por Thiago Blumenthal
A arte dos dois últimos séculos tocou em questões fundamentais da mente, tanto no sentido de quem escreve como no sentido de quem lê. Na filosofia, a dificuldade de explicar como e por que alguém sente algo é chamada de hard problem, uma vez que a experiência consciente não segue as mesmas leis físicas que coordenam o universo. Em termos espaciais, se pensarmos no hard problem, a segunda lei da termodinâmica afirma que a entropia de qualquer sistema fechado nunca decresce, ou, em outras palavras, o universo está se desdobrando para ser o mais desordenado possível e ao mesmo tempo uniforme. Como ligar as duas ideias? Eis um grande desafio, em um universo ficcional de amores doentios, detetives viciados em cocaína, ou jovens preocupados com os patos do Central Park.
A pergunta inicial se dá quando estímulos cerebrais se transformam em experiências subjetivas, ou seja, da passagem do que é de fato mente (e cérebro) para o que é consciência. Uma sinapse, a recaptação de serotonina, um neurotransmissor inibidor GABA, descargas elétricas são elementos de certo modo palpáveis, compreensíveis (na medida do possível), mas a subjetividade que surge a partir da conjunção de todos esses elementos nos escapa. Como uma ideia cartesiana que não se encaixa, que busca sua parte que falta.
Se o modelo cartesiano (materialista) coloca a mente onde “tudo se junta”, uma alternativa mais moderna (Dennett, por exemplo) estabelece que não há nenhum “fluxo de consciência”, mas antes um fluxo paralelo de conteúdo temporais e espaciais in continuum. Uma obra como a Recherche proustiana, parece ilustrar bem esse tipo de consciência, sem o materialismo cartesiano que por séculos foi seguido.
O grande hard problem proustiano, por exemplo, está em resolver os seus elementos narrativos como produtos puramente mentais em paralelo com a experiência real do que se vive. Em outras palavras, o personagem sente ciúme de Albertine não porque ela o trai, ou porque ele não sabe onde ela está, ou porque ele não terá seu beijo de boa noite, mas porque um processo mental de conexões com o passado (o beijo da mãe, o relacionamento de Odette com Swann etc) é disparado em suas memórias. A culpa, ou a responsabilidade, por assim dizer, não está em Albertine, mas nas experiências de Marcel que associam a ausência de Albertine a eventos intimamente ligados ao ciúme.
Como a cidade de Combray não é apenas Combray, um espaço descrito de uma infância repleta de memórias e de primeiros amores, mas uma projeção mental direcionada e em paralelo a diversos acontecimentos, sempre ao mesmo tempo. A maior dificuldade deste Narrador está em buscar uma ordenação dessas sensações, de onde vêm o sofrimento, por que a madeleine lhe traz a lembrança de Combray, e uma de suas grandes epifanias está em perceber essa condição sine qua non da autoconsciência do romance: os lugares não são lugares, são nomes que estão dispostos a serem experimentados e reinventados conforme o Narrador os vivencia ou os relembra. Não por acaso Marcel não é um, mas um mil.
Como uma espécie de monismo, em que o universo não é senão uma manifestação da mente, os espaços da Recherche não são também senão manifestação da mente. Diante desse monismo, os espaços são reassimilados e reinventados sob outros nomes e outras condições.
A beleza somente pode ser absorvida no uso de seu discurso, em sua disciplina e em seu equilíbrio, como na metáfora da catedral e da sinfonia, da distância e da integralidade, ou sempre vai parecer de certo modo incompleta. São necessárias milhares de páginas e uma recolecção de memórias, revisitadas e redescobertas, redefinidas pela mente, para que tal empreitada obtenha algum sucesso. É a experiência estética. A experiência estética, em Proust, cria uma espécie de comunidade, que, por tabela, produz uma beleza e um sentido que vão além das próprias palavras, pois estas estão sendo realizadas para fora do real: Albertine, como sabemos, não é a Albertine de Marcel, mas a Albertine do romance de Marcel.
O belo, o sublime, possuem também uma camada ética, social e hermenêutica que são reveladas com certa clareza em grandes obras do nosso cânone. O desejo da mente de buscar e retratar a beleza está na própria fundação da estética, o que gera alguma consequência, mas consequência que vem interna à obra (a mente) mais do que de fora da obra (os objetos que a definem), sem nenhuma origem formal. O prazer associado a uma composição particular depende de uma resposta mental ao estímulo visual ou de um desafio intelectual; a forma em si nada legisla e está ligada apenas a um princípio mental.