por Pedro Sette-Câmara
Acho que foi no sábado: abri um suplemento literário, li a palavra “opressão” e fechei o jornal, passei adiante. Difícil, hoje em dia, confiar num registro tão batido quanto a denúncia da opressão. É um problema grave, porque existem coisas que precisam mesmo ser denunciadas. Mas, como na fábula do menino que gritava “Lobo!”, eu ouvi “Lobo!” e não fui verificar.
E assim pensei em seguida em Matéi Visniec, dramaturgo romeno de quem já traduzi três peças. Visniec é muito mais do que um anti-menino que gritava lobo. Seu sucesso na França, em sua Romênia natal, e no Brasil, é fácil de entender. Sua obra não se deixa reduzir a nenhuma mensagem pré-fabricada. Quer dizer: qualquer ideólogo pode reduzir o que quiser, mas o espectador facilmente verifica a violência. É que quem denuncia a opressão na arte costuma fazer isso oprimindo, em primeiro lugar, a própria arte.
Mas bem. Na quarta-feira anterior, pude conhecer o próprio Visniec, que passou pelo Rio de Janeiro. Ele já esteve algumas vezes no Brasil. Dessa vez, após uma programação intensa em Porto Alegre e em São Paulo, assistiu a duas montagens suas no Rio, uma delas na UERJ, onde faço meu doutorado em Letras.
A montagem foi parte da programação do XV Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada. Aliás, “opressão” pode ser um exagero, mas os professores e os funcionários da UERJ estão sem receber, e eu, no lugar deles, não sei se teria produzido um congresso tão caprichado apenas porque sim. Por uma semana, não se notou vestígio nenhum da crise da UERJ, com todo o mérito para a ABRALIC e para a equipe da universidade.
O texto de Visniec em encenação foi O Corpo da Mulher como Campo de Batalha. Não há no título a menor tentativa de ser metafórico. A peça trata de Dora, mulher estuprada por cinco soldados do lado inimigo na última guerra dos Bálcãs.
É franzindo o rosto e com a sensação de uma pedra na garganta que lembramos que o estupro das mulheres do território inimigo não tem nada de novo. Na Segunda Guerra Mundial, os alemães, ao invadir a Rússia, deixaram centenas de milhares de filhos de seus estupros. Quando foi a vez de os russos invadirem a Alemanha, retribuíram com gosto.
Ao final da peça, a plateia aproveitou para mencionar os alarmantes números de estupros no Brasil. Fora de pequenas áreas dentro das maiores metrópoles, as estatísticas brasileiras da violência são comparáveis às de países em guerra. Só que aqui no Brasil não estamos falando de uma guerra, que começa no dia X e termina no dia Y, e tem lados mais ou menos demarcados.
Volto à peça de Visniec. Dora dialoga com uma psicóloga americana. Resiste a ela, por temer que a psicóloga esteja oferecendo uma falsa simpatia. Se os estupradores serviram-se dela com violência, a psicóloga pode estar querendo servir-se por meio da persuasão. Afinal, depois de enfrentar um estupro coletivo, Dora ainda vai virar porquinho-da-índia de uma psicóloga gringa?
Nessa resistência é que começamos a ouvir a voz de Dora. A possibilidade de antagonizar alguém vai lhe dando força para reafirmar-se. Não existe nisso paradoxo nenhum. Dora vai recriando uma relação, mesmo que seja uma relação difícil, e ter uma relação nova permite que ela seja alguém novo.
Deixamos assim o terreno das estatísticas e dos problemas em geral. Estamos lidando com Dora, um indivíduo. Algumas mulheres estupradas talvez se identifiquem com a personagem. Outras, não. Porém, todas elas, assim como o público em geral, têm um ponto de referência crível, um sujeito com quem dialogar.
Eis o que há de mais curioso. Hoje os denunciadores das opressões parecem a nós mais preocupados em denunciar pensamentos e palavras, atos e omissões da vida comum da classe média. (E certamente alguém dirá que o macho adulto branco Matéi Visniec sequer tem o direito de escrever sobre estupro, que está “roubando o lugar de fala” etc.) Só que a peça, é claro, não é um exemplo dentro de um argumento retórico maior contrário ao estupro como tática de guerra – é preciso mesmo alguma retórica contra uma coisa dessas?
O efeito de O Corpo da Mulher como Campo de Batalha é bem outro: o espectador, mais do que se compadecer da mulher violentada, ou de admitir um horror inominável, passa a torcer por ela, porque ela é capaz de recolocar a vida nos eixos, ou ao menos de reformulá-la um pouco mais segundo seus próprios termos.
Até porque, se o corpo de Dora foi transformado em campo de batalha, isso não quer dizer que ela esteja inevitavelmente fadada a perder.