por Juliana de Albuquerque
O lançamento em português de O Grande Zoológico (Editora Record) oferece ao leitor brasileiro a oportunidade de conhecer melhor a obra de um dos maiores escritores contemporâneos: Howard Jacobson, ensaísta e ficcionista inglês e judeu, autor de interesse e alcance universais. Não é para menos: Jacobson é um estudioso da obra de Shakespeare e foi professor de língua e literatura inglesa na Universidade de Sydney e em Cambridge.
Já em seu primeiro livro, uma coleção de ensaios sobre quatro heróis trágicos do universo shakespeariano, Jacobson fala com clareza e elegância do objeto da grande literatura. Segundo o autor, a marca de todo gênio literário é a sua capacidade de presentear o leitor com uma visão integral da experiência humana.
Shakespeare, por exemplo, não tinha por ambição nos transformar em indivíduos melhores ou piores, tampouco escrever um receituário para a vida. Ofereceu-nos um retrato daquilo que realmente somos: humanos. Daí que para Jacobson a marca do bom escritor seja a generosidade: não apenas a capacidade de transformar a sua experiência existencial em ficção, mas a capacidade de transformar e oferecer uma pluralidade de dimensões à sua experiência.
A generosidade de Shakespeare traduz-se numa atitude de tolerância do autor para com a diversidade dos seus personagens e o reconhecimento das limitações da natureza humana. Guardada a devida proporção, é essa generosidade que Jacobson busca recuperar em sua obra de ficção, tema sensivelmente transformado em reflexão literária em O Grande Zoológico.
Publicado imediatamente após Howard Jacobson ter recebido o Man Booker Prize por A Questão Finkler (publicado com discrição pela Bertrand), O Grande Zoológico conta a história de Guy Ableman, um escritor às voltas com a crise de valores do atual universo literário. Diante do sucesso de tanta coisa mal escrita, Guy circula pelas ruas de Londres, dividindo o tempo entre a paixão que sente pela sua própria sogra e os questionamentos sobre o que e para quem escrever num mundo em que a literatura parece ter sido substituída por qualquer outra coisa de pior expressão. Guy acredita que a ficção se encontra ameaçada de extinção, em um cenário no qual a literatura foi substituída pela pornografia sentimental e os leitores vivem a cobrar histórias fáceis, prontas para curtir e compartilhar, meras narrativas que justifiquem as suas próprias visões de mundo em vez do desafio aos limites das suas experiências.
Assim, durante os saraus patrocinados por livrarias e festivais literários, Guy defronta-se com o vazio afetivo e intelectual da sua própria plateia. Todos se preocupam com tudo, das feministas aos idosos, menos em usufruir da experiência literária. Perguntam-lhe por que prefere não neutralizar os pronomes, por que não quer ser mais inclusivo. Falam errado. Confundem a língua e a gramática como instrumentos de opressão. Os leitores que restam não querem mais contemplar outras maneiras de encarar o mundo e de ser humano. O que eles buscam é o exercício constante de autoidentificação.
Diante dessa subversão de valores e de inversão de mentalidade, agentes, editores e escritores entram em pânico: perdem a noção do que vender, publicar e escrever. Estão todos terrorizados pelos novos interesses do público leitor. Guy, no entanto, mesmo estando tão desnorteado quanto seus colegas de vocação, resolve não fazer concessões ao público. Para ele, o verdadeiro objeto da literatura há de ser resgatado. Aos diabos com o sentimentalismo contemporâneo!
Tanto para Guy, o personagem, como para Jacobson, o autor, a ficção existe para desenvolver a nossa capacidade de interagir e buscar compreender mesmo aquelas experiências de vida e de consciência que nos sejam totalmente estranhas. O poder da literatura está em ensejar a oportunidade de desenvolver novas e múltiplas perspectivas sobre a vida e a natureza humana. Mas será que Guy tem razão? Será que nós vivemos um período sombrio para a literatura?
Uma vez por semana, eu ensino literatura alemã para uma turma de jovens recém-chegados ao departamento de estudos germânicos. Juntos estudamos Goethe, Novalis, Rilke, e outros mais. Textos difíceis para quem encara o alemão como segunda língua e ainda não alcançou maturidade literária.
No entanto, eu nunca deixo de me surpreender com a receptividade e o interesse dos estudantes em acolher as minhas observações e compartilhar as suas próprias análises. O que a minha experiência de sala de aula me sugere é o exato oposto daquilo que Guy Ableman nos mostra. Apesar de todas as distrações e confortos do mundo contemporâneo, tenho a impressão de que ainda somos capazes de encararmos os desafios e os prazeres boa literatura.
De onde surge, então, o discurso raivoso e pessimista do personagem?
Em uma entrevista à imprensa portuguesa, Jacobson comentou: “Sou um romancista publicado há 35 anos e talvez haja alguma coisa de errado com o que escrevo. Mas a sensação que tenho é que à medida que me vou tornando mais conhecido, tenho cada vez menos leitores.”
Declarações nessa linha – além da própria natureza do livro – ajudaram a convencer muitos jornalistas, inclusive a crítica literária do Independent, que O Grande Zoológico, apesar de engraçado teria sido escrito em tom de desabafo. Discordo. Se existe algum desabafo em O Grande Zoológico, não devemos levá-lo ser completamente a sério. Se eu estiver certa ao afirmar que a característica de um bom autor é a sua capacidade de conceder novas dimensões às suas próprias experiências, então, mais uma vez, o tom raivoso e pessimista de Guy não deve ser entendido como um desabafo do seu criador.
Aqui, vale a pena lembrar que, embora Jacobson escreva sobre homens judeus e o universo da mídia e da literatura, nenhum dos seus personagens é exatamente autobiográfico. Afinal, em todos os seus livros, a autobiografia, assim como toda e qualquer situação, precisa ser desafiada pelo riso. Numa palestra recente sobre a atualidade de Shakespeare, Jacobson explicou que a tarefa do comediante é a de nos fazer rir diante de situações inevitáveis, mesmo que sejam absurdas, ou até trágicas. Assim, a fala de Hamlet para a caveira de Yorick —“make her laugh at that”— tornou-se uma espécie de lema para o autor de O Grande Zoológico.
Na dieta literária de Jacobson, além da tolerância e da generosidade, também o humor, tomado de Shakespeare igualmente, marca presença para combater a nossa tendência à morbidez e à seriedade. Por isso mesmo é que, em vez de serem considerados nas exatas expressões de Howard Jacobson, a raiva e o pessimismo de Guy Ableman precisam ser entendidos como extrapolações cômicas do impulso narcisista do seu criador. Imagino o pensando: “Não existem mais leitores porque não existem mais leitores para mim. A literatura está ameaçada, não porque nós deixamos de nos maravilhar com a boa escrita, mas porque os leitores não compram os meus livros.”
Em Howard Jacobson, Guy Ableman nos convida a rir do autor. Se o “moço príncipe” de Shakespeare nos desafia a rir da morte, Guy Ableman é o convite de Jacobson para rirmos do autor. Uma estratégia muito shakespeariana, aliás: a literatura a nos prevenir da seriedade… da literatura. E por que não também da vida?
Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda