Tentarei explicar por que aqueles que, como eu, vêm do Leste Europeu têm por Albert Camus tanta gratidão. Ele nos era mais próximo – e creio que posso falar por outros além de mim – do que quase todos os escritores franceses contemporâneos. É que o paralelismo histórico não é um fator negligenciável. Ora, os intelectuais franceses dos anos quarenta e cinquenta, na sua maioria, foram fascinados pela História. Nós também – mas de uma maneira diferente. Eles aspiravam a um tipo de saturação pessoal pela historicidade; nós estávamos saturados até a moela dos ossos e, por isso mesmo, passávamos, por assim dizer, para o outro lado. Todos os discursos sobre a História que ouvíamos na França nos pareciam suspeitos, pois neles era evocada uma imagem, uma ideia, e não essa realidade que havíamos conhecido nas suas formas mais cruéis, o nazismo e o stalinismo. Ignoro o que protegia Albert Camus contra uma moda difundida entre os intelectuais parisienses, tão conformistas. Eram as praias da África, sua origem popular que o preservavam de uma “má consciência” burguesa? Como quer que seja, ele tratava os ídolos do momento com uma desconfiança cujo preço ele pagava, pois os intelectuais não perdoam uma tal falta de respeito pelas especulações pós-hegelianas.
Está na moda o deboche, já tradicional, dirigido contra as boas maneiras das classes congeladas em sua moral estreita; ele tem suas causas profundas no passado francês e na estrutura social do país. Quanto a mim, estrangeiro, o deboche sempre me entediou. No Leste, nunca tivemos burguesia digna desse nome. Debochar é muito bom, mas é preciso, para se permitir isso, ter atrás de si alguns séculos de vida ordenada. Vindos da intelligentsia (essa camada muito especial) ou do povo, fomos jogados em uma comoção, um caos em que tudo caía por terra. Todas as portas já estando abertas, era inútil força-las mais uma vez. Ao contrário, tínhamos necessidade de entusiasmo e de ímpeto para escapar à fluidez. As zombarias, na Polônia, são no mais das vezes um meio de defesa do individuo contra o poder. Camus não debochava, o que o tornava vulnerável ao extremo aos ataques aplaudidos por um público bem treinado – e que vê no riso forçado o sinal de um espírito superior. É por essa razão que sempre estive no campo de Camus.
O que me surpreende nos intelectuais franceses é sua fé em ideias gerais: eles creem bastar que um homem se feche no seu quarto e pense com lógica para que ele consiga compreender tudo, por exemplo, sobre os conflitos que ocorrem em Gana, na Hungria, na Polônia ou na Rússia. Os resultados de um tal esforço me fizeram rir frequentemente – quando eles concernem aos países que conheço, pois, quanto ao resto, ficava, como todo mundo, repleto de um santo respeito. Entretanto, aprendi, e não sem sofrimento, que é arriscado pronunciar-se sobre os assuntos internos de um país cuja língua não se fala – o mínimo insuficiente, mas necessário. Surpreendia-me com a facilidade e a pretensa competência com que se discutia sobre a China em Paris, enquanto me era difícil desembaraçar algumas complexidades políticas do Leste Europeu, pois o húngaro, por exemplo, era-me inacessível. Tinha a impressão de que Camus pertencia a uma espécie bem diferente da dos grandes especialistas que têm a ciência infusa e que resolvem problemas do Texas ou da Indonésia como se se tratasse de um subúrbio. Essa característica de Camus, que era considerada em Paris como um defeito, era explicada por sua falta de treinamento filosófico. Mas o que se entende, em primeiro lugar, por filosofia? Para alguns, como Camus, a filosofia exige um alimento quase carnal e eles se recusam a falar de outra coisa se não do que os toca pessoalmente.
