por Fabrício Tavares de Moraes
Numa entrevista sobre sua recente obra Les Incandescentes (2019), em que trata dos pontos convergentes dos projetos intelectuais de Simone Weil, Cristina Campo e María Zambrano, a crítica literária francesa Elisabeth Bart propõe, a partir das reflexões suscitadas pelas autoras acima, uma nova concepção dos antimodernos. Para Bart, por exemplo, “o termo ‘reacionário’ pertence ao léxico da política e da filosofia política, ao passo que a noção de ‘antimoderno’, tal como a define Antoine Compagnon…, refere-se, em maior medida, a escolhas metafísicas que podem conduzir a diferentes posições no tabuleiro político, sobretudo nos nossos dias, quando a decomposição teológica é tamanha, que não se sabe muito bem o que os termos ‘reacionário’ e ‘conservador’ – utilizados como insultos nas grandes mídias e nas redes sociais – recobrem, nem a qual realidade se remetem”. [1]
Nesse sentido, a designação de antimoderno se dá de maneira idealmente cautelosa, já que exige a investigação dos fundamentos metafísicos dos autores que assim denominamos, e não somente a análise de suas inclinações políticas. Este é um dos pressupostos que guia o trabalho de Compagnon, que em sua obra basilar sobre o tema limitou sua crítica a autores franceses dos mais variados espectros políticos e visões sociológicas.
A grande questão, levantada também numa entrevista concedida por Compagnon, é se o termo “antimoderno” se aplicaria a intelectuais fora do contexto europeu (entendido no texto como se limitando territorial e culturalmente desde a Península Ibérica aos Bálcãs) – digamos: a Dostoiésvski. A resposta de Compagnon – um “sim” condicional – revela antes de tudo a dificuldade com que grande parte da análise cultural e mesmo filosófica europeia (ou daqueles que se dedicam a estudá-la) se depara, a saber, a real homogeneidade da Europa e seus limites.
Porém, quando minimamente investigada, essa questão conduz por óbvio à dúvida, tanto cultural quanto geopolítica, sobre o status da Rússia: como indaga o título do livro do historiador e professor brasileiro Ângelo Segrillo, Rússia: Europa ou Ásia? (2016). A indagação, muito mais complexa do que uma simples ambiguidade histórica, de certo modo se manifesta até mesmo nas discussões das relações externas atuais, e evidentemente ultrapassa em muito os propósitos deste ensaio. Tenha-se em mente, portanto, as dificuldades relacionadas a atribuição dessas questões ao cenário russo (e, diríamos, a países fora do eixo Europa-América do Norte).
Se essa questão já nos conduz a problemáticas que ultrapassam o âmbito cultural, há ainda, no chamado “cosmismo russo” – uma verdadeira constelação de autores e proponentes das mais distintas ideias, que, no entanto, têm em comum o fato de transitarem entre os domínios científico, religioso e esotérico, sem jamais se enquadrarem inteiramente em algum deles – o complexo relacionamento entre razão e revelação.
A bem da verdade, diz-nos o filósofo e teólogo John Milbank num artigo relativamente recente, que “a tradição [cristã] oriental jamais se propôs esse abismo [entre o discurso filosófico e o teológico], nem permitiu que viesse à tona a problemática ocidental sobre a relação entre natureza e graça, razão e revelação” [2]. Dessa forma, embora posteriormente, ainda segundo Milbank, a tradição do pensamento russo tenha sofrido influências escolásticas (corruptoras, no entendimento do filósofo), é fato que muitos dos aparentes dilemas ocidentais, em especial os embates éticos e epistemológicos entre religião e ciência, não se fazem presentes no ambiente da ortodoxia russa; ou se encontram ali de uma maneira peculiar e permeada por certos pressupostos que lhe são exclusivos.
De todo modo, o cosmismo russo se apresenta como uma via que busca a integração da ciência (em especial, a tecnofilia), da tradição religiosa e mesmo esotérica eslava e dos projetos utópicos que então abundavam. Nesse sentido, Nikolai Fedorov – considerado o pai do cosmismo – e outros pensadores religiosos do século XIX propuseram e levaram a cabo uma linha intelectual-mística-técnica que fundia a crença nos poderes de transformação da ciência com esperanças de uma integração escatológica entre homem e cosmos.
O interesse acadêmico por esse movimento ressurgiu nos últimos anos, especialmente em razão dos esforços do historiador da arte Boris Groys, os quais culminaram na exposição Art Without Death: Russian Cosmism, promovida em fins de 2017 pelo centro Haus der Kulturen der Welt, em Berlim; e em virtude do crescente interesse de empresários do Silicon Valley nas ideias – tidas como visionárias – do pensadores cosmistas.
George M. Young, um dos grandes especialistas no movimento, em sua obra The Russian Cosmists: The Esoteric Futurism of Nikolai Fedorov and His Followers (2012), publicada pela Oxford University Press, esclarece já de início que o cosmismo, além de heteróclito, é um movimento contínuo, que se dissimilou de filosofia tecnocrática e materialista durante os anos opressivos de Stálin, sobrevivendo pois como alternativa à ideologia soviética, e que permanece fértil ainda hoje por meio das obras de Svetlana Semenova e, indiretamente, nos romances de Vladimir Sorokin, autor de Dostoiévski-trip (Editora 34).
