “fora da caixa”. Pensemos por exemplo no código de trânsito: não é bom arriscar-se ao dirigir. Todavia, na concentração detida, o que interessa é justamente a possibilidade nova, que ajuda a contemplar os objetos de maneiras distintas.
O Projeto de Girard
Como o próprio Gumbrecht observou, na fundação da universidade moderna não havia a ideia de que um espírito científico, investigativo, não pudesse estar presente nas Humanidades — descobrir, afinal, é diferente de interpretar.
Mais ainda, voltando ao começo do texto, o próprio René Girard observa que, até o começo do século XX, as Humanidades não evitavam as grandes perguntas, como “qual a origem das religiões?”. Na primeira linha do primeiro livro que traduzi, A Origem da Linguagem (Record, 1999), o autor, Eugen Rosenstock-Huessy, reclamava que a questão da origem da linguagem humana tinha se tornado uma questão “desesperada”, porque tinha sido abandonada.
A teoria mimética proposta por René Girard não se pretende uma teoria da interpretação, uma teoria que vá apenas falar de textos. Ela pretende responder grandes perguntas, como a própria “qual a origem das religiões?”, e, também, “qual a origem da cultura?”. Mais ainda: “a História tem sentido?”.
Talvez a sugestão de que essas perguntas ainda mereçam ser discutidas desperte risos de incredulidade. Porém, são perguntas que não foram respondidas, e sim abandonadas. Existe algo de ilusório na ideia de progresso científico: o que se discute hoje não é necessariamente, em todos os casos, uma superação do que se discutia ontem, mas, muitas vezes, apenas uma mudança de assunto.
Neste momento, existe uma associação internacional dedicada à teoria mimética, o Colloquium on Violence and Religion. Estudiosos associados discutem as interfaces da teoria com as pesquisas empíricas mais recentes na área de imitação.
Por outro lado, além do suposto anacronismo e da ambição da teoria mimética, o catolicismo escancarado de René Girard parece um obstáculo. Isso não impede que muitos ateus, inclusive professores universitários, encontrem em sua teoria a possibilidade de aderir ao cristianismo sem aderir a qualquer elemento sobrenatural. Seria um cristianismo epistemológico, em primeiro lugar: um conhecimento que parte do ponto de vista das vítimas, e que tem óbvias consequências éticas.
Ao testemunhar os esforços para testar uma teoria e divulgá-la no mercado das ideias, e ainda participar ativamente deles, o futuro das Humanidades me parece totalmente aberto. Daqui a meio século, a teoria mimética pode tanto ter sido uma pequena onda da virada do milênio, quanto uma proposta que trouxe de volta várias questões, e ainda as reformulou.
E, só para que o leitor tenha ideia do possível descompasso entre a aplicação prática imediata de uma teoria e sua repercussão acadêmica, Peter Thiel, o angel investor do Facebook (o ambiente digital em que o mimetismo é mais escancarado), foi aluno de René Girard em Stanford — e é o principal financiador da fundação responsável por sua obra.