Isso nos leva diretamente à questão argelina. Eu não aprovava inteiramente sua posição sobre o problema. Mas um estrangeiro que assiste a essa tragédia é levado a julgamentos um pouco apressados. A posição de Camus me lembrava certos tormentos interiores que muitos experimentaram entre nós antes da Segunda Guerra. A capital da Galícia oriental, Lwow, era uma cidade polonesa (há muitos séculos), mas cercada de campos com uma grande população ucraniana, o que gerava ódios que se exprimiram cruelmente por 1942-1943, quando se deu o massacre das populações polonesas por tropas ucranianas armadas pelos alemães. Tirar daí a conclusão de que os poloneses são anjos e que os ucranianos são demônios, ou o contrário, seria um erro. Mesmo nos piores momentos, e em ambas as partes, seres humanos foram desesperados pela intensidade do ódios e ao menos reticentes em louvar o nacionalismo de seus compatriotas ou, ao contrário, o de seus adversários. Dou-me conta de que minha analogia não é perfeita. Entretanto, o imbróglio étnico do Leste Europeu me serviu a entender as dificuldades de Camus.
Quanto a sua obra literária, confesso que nunca me agradou seu estilo. Estou separado do francês por um véu e seria ridículo erigir-me em especialista. A distância provem das aventuras muito particulares da minha língua natal. Rico em substantivos e em verbos que se relacionam às cores, aos sons, aos ruídos, aos odores, cheirando ao terroir, o polonês, por sua natureza mesma, e malgrado a influência da sintaxe latina, pende a um lirismo preocupante. A meu entender, ele deve tender somente a um ideal: o da simplicidade funcional, como contrapeso à carga de sensualidade. O exemplo do francês clássico pode nos ser útil, mas o francês de hoje parece buscar exatamente aquilo de que nos esforçamos em escapar. A destilação altiva das frases nos choca. O estilo de Camus é típico? Não, para os franceses, que lhe opõem outros procedimentos e outras maneiras de escrever. Sim, para os estrangeiros cuja orelha registra uma tonalidade própria a toda uma época na história da língua.
Mas já ao primeiro contato, a obra de Camus tinha para mim algo de familiar. Mencionarei aqui um autor que a ela me tinha preparado. Era Joseph Conrad, que todos da minha geração leram nas excelentes traduções feitas por sua prima, Aniela Zagorska. Não gostaria de exagerar a comparação entre Conrad e Camus, mas ambos se comportavam como hidalgos. O paralelo não daria conta do lugar e do tempo e seria perigoso. No entanto, Conrad era obcecado pela moral sem sanção, pela solidão do homem lutando contra o destino cego sob o céu mudo e postulando a fraternidade humana. Mas nunca levou sua inquietação até po-la em equações. Nem sua formação pela literatura polonesa na sua primeira juventude nem sua “anglicidade” inclinavam-no a escrever um “mito de Sísifo”. Preferia propor ao leitor a contemplação de um universo impassível; depois ele se refugiava no silêncio, evitando qualquer comentário. Camus trazia aos mesmos problemas seu temperamento jansenista, ou mais bem cátaro. Parece-me que suas raízes, através de uma longa tradição cristã, mergulhavam no maniqueísmo dos bogomilos da Bulgária, que ia reviver nas “seitas” russas e, transplantado no Ocidente, entre os albigineses. Camus era fascinado por Dostoievsky, esse herdeiro das seitas da cristandade oriental. E, assim como Dostoievsky, tinha coragem de abordar temas de “mau gosto”. Pois é de bom gosto meditar hoje sobre o enigma apresentado já no Livro de Jó? Não se é então, em literatura, um ingênuo, um príncipe Michkin disfarçado de escritor parisiense? A peste é o melhor livro sobre o flagelo totalitário dos tempos modernos. Mas, em primeiro lugar, é uma meditação sobre a desgraça dos inocentes, logo sobre o Livro de Jó. “Ele zomba da desgraça dos inocentes”. Quem? Jeová, o demiurgo mau dos maniqueus.
