por Márcio Mauá Chaves Ferreira
No último texto publicado neste espaço, vimos um longo canto coral extraído da tragédia Héracles de Eurípides. Nele eram narrados os doze trabalhos do herói, e, no momento em que é entoado, supunha-se que Héracles estava no Hades a realizar o último deles, e que de lá não mais voltaria. Tal suposição conferia ao poema, como também observamos ali, traços de um lamento fúnebre, um gênero praticado pelos poetas líricos desde o período arcaico, cujas convenções foram de certo modo incorporadas às canções presentes no interior das tragédias.
Continuaremos neste texto a ler mais um dos feitos do mesmo herói, igualmente cantado pelo Coro de uma tragédia, composta desta vez por Sófocles. Se comparado ao momento dos doze trabalhos, o foco de As Traquínias – título que nos informa não apenas sobre o lugar da ação dramática, Tráquis, na Tessália, como também sobre quem são as componentes do Coro, a saber, as mulheres do lugar – refere-se a uma época posterior no mito de Héracles, quando já se avizinha o fim de sua vida na terra.
A peça se inicia, como a de Eurípides, com o herói ausente. Sua esposa, agora Dejanira, e não mais Mégara, procura saber seu paradeiro e envia Hilo, o filho mais velho do casal, em busca do pai. Antes do retorno do filho, chega um mensageiro da própria cidade, que anuncia que Héracles está vivo, tendo triunfado em mais uma batalha. Isso ele teria ouvido de Licas, arauto do herói, que por Héracles foi enviado e já se encontrava na região. O próprio Licas, trazendo um grupo de prisioneiras como butim da guerra travada, virá após o mensageiro e confirmará a história a Dejanira. Resta apenas mais uma informação importante, tanto para nossa melhor compreensão da canção que leremos abaixo, quanto para o completo conhecimento dos fatos por parte de Dejanira: entre as prisioneiras de guerra está Iole, e foi por sua causa que Héracles saqueou a Ecália, porque Êurito, rei da cidade e pai da donzela, não se deixou persuadir pelo herói a dá-la em núpcias ocultas a ele. A verdade é revelada pelo mensageiro e, depois, confirmada por Licas, que a princípio, para não magoá-la, tentava ludibriar Dejanira oferecendo-lhe outros motivos para a destruição da cidade de Êurito.
Essa, pois, foi a razão da batalha, e por isso aquelas cativas de guerra estão ali, e Iole, entre elas. Dejanira recebe, resignada, o relato dessa nova motivação. Afinal, “quem, como um pugilista, se contrapõe ao Amor, não pensa bem,” diz ela, “pois ele domina como quer até mesmo os deuses, e a mim também. Por que não (dominaria) também outra como eu? (…) não atrairei sobre mim um flagelo que me é alheio, entrando em um litígio vão contra os deuses” (vs. 441-444 e 491-492). Eis a atmosfera da tragédia no momento em que o Coro entoará seu canto, que, por sua vez – e isso vale ainda mais para Sófocles do que para Eurípides – deve se relacionar e, a seu modo, responder a esse ambiente dramático. É o que se costuma chamar pertinência (“relevance”) da canção. Desse modo, não é de espantar que a força de Afrodite, aqui chamada Cípris, um de seus epítetos, seja o tema do poema. O foco do canto se direcionará para o passado de Dejanira, última personagem a falar no episódio anterior, e para a luta por sua mão pelos dois famosos pretendentes, um deles seu atual marido, que agora acabou de destruir uma cidade e saqueá-la por causa de outra mulher.
O tema do amor não é inédito mesmo no tipo de passagem em questão, já que há outras tragédias que o adotam em seus passos cantados. Em Antígona, também de Sófocles, o Coro, após presenciar a violenta discussão entre Hêmon e Creonte, canta o poder universal do amor e, no plano particular do drama, responsabiliza-o pela contenda do pai com o filho, já que é sob a influência do amor que Hêmon ousa desafiar a autoridade paterna (781-800); no Hipólito, de Eurípides, em não menos do que dois momentos líricos da peça esse tema vem à tona: quando, já ciente da paixão de Fedra por seu enteado, o Coro vê a ama sair de cena e é tomado por grande apreensão, pois sabe que as consequências do provável encontro dela com Hipólito podem ser funestas (525-64) e, depois da saída do mensageiro que anunciou a morte de Hipólito, quando novamente o Coro entoa uma ode ao poder do amor, agora, no entanto, não mais em tom apreensivo, mas sim de resignação (1268-82).
Portanto, talvez mais digno de nota do que o tema ou a pertinência do poema no interior da tragédia seja o modo como ele é aqui trabalhado. O amor é para os gregos do período clássico um deus (Eros ou Afrodite), e, quando se louva um deus em poesia lírica é de esperar que nessa tradição ela tome a forma de um hino, com seus elementos convencionais, como, por exemplo, a invocação a essa divindade na abertura da canção, normalmente com um acúmulo de epítetos; a descrição de sua genealogia, seus poderes e feitos memoráveis na parte mais central; e um pedido em seu fim, ligado, como se pode supor, à esfera de influência da divindade invocada. Tomemos a abertura do poema com isso em mente.
O canto não se inicia com uma invocação direta, em segunda pessoa, à deusa, mas com uma máxima sobre o poder do amor – em terceira pessoa, portanto – cuja universalidade será então ilustrada por meio do recurso retórico da preterição, que fará a narrativa transitar da esfera divina (Zeus, Poseidon, Hades – deuses já subjugados por aquela força sobre os quais o Coro afirma que nada falará, já falando!) para a do combate entre Héracles e Aquelôo pela mão da humana Dejanira. Esse é o foco da estrofe, e seu clímax constitui-se na questão, com que ela se finda, a respeito da identidade dos rivais que por aquela moça partiram para a batalha.
