por Alexandre Pinheiro Hasegawa
São Paulo, 08 de dezembro de 2018
Caríssimo Horácio,
recebi há um bocado de tempo tuas epístolas e só agora tenho a oportunidade de te responder. Já era hora! De início, não sabia se eram para Mecenas, para Máximo, para mim ou para todos nós. Só ao fim, quando te diriges ao livro de epístolas – mas que ideia, poeta! –, me dei conta de que era mais um jogo teu, embora logo no começo tenhas dito ter abandonado os divertimentos! És um brincalhão! Dizes deixar de escrever versos fazendo hexâmetros datílicos; em seguida, dizes que a matéria filosófica em Homero é mais clara e melhor do que em certos filósofos!
Ah, meu caro, como disse outro célebre autor de epístolas, se pudesse acontecer, preferiria mostrar o que sinto a falar! Aí vão as minhas letras sobre as tuas, que nos trazem os verdadeiros vestígios do amigo ausente. A carta é, como sabes, uma imagem da alma e um presente.
Vale! Ex imo corde
Alexandre
P.S.: Entre os passos mais debatidos das tuas Epístolas está o v.31 de epist.1.2: cessatum ducere curam. Antes de mais nada a tradição manuscrita ora traz somnum, ora curam. Essa preocupação tira o sono! Quando puderes, esclarece-nos. Depois, todos os manuscritos nos apresentam cessatum, mas a preferência hoje é pela conjectura cessantem. Enfim, podendo, envia mais uma epístola só para fazer cessar essa preocupação…
Escrever cartas já foi hábito mais frequente e prática que se ensinava nas escolas. Já não é mais assim ou, pelo menos, é raro que se aprenda, que se estude o gênero epistolar, tão cultivado durante anos na formação dos escritores antigos. As cartas ou epístolas sempre foram de grande interesse: é suficiente lembrar das epístolas de Platão, sobretudo da Carta 7, dirigida a Díon, em que, entre outras coisas, diz ser próprio do homem sério não expor matéria séria por escrito. Ainda que se discuta muito a autoria delas atualmente, foram-lhe atribuídas treze epístolas desde a Antiguidade. Treze também são as epístolas de Dante Alighieri, escritas em latim, das quais se destaca a Carta 13, de controversa autoria, em que dedica o Paraíso da Comédia a Cangrande della Scala e explica os sentidos do poema. Quanto interesse há ainda nas epístolas de Epicuro, de Cícero, de Sêneca, de Petrarca, de Erasmo! A mais antiga discussão sobre a espécie epistolar que nos chegou está no tratado retórico Sobre o Estilo (223-235) de Demétrio – quem quer que seja esse autor, provavelmente do séc. I a.C. –, na parte em que discute o gênero simples ou humilde (ischnós).
Nesta história, porém, Horácio tem um lugar muito particular, pois, diferentemente de todos esses autores citados até aqui, escreve epístolas em verso, em hexâmetros datílicos. É certo que já se faziam cartas assim antes dele, como testemunham os frr. 181-3 M.; 341 M. de Lucílio ou Cícero, em missiva a Ático (ad Att. 13.6.4), que lembra de Espúrio Múmmio, escritor de epístolas versificadas. Em Catulo também se encontram cartas em verso (65 e 68.1-40), que talvez sejam indícios da existência da espécie entre autores helenísticos. No entanto, nenhum autor, até onde sabemos, editou em um único livro as próprias epístolas em hexâmetro datílico, como fez Horácio, abrindo estrada para os inovadores livros de cartas em dístico elegíaco de Ovídio, como as Heroides – a que se refere como epístola em Arte de Amar (3.345) –, as Cartas Pônticas e as Tristezas.
