O ceticismo político e religioso de Anatole France (ou Como fazer inimigos)

Humanista de esquerda dotado de fortes convicções antitotalitárias, laicista amante dos símbolos da civilização cristã, France cultivava aquela independência na medida para desagradar a todos.

por Rodrigo de Lemos

Anatole France enriqueceu com literatura. Proust o tratava de “caro mestre”. Pronunciou-se sobre as grandes questões do tempo, denunciando desde o colonialismo europeu até a fúria antissemita de certos meios católicos e monárquicos no caso Dreyfus. Foi recebido em 1909 na Academia Brasileira de Letras por Rui Barbosa e pelo tout Rio; iniciaria assim uma tournée de meses pela América do Sul, em que os encômios floreados em estilo Belle Époque não faltaram. Em 1921, viria a ganhar o Nobel. Foi dos raros escritores a merecerem honrarias fúnebres oficiais da República francesa, à imagem de Victor Hugo décadas antes.

Mal esfriados os pastéis do velório, os ataques se fizeram ouvir. Já em 1922, o conjunto da obra fizera objeto de uma condenação papal; os católicos conservadores jamais perdoaram sua militância pela separação entre o Estado e a Igreja, seu dreyfusismo. Apenas dois anos após sua morte, ele será parodiado pelo cruzado George Bernanos em Sob o sol de Satã. O outro cruzado que foi Claudel o relegaria às falanges dos “inimigos de Deus” ao lado de Nietzsche, Wagner, Ibsen e Renan.

A extrema-esquerda encontrava os católicos em uma repulsa unânime ao seu nome. Não era o socialista France que, passado um primeiro momento de entusiasmo pela revolução de 1917, denunciara os desmandos bolcheviques já em 1922 e que empreendera em seus romances uma crítica às utopias progressistas? A partir desses episódios, ele se vira expulso dos jornais comunistas. Depois de sua morte, os surrealistas, em flerte com o extremismo de esquerda, elegerão Anatole France como símbolo da “ignomínia francesa”, e Aragon se perguntará no título de um artigo cuja virulência se tornaria célebre: “Você já esbofeteou um cadáver?”. Mesmo os grandes individualistas que foram Gide e Valéry não hesitarão em aderir à “francefobia”: Gide, então à frente da modernista Nouvelle Revue Française, tem-no por um mero e fácil representante da literatura burguesa; Valéry foi eleito para a poltrona de France na Academia Francesa e insultou-o elegantemente ao não citar uma única vez seu nome em seu discurso de recepção, ao contrário do habitual sob a Cúpula.

Muitas dessas reações hostis se deram certamente por sua excessiva celebridade em vida, vingada no post mortem. Anatole France se tornara um busto, a encarnação de um aticismo gálico com que as intelectualidades modernista e católica ansiavam por romper. Humanista de esquerda dotado de fortes convicções antitotalitárias, laicista amante dos símbolos da civilização cristã, cultivava aquela independência na medida para desagradar a todos.

É nesse espírito que foi redigido aquele que está entre seus romances mais propícios a fazer inimigos. Os deuses estão sedentos retrata o protagonista Évariste Gamellin numa gradual conversão de jovem pintor em jurado sanguinário do Tribunal Revolucionário sob o Terror, acólito de Robespierre. Em paralelo, dentre os personagens do romance que vão subindo ao cadafalso sob a sanha da Revolução, conta-se Maurice Brotteaux des Îlettes, resquício da nobreza voltairiana do Antigo Regime em seu crepúsculo. Leitor do seu Lucrécio como um Cândido cultivando o seu jardim, é fácil reconhecer nele um duplo fictício do próprio Anatole France. Epicurista, Brotteaux não é exatamente anticlerical:

“Ele se impedia, no entanto, de querer atacar a religião, que estimava necessária aos povos: apenas, teria desejado que tivesse por ministros filósofos e não polemistas. Deplorava que os jacobinos quisessem substitui-la por uma religião mais jovem e mais maligna, pela religião da liberdade, da igualdade, da república, da pátria. Havia observado que é no vigor da juventude que as religiões são mais furiosas e mais cruéis e que se apaziguam ao envelhecerem. Por isso, desejava que se mantivesse o catolicismo, o qual havia devorado muitas vítimas no tempo de seu vigor, e que agora, encurvado pelo peso dos anos, de apetite medíocre, contentava-se com quatro ou cinco assados de hereges em cem anos.”