Na sua juventude, na Universidade de Argel, Camus apresentou um trabalho sobre Santo Agostinho, e pergunto-me se toda a sua obra não é, no fundo, teológica. Interpretaria de bom grado A queda como um tratado sobre a Graça (ausente), cuja chave estaria nesta frase: “As pombas esperam lá no alto, elas esperam o ano todo. Giram acima da terra, olham, desejariam descer. Mas não há nada além do mar e dos canais, tetos cobertos de insígnias, e nenhuma cabeça onde pousar”. Creio também que o apego tocante de Camus à memória de Simone Weil, a quem ele chamava de “o único grande espírito de nosso tempo”, radica no fervor bem albiginês dessa herege.
Não era fácil para mim aceitar o Ocidente. Carregava um rancor e provavelmente mantive vestígios dele. Pensava, após a guerra: “Eles não aprenderam nada, sua vida corre seu curso, recomeçam seu jogo estúpido como se nada tivesse acontecido.” Pode ser que tampouco tenhamos aprendido muita coisa, mas, queiramos ou não, não reencontramos nossos hábitos de antes de 1939. Para nós, ver o Ocidente, com suas ideias, sua história (nem tão rosa quando se consegue deslizar nos seus bastidores), sua “vista total” em que um milhão de cadáveres a mais ou a menos não contam, sua arte de revolta com responsabilidade limitada, tudo isso era recuar em cinquenta ou cem anos. Apenas homens tais como Albert Camus pesavam na balança, pois se adivinhava neles uma verdadeira dor. Nenhum dentre nós, que sobrevivemos à vergonha da impotência, pode se livrar desse sentimento de culpa expresso por um dos personagens de Camus: “Ah! Quem poderia acreditar que o crime não está tanto em fazer morrer quanto não se deixar morrer!” Descubro agora o que permitia ao escritor Camus encarar o desafio da época dos fornos crematórios e dos campos de concentração: ele tinha a coragem de dizer coisas elementares.
Camus era um desses intelectuais ocidentais, pouco numerosos, que me estenderam a mão quando deixei a Polônia stalinista, em 1951, ao passo que outros me evitavam considerando-me como um pestilento e como um pregador contra o Futuro. É bem triste, para um pobre diabo que nunca teve outra fortuna além de sua pele e de sua pluma, ser representado na imprensa como um burguês enfarado em fuga da pátria socialista. Não me pouparam tais elogios, e esse período foi bem duro. À direita, não havia linguagem comum; à esquerda, um mal-entendido completo, pois minhas opiniões políticas estavam avançadas em alguns anos quanto ao que se tornou moeda corrente depois de 1956. Em uma situação tão incômoda, a amizade reconforta e dá esse mínimo de segurança sem o qual somos expostos às tentações niilistas. Nunca os intelectuais hegelianos compreenderão quais consequências no plano das relações humanas puderam ter suas argúcias e quantos abismos escavam entre eles e os habitantes do Leste Europeu, informados ou não sobre Marx. A filosofia é algo de muito carnal: ele resfria o olhar ou, como em Camus, ela introduz no homem a cordialidade de um irmão.
A amizade de Camus era um dos fios que me permitiam me conduzir no labirinto ocidental. Seguindo-o, percebi que estava errado, que o rancor não é o melhor guia, e que é possível viver e trabalhar em Paris sem bajular Saint-Germain-des-Prés. A França é impressionante por aquilo que tem de inesperado, pela multiplicidade de germes que se encontram sob uma superfície por demais unida. Já que estou satisfeito com o meu destino, já que fui moldado e fecundado pela França, expresso aqui meu reconhecimento a um dos que me fizeram aceitar esses país.
Czes?aw Mi?osz (1911 – 2004), poeta polonês vencedor do Prêmio Nobel de Literatura (1980), publicou este ensaio em homenagem a Albert Camus na revista Preuves em abril de 1960.
Tradução: Rodrigo de Lemos
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