Publicado provavelmente entre 19 e 20 a.C., o livro de Epístolas 1 é obra de autor muito experiente, pois já estavam em circulação as duas recolhas satíricas (Sátiras 1 e 2), a iâmbica (Epodos) e a primeira lírica (Odes 1-3), comentadas por nós nos últimos três textos no Estado da Arte – Estadão. O chamado segundo livro de Epístolas, que encerra duas cartas longas, a Augusto (epist. 2.1) e a Floro (epist. 2.2), foi provavelmente editado depois da morte do autor; a Epístola aos Pisões, mais conhecida como Arte Poética – assim nomeada por Quintiliano (8.3.60: liber de arte poetica) –, é em geral considerada à parte, pois desse modo aparece nos manuscritos, com datação muito controversa. Neste texto discutiremos então apenas Epístolas 1, livro composto por 20 cartas, deixando as demais para outra ocasião, já que merecem tratamento particular.
Antes, porém, de passar à primeira recolha epistolar, é oportuno discutir ainda como se entendem as cartas em verso de Horácio e o título da obra. A crítica, em geral, considera as epístolas como poesia, sem, por vezes, fazer qualquer ressalva ou mesmo lembrar que é o próprio autor a dizer logo no início do livro que agora põe de lado os versos e os outros divertimentos (epist. 1.1.10: nunc itaque et versus et cetera ludicra pono: “agora, então, deponho não só os versos, mas também os outros divertimentos”), ou seja, abandona a poesia. Muitas explicações já foram dadas para adequar a afirmação horaciana ao entendimento das epístolas como poesia. A uns, trata-se de ironia – solução, por vezes, fácil para explicar as dificuldades do texto; a outros, o abandono é momentâneo, pois apresentará na sequência poesia de matéria filosófica. Sem negar tais possibilidades e outras ainda, é possível entender que Horácio está dizendo o que diz, a saber: não pratica agora, nas Epístolas, a atividade poética! Ora, o próprio autor, anteriormente, nas Sátiras, colocava a discussão se era ou não poesia o que estava a fazer e se exclui do número dos poetas, escrevendo também em hexâmetros datílicos (sat. 1.4.39-42):
Primum ego me illorum, dederim quibus esse poetis,
excerpam numero: neque enim concludere versum 40
dixeris esse satis; neque, siqui scribat uti nos
sermoni propriora, putes hunc esse poetam.
Primeiro, eu me excluirei do número daqueles a que
concedi serem poetas, pois nem dirás ser suficiente
concluir o verso, nem julgues, se alguém escrever como nós 40
coisas mais próprias à conversa, que ele é poeta.
Aqui parece não haver dúvida de que Horácio opõe o sermo (“conversa”) do satirista aos versos dos poetas. Por isso, acrescenta ainda (vv.45-6: … quidam, comoedia necne poema / esset, quaesivere …), “alguns questionaram se a comédia seria ou não poema”, pois faltam força e agudo espírito na matéria e nas palavras; é assim mera conversa (v.48: sermo merus) que se diferencia da conversa apenas por determinado metro (vv.47-8: … pede certo / differt sermoni). Há, como ressaltamos em negrito, insistência na palavra sermo, que identifica a sátira, essa Musa pedestre (sat. 2.6.16: quid prius inlustrem satiris Musaque pedestri?). Assim, os hexâmetros datílicos aí produzidos soavam-lhe como prosa, o que levava à dúvida se a sátira era ou não verdadeiro poema (sat. 1.4.63: … alias iustum sit necne poema). Ora, nas Epístolas ele não só volta a esse “metro prosaico”, mas também identifica as cartas como sermo (cf. epist. 1.4.1: muito provável que aqui sermones se refiram às próprias epístolas; epist. 2.2.4 e 250), identificação que já aparecera em Cícero (ad Att. 1.9.1). Tal é a semelhança das duas obras, a epistolográfica e a satírica, que Porfirião (séc. III d.C.), comentador das obras de Horácio, não via diferença entre Epistulae (Epístolas) e Sermones (as Sátiras), a não ser pelo título (Flacci epistularum libri titulo tantum dissimiles a sermonum sunt, ad epist. 1.1). Descontado o exagero da observação, vale ressaltar aqui como o título das cartas de Horácio é antigo, aparecendo o termo (epistula) no próprio autor (epist. 2.2.22).