Uma defesa da fé desse tipo pode soar mais ultrajante do que muitos ataques. Um católico ardente da Terceira República francesa há pouco laicizada talvez tivesse preferido as blasfêmias de Buñuel (que ao menos ressaltam a grandeza do seu objeto de ódio pela violência que este suscita) a essa apologia razoável e terrena da religião, que faz o elogio da sua moderação às custas da sua certeza de verdade – apologia irônica, dita com um sorriso superior.

Resta que, na França, o argumento não é desconhecido do próprio conservadorismo católico pós-revolucionário. Era em termos semelhantes que se exprimia o Cardeal Pie em um célebre sermão sobre a intolerância doutrinal, proferido na Catedral de Chartres na década de 1840. Nesse texto, o chefe-de-fila do ultramontanismo sob a monarquia liberal advertia quanto aos perigos para a reta fé representados pela tolerância moderna. Segundo ele, a obra católica se expandira precisamente pela intolerância dos cristãos nos primeiros séculos, pelo seu combate à transigência onívora dos romanos, que, em um primeiro momento, puseram Jesus e Abraão no mesmo panteão que seus próprios deuses. Também o Cardeal Pie associa a robustez da fé à sua inclemência, e a moderação a seu enfraquecimento – a diferença sendo que, ao suspiro de alívio de Brotteaux (e de France), o cardeal parece opor um pensamento de nostalgia pelo catolicismo do tempo de Constantino, triunfante e ameaçador.

É claro que Brotteaux tampouco tece coroas aos jacobinos. Pelo contrário, aos seus olhos, catolicismo e ideologia revolucionária se igualam como religiões, e é interessante debruçar-se um momento sobre o termo.

Bem entendido, com isso, Anatole France busca desancar as pretensões racionalistas dos revolucionários; ele reduz seu ideal à expressão de um zelo insensato como o que levara os cristãos a perseguirem os cultos politeístas. Sobretudo, trata-se para ele de mostrar, com um quê de humor, o quanto pares opostos como o tradicionalismo católico e o jacobinismo se irmanam como regimes de verdade universal expansionistas. Como tais, ambos caem na tentação de negar o mundo ao buscarem lhe impor uma única e mesma medida – a do Catecismo no caso dos “teófagos” cristãos, a da “da liberdade, da igualdade, da república, da pátria“ no jargão dos revolucionários. Diante da impossibilidade de depurar o mundo em sua irredutível diversidade de opiniões e de sensibilidades, cristianismo e jacobinismo teriam apelado primeiro à violência: a perseguição aos hereges, a guilhotina aos traidores da Revolução. Com o tempo, cansadas de guerra, essas religiões, laicas ou não, abririam negociações com o mundo, transigiriam com escapadelas, se refinariam com as críticas do seu próprio campo e iriam assumindo plenamente aquele lugar que é o seu, fundamental, na economia da felicidade terrena. É assim que, para Brotteaux,  a superioridade do cristianismo sobre o jacobinismo teria sido, antes de tudo, a de haver envelhecido antes.

Os deuses estão sedentos data de 1912 – dos últimos anos de uma época relativamente estável na Europa, cenário propício a que um elegante literato provocasse jacobinos e reacionários com graça e, por que não?, bonomia. O atentado de Sarajevo, a dali apenas dois anos, abrirá uma era de tensionamento das ideologias aos extremos. Nessa nova conjuntura, o espírito voltairiano, de derrisão equânime quanto ao pensamento dogmático, de onde quer que venha, se tornará mais e mais insustentável: zombar de um lado aparecerá como necessariamente aderir ao seu adversário; o mal-entendido se tornará de rigor, e o gracejador se encontrará mais e mais isolado, cercado por feras inimigas entre si, rugindo em uníssono contra quem as atiçara. Não é de surpreender que, nesse ambiente hostil do século XX, a voz de Anatole France tenha se tornado inaudível.

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