Quando avançamos na canção, percebemos que aqueles elementos convencionais presentes nos hinos insistem em não aparecer. A antístrofe contém a apresentação dos oponentes e o início da luta, mediada por Cípris; e a primeira parte do epodo, a descrição do combate. E aqui, no centro do poema, de novo, em vez de sermos apresentados às celebres ações da deusa ou à sua ascendência divina, o foco da narrativa dirige-se para os contendores que, movidos pela força do Amor, entram em um combate cujo árbitro é a própria Afrodite. (Notável também aqui é o embate de Héracles contra um rio, que, por sua vez, toma a forma de um touro. Temos, contudo, um antecedente mítico desse tipo de combate no livro 21 da “Ilíada”, quando o rio Escamandro ataca Aquiles [vs. 324 ss]).
A referência a uma vitória já no primeiro verso do poema, a descrição de uma atmosfera de prova atlética ao longo de seus versos até a segunda parte do epodo e mais algumas questões de estilo que veremos a seguir levaram alguns estudiosos – Laura Swift, a mais notável entre eles – a observar que Sófocles não só parece evitar essas convenções, mas também se aproximar de outras características presentes em outro gênero praticado pelos poetas líricos fora dos limites da tragédia grega, isto é, os epinícios de Píndaro e Baquílides, cantos em homenagem aos vencedores de uma prova atlética em um dos quatro assim chamados jogos pan-helênicos da antiguidade, que se realizavam em Olímpia, no Istmo de Corinto, Nemeia e Delfos. Assim como notamos elementos dos lamentos fúnebres, ou trenos, no canto coral que descrevia os doze trabalhos de Héracles na peça homônima de Eurípides, agora, nesse caso, são os traços de outro subgênero da lírica coral, praticado habitualmente fora dos limites das tragédias gregas, o epinício, que então observamos nesse canto de As Traquínias.
Podemos notar essas características de modo mais acentuado a partir da antístrofe do poema. O anúncio dos competidores em seu início soa, por exemplo, como a proclamação oficial de um arauto nos jogos, que costuma evocá-los não só por meio de seus nomes, aqui adornados por perífrases poéticas e imagens expressivas, mas também pelos das cidades de onde eles provêm. Tebas, além disso, descrita nesse anúncio dos oponentes como a cidade de origem de Héracles, é qualificada com o adjetivo ‘báquica’, uma menção a um importante mito dessa cidade e outro traço de gênero que se observa em odes epinícias que frequentemente glorificam a comunidade do vencedor pela incorporação de elementos provenientes de mitos locais. A forma como a luta é narrada, evitando-se um retrato ‘golpe a golpe’ da ação e uma detalhada descrição de como a vitória foi alcançada é uma reminiscência da maneira como Píndaro e Baquílides descrevem os feitos dos vencedores louvados em seus poemas. A chamada forma “triádica” dessa canção – composta por uma estrofe, uma antístrofe, com estrutura métrica (e, supõe-se, melodia) idêntica à da estrofe, e um epodo, que destoa das duas anteriores – é igualmente encontrada nas odes pindáricas, que ora apresentam apenas uma tríade, como no poema em questão, ora são compostas por mais de uma, que, no entanto, mantêm sua forma inalterada. Por fim, vale sempre lembrar que Héracles foi, segundo a tradição mítica, o fundador dos jogos olímpicos. Sua posição, pois, nos poemas de louvor aos vitoriosos nesses jogos não poderia ser senão de destaque, sendo citado em não menos do que onze odes epinícias de Píndaro e duas de Baquílides.
Nosso canto coral termina com o retrato de Dejanira, sentada à distância a esperar, como ovelha desgarrada. Em vez da guirlanda recebida naqueles jogos, o prêmio em disputa nesta batalha é Dejanira. Sabemos pelo contexto da tragédia quem a tomará como esposa; mas o verdadeiro laudandus (louvado) desse poema é Cípris, ou o Amor, que foi, ao mesmo tempo, a causa, o único árbitro e a vencedora desta batalha.
CORO Estrofe
Uma grande força é Cípris; ela sempre leva a vitória.
Das divindades passo ao largo
e não digo como essa deusa logrou o filho de Cronos
nem o noturno Hades,
ou Poseidon, que faz a terra estremecer;
mas, em conquista desta esposa,
que fortes rivais por núpcias foram à luta?
que oponentes para o poento combate
cheio de golpes partiram?
Antístrofe
Um era o Rio vigoroso, de longos chifres, quatro patas,
forma de touro,
Aquelôo, de Eníadas; o outro da báquica
Tebas veio, a brandir a clava
e o arco retesado,
filho de Zeus. A um só tempo
foram eles ao centro, ávidos do leito;
entre eles, como único árbitro,
Cípris, a Deusa do amor.
Epodo
Era um estrondo de braços,
era de flechas,
de cornos taurinos – um só tumulto;
e eram ataques entrelaçados,
eram golpes de cabeça
mortais e um mútuo gemido.
E ela, formosa e terna,
em longínqua colina
sentava-se à espera de seu noivo.
Falo como quem a tudo assistiu.
O semblante disputado da noiva,
lastimável, aguarda o fim.
E, súbito, da mãe se vai,
Qual novilha desolada.
(Tradução: Márcio M. Chaves Ferreira)