Porém, ainda que se possa afirmar, a partir de passos do próprio Horácio, que epístolas e sátiras não são poemas, alguns críticos ainda contestam o autor, argumentando que são versos os hexâmetros datílicos utilizados em Sátiras e Epístolas; portanto, não se pode negar que são “verdadeira” poesia. Ora, mesmo tal argumentação não convence completamente, pois o verso não era critério para definir se a composição era poesia ou não. Aristóteles, na Poética (9, 1451b), por exemplo, diz que se os escritos de Heródoto fossem versificados, continuariam a ser história, pois a diferença entre historiador e poeta não se dá por um escrever verso e o outro, prosa. Ora, já antes na mesma obra (1, 1447b), o filósofo contesta a nomeação dos poetas pela métrica utilizada e não pela imitação praticada. Assim, alguns autores, escrevendo em hexâmetro datílico, expõem assunto médico ou físico (relativo à natureza) e recebem a designação de poetas, como Empédocles (séc. V a.C.). Aristóteles, porém, afirma que nada há em comum entre Homero e Empédocles, a não ser o verso; portanto, a um cabe o nome de poeta, mas a outro, o de fisiólogo. Assim, o metro não é, na poética aristotélica, critério para determinar se o texto é ou não poesia; antes, o hexâmetro datílico se mostra verso adequado para matéria didático-filosófica, como temos em sátiras e epístolas. Horácio parece concordar com a doutrina peripatética na passagem da sátira citada acima. Deste modo, não só nega que faz versos, mas também afirma não ser suficiente compor versos para que seja poeta.
Relacionada a essa discussão, surge outra que dominou, por certo tempo, os estudos sobre as epístolas: não sendo poesia, são históricas? As cartas foram realmente dirigidas aos destinatários mencionados? Essas epístolas circularam individualmente antes da edição em livro? Horácio, por exemplo, convidou de fato o amigo Torquato para um modesto jantar em sua casa (epist. 1.5)? Escreveu realmente a Mecenas, desculpando-se por demorar-se no campo (epist. 1.7)? Enviou, desejoso do campo, uma carta ao caseiro, desejoso da cidade (epist. 1.14)? Nesta polêmica, há os partidários de que as cartas originariamente foram escritas às personagens nomeadas, históricas epístolas enviadas por Horácio; há, porém, aqueles que defendem serem invenções do começo ao fim, cartas que nunca chegaram aos endereçados. Antes de mais nada, ainda que não sejam poesia, elas podem ser apenas invenções horacianas, concebidas para formar o livro, destinado, em sua velhice, a ensinar “o bê-á-bá aos meninos” (epist. 1.20.17-18), tornando público o discurso privado. Assim, cada epístola forja um destinatário, uma situação, mimetiza a escrita da carta de tal modo que se pense ser missiva histórica. A última, porém, epist. 1.20, com alocução ao próprio livro, nos lembraria do caráter editorial e mimético do conjunto. Por outro lado, é possível que algumas das epístolas tenham circulado separadamente (prática comum antes da publicação em livro) como correspondência privada mesmo, revista depois para a edição. No entanto, sem outras fontes que testemunhem isso, nunca saberemos o grau de “fingimento” desses escritos. Cabe-nos, portanto, ler as Epístolas 1 como livro, cuidadosamente editado por Horácio, corpus exiguum (“corpo exíguo”), mas inteiramente dedicado ao verdadeiro e ao conveniente.
Retirada de Cena: Horácio Abandona a Arena
Prima dicte mihi, summa dicende Camena,
spectatum satis et donatum iam rude quaeris,
Maecenas, iterum antiquo me includere ludo?
non eadem est aetas, non mens. Veianius armis
Herculis ad postem fixis latet abditus agro, 5
ne populum extrema totiens exoret harena
Na primeira Camena te cantei, a ti deverei cantar na última:
a mim, bastante observado e premiado já com o bastão, buscas,
Mecenas, de novo me incluir no antigo jogo?
Não é a mesma a idade, nem a mente. Veiânio, afixadas as armas
ao limiar do tempo de Hércules, esconde-se, retirado ao campo,5
para que, tantas vezes, não suplique ao povo, à margem da arena.