Segundo Young, “os temas principais no pensamento cosmista incluem o papel humano ativo na evolução do homem e do cosmo; a criação de novas formas de vida, incluindo um novo estágio da humanidade; a extensão ilimitada da longevidade humana em direção a uma estado de imortalidade prática; a ressureição física dos mortos; a pesquisa científica séria sobre questões há muito consideradas objetos próprios apenas da ficção científica e da literatura ocultista e esotérica; a exploração e colonização de todo o cosmos; a emergência em nossa biosfera de uma nova esfera de pensamento humano chamada ‘noosfera’; e outros ‘projetos’ de longo alcance: alguns dos quais não parecem mais tão impossíveis ou insanos quanto pareciam, quando foram primeiramente apresentados em fins do século XIX e princípio do século XX”. [3]
Muitos desses pontos são simples desenvolvimentos das ideias seminais de Fedorov, conforme a análise de Young. Curiosamente, as circunstâncias do nascimento de Fedorov já são em si simbólicas: filho ilegítimo de um príncipe de uma das famílias mais proeminentes da Rússia, os Gagarin (da qual proveio Iuri Gagarin), e de uma mulher que vivia nas proximidades da casa da família, Fedorov, em virtude de sua situação singular, conhecia intimamente as classes altas e baixas da sociedade russa. Talvez tenha sido a consciência de ambos os extremos das camadas sociais que levou Fedorov à crença no parentesco universal e literal da raça humana, exposta no seu mais conhecido ensaio.
Para o pensador, todos as mazelas humanas têm sua origem comum no problema da morte; a natureza, por sua vez, é a força de desintegração e morte, pois toda unidade (social, espiritual, física ou mineral) é fragmentada e reduzida a partículas. Assim, a grande tarefa da humanidade é a restauração da integralidade e unidade daquilo que a natureza desintegra, seja numa escala social, pessoal ou cósmica, unindo assim todos os povos, todas as fés ou negações, todas as formas de conhecimento; a partir disso, caberia ao homem a tarefa da ressurreição de todos os seres humanos que já morreram, começando pelos familiares, e depois estendendo-se aos ancestrais até aos pais primordiais.
Ademais, na visão de Fedorov, a Terra é somente o ponto embrionário da habitação do homem, de maneira que assim como cultivamos e desenvolvemos a terra, cabe a nós também a colonização da lua e posteriormente do universo, realizando a vontade divina de um “cosmos antropologizado”, que se tornaria completo pela anuência integral do homem. Obviamente essas ideias de Fedorov foram ridicularizadas e desprezadas, mesmo por seus admiradores como Dostoiévski e Soloviév. No entanto, Fedorov surpreendentemente explicava e propunha a consecução de seu ideal por meios tecnológicos e científicos. Aliás, Konstantin Melnikov, um arquiteto cosmista, projetou o sarcófago de Lênin pautado justamente nesses ideais de imortalidade científica.
Para Fedorov, o homem, enquanto “regulador da natureza”, seria capaz, em certa altura de sua evolução, da “autotrofia”, isto é, a capacidade de nutrir-se somente da luz do sol e do ar. Segundo seu raciocínio, a vida presente é um “canibalismo imediato”, já que vivemos de nossos ancestrais, reduzidos ao pó que constitui presentemente todas as coisas pelas quais subsistimos e na expectativa de sua ressurreição por meio de nossos esforços. Desse modo, a autotrofia, que existe presentemente em formas de vida rudimentares, seria o modo de nutrição da raça humana num futuro distante. Mas não só isso; provavelmente, os seres humanos não teriam necessidade de tantos membros corporais, e tornar-se-iam, ainda segundo a expectativa de Fedorov, “semelhantes a plantas espiritual e mentalmente avançadas, comunicando-se em grandiosos campos mentais… com poderosas sensações interconectadas que ocorreriam com um mínimo de presença física”. [4]
As similitudes dessas crenças às propostas transumanistas atuais não são circunstanciais, pois, conforme já dito, tanto eurasianos e antiocidentalistas russos quanto projetistas e criadores de Silicon Valley demonstraram interesses nos últimos anos pela tradição cosmista – os primeiros porque a veem como uma expressão pura do espírito russo; os segundos, por sua vez, louvam as ideias inusitadas sobre a transformação do mundo e expansão dos poderes humanos –, reinterpretando seus ideais à vista dos atuais desenvolvimentos tecnológicos. Aliás, se o movimento em si não tivesse desembocado em contribuições efetivas para a ciência e pesquisa soviéticas, certas pessoas sentir-se-iam tentadas a lançá-lo à fossa dos sistemas pseudocientíficos.
