O ‘Daemonium Meridianum’ de Bernanos

Dando sequência ao Especial Bernanos e o Cinema, o crítico Fabrício Tavares de Moraes escreve sobre o clássico de Georges Bernanos, "Sob o Sol de Satã".
Gérard Depardieu no filme homônimo dirigido por Maurice Pilat.

por Fabrício Tavares de Moraes

Do início ao fim do romance Sob o Sol de Satã, de Georges Bernanos, os leitores – assim como seu protagonista, o padre Donissan – mantêm-se constantemente sob a tensão resultante da incapacidade de delimitação entre a ação divina e demoníaca na alma do sacerdote e nas pessoas que cruzam seu caminho.

O próprio título é tanto evocativo quanto ambíguo: que sol é este associado a uma figura proverbialmente tenebrosa? Trata-se, é claro, não de um astro iluminador mas calcinante, uma tentação ou ordálio semelhantes aos dos santos do passado. Ou, mais precisamente, um daemonium meridianum (demônio do meio-dia), como mencionado no Salmo 91, comumente associado à acídia, uma doença da alma que, mais que simples melancolia, é marcada pela falta de propósito e pela exaustão de todas as forças físicas e espirituais. [1]

Na tradição mística cristã, esse mal que assola ao meio-dia provavelmente remete ao torpor e mormaço cáustico que aflige os claustros quando o sol está no zênite. Mas Jerônimo, o primeiro grande hermeneuta, numa interpretação algo pitoresca, identificou esse perigo espiritual com “os heresiarcas que, sob o disfarce de luz, pregam a doutrina das trevas”. E eis, portanto, o grande drama da alma de Donissan, assolado pelo demônio que tenta a todo momento enganá-lo sob o disfarce de Bom Pastor. Durante uma viagem à noite, perdido em meio aos campos, Donissan é, num primeiro momento, auxiliado por um jovem homem, “um rude samaritano” que viaja a serviço de um vendedor de cavalos. Sofrendo de vertigem, o padre é amparado pelas mãos do estranho, que lhe diz, revelando em parte sua natureza sobrenatural, embora com um discurso ambíguo:

Um braço cingia-lhes os rins, num amplexo lento, doce, irresistível. O padre deixou pender de todo a cabeça, aconchegando-a ao ombro amigo, estreitamente. Tão estreitamente que sentia na fronte e nas faces o calor da respiração.

– Dorme sobre mim, criancinha de meu coração – continuava a voz, no mesmo tom. – Segura-me, firme, estúpida besta, padreco, meu camarada. Repousa, sim? Muito te procurei e te cacei. Aqui estás. Como me amas! E como me amarás ainda, porque não quero mais te abandonar, meu querubim, patife tonsurado, velho companheiro, para sempre!

Mas não é somente neste ponto obscuro que o sobrenatural se manifesta de modo mais intenso; todo o prólogo de Mouchette é um longo preâmbulo no qual se reproduz a “elegia ao mal” que se desenrola na alma da jovem possuída. Grávida de um marquês decadente, a quem assassina com um tiro no rosto, Mouchette depois se entrega à lasciva e à mentira total, chafurdando no engano não mais por necessidade, mas porque tinha prazer na abertura das próprias chagas.

Assim, logo após seu encontro com Satanás, Donissan se encontra por acaso com Mouchette na estrada que conduz à cidade para a qual se dirigia. E é nesse ponto que temos a conjunção de duas das três partes da obra, quando o futuro santo se depara e ( pois de fato recebera momentos antes esse dom) a alma possuída que fora dissecada no prólogo. E após esse momento, fugindo da “dura compaixão” do padre, Mouchette, pouco antes de suicidar-se, “chamou – do mais profundo de seu ser, com um apelo que era como um dom de si mesma – o demônio”. Ambos – santo e pecadora – foram causticados pelo sol de Satã, e é esta estranha comunhão uma das razões que faz com que germine no interior de Donissan o desejo brutal pela salvação das almas perdidas no demonismo.

Para o romancista francês, a misericórdia que move seus personagens quase sempre procede do horror do pecado original. E assim mais uma vez essa maldição atávica, a solidariedade da miséria, assoma no universo moral e estético de Bernanos:

Os avarentos formavam uma massa de ouro vivo, os luxuriosos, um monte de entranhas. Por toda parte o pecado rompia seu envoltório, deixava ver o mistério de sua geração: dezenas de homens e mulheres ligados nas fibras do mesmo câncer e os pavorosos liames contraindo-se como os tentáculos decepados de um polvo até o núcleo do próprio monstro, a culpa inicial, ignorada por todos, num coração de criança. Mouchette se viu, como nunca se vira, nem mesmo no momento que lhe espezinharam o orgulho: alguma coisa dobrava-se nela na mais irreparável curvatura, afundando-a numa fuga obscura.

Toda a luta de Donissan, semelhante à de alguns padres do deserto, é uma descida a esse núcleo das motivações humanas, no qual convergem (e digladiam-se) os diferentes agentes que moldam, impulsionam ou confrontam o destino humano. Isto é, os tradicionais inimigos do homem segundo o cristianismo (a carne, o mundo e o Diabo), e também a ação divina, operam nas “trevas [que] se tornam mais espessas até o obscuro cerne, o eu profundo onde se agitam as sombras dos antepassados, em que brame o instinto, como um rio debaixo da terra”. Daí a pergunta comumente feita pelo leitor deste romance: a dor de Donissan é uma provação divina ou uma tentação do Diabo?

Num dos pontos climácticos do romance, o padre é convocado por uma família que tem a esperança agônica de que o “santo de Lumbres” ressuscitará uma criança que morrera há pouco. O milagre da ressurreição de um filho morto (Elias e a viúva de Sarepta; Jesus e a viúva de Naim, por exemplo), embora seja o sinal que confirma a santidade de Donissan, é descrito de modo tão elíptico, que cabe a dúvida sobre sua autoria (ou mesmo quanto a sua ocorrência).

Diferentemente, porém, do padre de Diário de um Pároco de Aldeia, a santidade de Donissan, porque fruto de um combate espiritual intenso, é selvagem e, para alguns, aterradora. De fato, ao final do romance, Saint-Marin, um “leão” da Academia Francesa e estoico cansado da vida, vendo a câmara do santo de Lumbres, onde se depara, chocado, com o ascetismo, diz: “há grandezas selvagens que a sabedoria antiga não conheceu…”. Isto porque, segundo as palavras finais do protagonista, “o testemunho do santo é como que arrancado pela dor”.

[1] Rudolph Arbermann, em seu artigo “The ‘Daemonium meridianum’ and Greek and Latin Patristic exegesis” diz que a figura do “demônio do meio-dia” provavelmente é uma referência indireta, como propôs Roger Caillois, a dois demônios assírios que exerciam seu poder e influência malignos especialmente ao meio-dia e à meia-noite, por meio do calor causticante e pelo frio cortante, respectivamente. Ambos eram tidos como responsáveis por determinadas desordens do organismo humano, como a insolação e a febre malária. O ponto que presentemente nos interessa, no entanto, é que essas entidades promoviam não apenas tribulações espirituais, mas também males físicos, tal como se dá neste romance de Bernanos.

Mais sobre Bernanos no Estado da Arte:

Sob o Sol de Pialat – Especial Bernanos e o Cinema

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