Na abertura do livro, dirigindo-se habitualmente a Mecenas, apresenta-se como autor que deseja se retirar, como velho gladiador, célebre, mas cansado dos ludi (“jogos”), de fazer súplicas ao povo. Neste jogo – paradoxalmente ainda continua a jogar –, Horácio alude a Homero, mais precisamente ao Canto 9 da Ilíada, quando Nestor, dirigindo-se a Agamêmnon, inicia seu discurso para convencê-lo a fazer as pazes com Aquiles (96-97): “Honradíssimo Atrida, Agamêmnon, senhor de homens, / em ti terminarei, por ti começarei …”. É, porém, possível que, ao imitar aquele Oceano donde tudo deriva, identificando-se com o velho e sábio Nestor, tenha interferido a emulação praticada pelo helenístico Teócrito (séc. III a.C.), que diz ao início do Idílio 17 (v.1), encômio a outro soberano, Ptolomeu Filadelfo: “De Zeus começamos e com Zeus terminai, Musas”. Se, por um lado, o mortal homérico (Agamêmnon) é substituído pelo imortal (Zeus), por outro, inserem-se as Musas, que ocupam última posição do verso. Ora, parece não escapar a Horácio esse detalhe ao concluir o primeiro hexâmetro com Camena, correspondente latina da Musa grega.
Mecenas deseja encerrá-lo novamente no antigo jogo poético, quer colocá-lo de volta na arena poética. Horácio, então, não parece fora de forma para um velho gladiador ao brincar com as palavras. No verbo “incluir” (v.3: includere) encerra “o jogo” (v. 3: ludo), que repercutirá no verso 10 (nunc itaque et versus et cetera ludicra pono), ao afirmar que abandona os divertimentos (ludicra) poéticos. Além disso, ainda no terceiro verso, ao dispor o adjetivo “antigo” (antiquo) e o substantivo “jogo” (ludo) ao redor de “me incluir” (me includere) desenha jocosa e engenhosamente com as palavras: o antigo jogo o encerra, como o gladiador é envolvido pela arena; arena, porém, poética em que Mecenas quer incluir Horácio de novo. Muita elaboração e refinamento neste sermo epistolar!
Ao ler com atenção a passagem acima, não se trata apenas de não voltar à antiga atividade, mas é também uma retirada: como Veiânio, que, depostas as armas (não poéticas!), se oculta, vai ao campo, Horácio também, em muitos momentos, busca este distanciamento, ausenta-se de Roma, deseja o campo e recolhe-se nele mesmo (epist. 1.7.12: contractus, termo tão debatido pela crítica). Já na epist. 1.2 o autor se encontra retirado em Preneste (atual Palestrina), pequena cidade, relendo Homero, enquanto Lólio Máximo, com quem se corresponde, faz declamações na grande Roma (vv.1-2); na epist. 1.7, dirigida novamente a Mecenas, desculpa-se por demorar-se no campo durante todo o sexto mês (vv.1-2) e, mais à frente, declara: “ao pequeno convêm pequenas coisas; já não me apraz a régia Roma, / mas a vazia Tíbur e a pacífica Tarento” (vv. 44-45: parvum parva decent; mihi iam non regia Roma, / sed vacuum Tibur placet aut inbelle Tarentum); na epist. 1.10, endereçada a Fusco, opõe, de novo, a cidade ao campo, ressaltando o contraste pela colocação de cidade (urbis) e campo (ruris) no início dos versos e o poliptoto de amante (vv.1-2): “A Fusco, amante da cidade, saudações dirigimos, / amantes do campo …” (Vrbis amatorem Fuscum salvere iubemus / ruris amatores …); enfim, na epist. 1.14, enviada ao caseiro da villa Sabina, Horácio, agora em Roma, deseja o campo, enquanto o caseiro quer a cidade, estando no campo (vv.1-10). Retirar-se dos olhos da multidão e ir em direção ao campo, como fez o gladiador Veiânio, é, pois, ação ou desejo frequente de Horácio, que assim julga encontrar tranquilidade; ausentando-se, está em situação para alcançar o outro por meio da carta, que é uma das partes do diálogo, mas uma parte mais elaborada, pois é escrita, como afirma Demétrio (223-224).