Curiosamente, porém, grande parte dos cosmistas eram polímatas, muitos deles cientistas: Vladimir Vernadsky, um dos fundadores da geoquímica; Pável Florensky, o famoso sacerdote, matemático, místico e físico executado pelo regime soviético; Konstantin Tsiolkovsky, cujas fórmulas matemáticas (inspiradas por seu mestre Fedorov, que, relembre-se, era um Gagarin ilegítimo) serviram de base para o programa Sputnik, incluindo o lançamento da nave Vostok, que levou, como se sabe, um Gagarin ao espaço; e Alexander Chizhevsky, um dos grandes nomes da biofísica e cosmologia russas, que se tornou célebre por suas teorias acerca da influência do ar ionizado sobre os organismos e, mais pitorescamente, sua hipótese que relaciona os ciclos solares ao comportamento coletivo humano, especialmente a irrupção “cíclica” de guerras, movimentos de massas e revoluções.
Conforme se percebe por esses exemplos, não se trata da consiliência de William Whewell, que unificaria os campos distintos do conhecimento, mas provavelmente uma linha que se deriva e se fundamenta na sofiologia, um conceito simultaneamente teológico e filosófico, comum à parte da tradição ortodoxa russa.
É precisamente essa confluência de áreas até então heterogêneas que chama a atenção tanto de ideólogos (como putinistas na Rússia, que veem o cosmismo como uma alternativa à ciência ocidental “decadente” e fragmentada) quanto de acadêmicos interessados na coexistência de linhas aparentemente antípodas.
Ora, a própria obra de Fedorov já apresentava essa tensão antimoderna, pois embora tenha proposto a humanização do cosmos por meio da técnica, o pai do cosmismo via o progresso como a manufatura de coisas mortas, o avanço acelerado à morte e à expropriação dos demais homens: “O triunfo da geração mais nova sobre a mais velha – eis a característica essencial do progresso. Biologicamente, o progresso são os mais jovens devorando os mais velhos, os filhos expulsando os pais; psicologicamente, é a substituição do amor pelos pais por uma exaltação desalmada acima deles […]; sociologicamente, o progresso se expressa como a consecução da plena medida da liberdade acessível ao homem (não na suprema participação de cada um na tarefa comum de restaurar a vida aos pais), visto que a sociedade, que equivale à ausência de fraternidade, exige que a liberdade de cada indivíduo seja limitada […] O progresso é precisamente aquela forma de vida na qual a raça humana é capaz de desfrutar a maior quantidade de sofrimento enquanto luta para adquirir a maior quantidade de prazeres. O progresso não se satisfaz em reconhecer a atividade do mal, mas deseja que a atividade do mal tenha plena representação, e refestela-se nisso na arte realista; ao passo que, na arte idealista, o progresso dirige-se a uma firma convicção de que o bem é impossível e irreal, refestelando-se numa representação do nirvana. Embora a estagnação seja morte e a regressão não seja um paraíso, o progresso é um verdadeiro inferno, de modo que a tarefa verdadeiramente divina, verdadeiramente humana, é salvar as vítimas do progresso, retirá-las do inferno”. [5]
Há outros elementos do cosmismo que hoje são recuperados (e reinterpretados), em especial nas teorias sobre a tecnologia. Talvez uma das mais pertinentes delas seja a noção de nooesfera, proposta primeira por Vladimir Vernadsky, que, em resumo, propõe que nosso planeta passou por três estágios em sua evolução: a geosfera (a vida inanimada), que conduziu em seguida à biosfera (a vida biológica), a partir da qual, por seu turno, adveio a noosfera, na qual a cognição humana se torna um agente ativo da evolução cósmica.
Ora, essa ideia não somente influenciou a teoria da ideosfera do padre e paleontólogo francês Teilhard de Chardin (que conheceu Vernadsky pessoalmente, quando este ministrou uma série de palestras na Sorbonne), mas também o conceito mais recente de semiosfera, a esfera dos signos e sinais de uma cultura, proposto por Iuri M. Lotman.
A correlação dessas teorias cosmistas com as novas tecnologias de transferência de informação, como demonstra o trabalho de Lotman, não são meramente casuais; o que evidencia a complexidade do cosmismo russo, que, sob o pitoresco de algumas de suas propostas, traz consigo a riquíssima percepção de que, como diria Antonio Porchia, “o universo não constitui uma ordem total. Falta a adesão do homem”.
Notas
[1] Élisabeth Bart : « Simone Weil, Marìa Zambrano et Cristina Campo aspirent à une révolution métaphysique », entrevista a Matthieu Giroux, 25 de junho de 2019. Disponível em: https://philitt.fr/2019/06/25/elisabeth-bart-simone-weil-maria-zambrano-et-cristina-campo-aspirent-a-une-revolution-metaphysique/
[2] John Milbank, “Sophiology and theurgy: The new theological horizon”, In: Adrian Pabst & Christoph Schneider (eds.), Encounter Between Eastern Orthodoxy and Radical Orthodoxy: Transfiguring the World Through the Word. London: Routledge, 2016.
[3] George M. Young, The Russian Cosmists: The Esoteric Futurism of Nikolai Fedorov and His Followers. Oxford: Oxford University Press, 2012.
[4] Ibid.
[5] Ibid.