No entanto, Horácio, ao refletir sobre os desejos, o do caseiro e o dele mesmo, percebe que ambos são tolos (epist. 1.14.13-14): “Ambos tolos, injustamente acusamos o lugar, que não tem culpa. / Na culpa está o ânimo que nunca foge de si mesmo” (stultus uterque locum inmeritum causatur inique: / in culpa est animus, qui se non effugit umquam). Como não lembrar do nosso Sá de Miranda na célebre cantiga “Comigo me desavim” (vv.3-4): “Não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”! O homem, mudando de lugar, retirando-se, julga que mudará o espírito, deixará para trás a insatisfação, mas ela viaja sempre consigo. Já antes, na epist. 1.11.27, dirigindo-se a Bulácio, que percorreu grandes cidades gregas, cunhou o célebre verso para o topos: “aqueles que correm através do mar mudam o céu, não o ânimo” (caelum non animum mutant qui trans mare currunt), retomado por Sêneca em epístola a Lucílio (28.1: animum debes mutare, non caelum: “deves mudar o ânimo, não o céu”) e citada amplamente pelos medievais. O retiro, pois, que se deve fazer, é interior: “a razão e a prudência afastam as preocupações, não o lugar” (epist. 1.11.25-26: … ratio et prudentia curas, / non locus …); busque-se, antes, um ânimo justo, equilibrado, e não o bem viver com navios e quadrigas (vv.28-30). Essa inconstância, nunca contente com o local onde se está, ir de um lugar a outro, mutável como o vento – la donna è mobile / qual piuma al vento –, domina Horácio, quando confessa, em formulação quiástica, na breve epístola 1.8, endereçada a Celso Albinovano: “como o vento, em Roma amo Tíbur; em Tíbur, Roma” (v.12: Romae Tibur amem, ventosus Tibure Romam).
O caminho percorrido em Epístolas 1 é também a busca pela virtude e pela vida feliz. Como deixa claro desde o início do livro, de onde partimos, Horácio nesta estrada não se filia particularmente a essa ou àquela escola filosófica (epist. 1.1.13-15): “não me perguntes por acaso a que guia, a que lar me confio; / não estou obrigado a jurar sobre as palavras de um mestre; / para qualquer lugar que me arrebata a tempestade sou levado como hóspede” (ac ne forte roges, quo me duce, quo lare tuter: / nullius addictus iurare in verba magistri, / quo me cumque rapit tempestas, deferor hospes). Antes, opondo-se a determinada crítica filosófica à poesia, Horácio, valendo-se da leitura alegórica, prefere como mestre o poeta Homero aos filósofos Crisipo, estoico, e Crântore, acadêmico (epist. 1.2.1-4)! E se, como julga Propércio (Elegias 1.9.10), “no amor um verso de Mimnermo (séc. VI a.C.) vale mais do que Homero”, recomende-se também aquele (epist. 1.6.65-66). No entanto, recorre aqui e ali a preceitos filosóficos, o que evidentemente não causa admiração. “Não se admirar de nada talvez seja a única coisa, Numício, / e só ela que possa te fazer e preservar feliz” (Nil admirari prope res est una, Numici, / solaque quae possit facere et servare beatum): assim, por exemplo, inicia a epist. 1.6, retomando preceito pitagórico: m?dén thaumázein (cf. Plutarco, De recte audiendis poetis, 44b). A célebre doutrina peripatética do meio-termo virtuoso (cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1106b23), tão cara a Horácio (Odes 2.10.5; Sátiras 1.1.106-7), é apresentada na epístola 1.18, dirigida a Lólio: “A virtude é um meio entre [dois] vícios e está à igual distância de um e de outro” (v.9: virtus est medium vitiorum et utrimque reductum). Por fim, de modo caricato, ridículo, apresenta-se como “porco da grei de Epicuro”, na conclusão da carta dirigida a Álbio (provavelmente o elegíaco Tibulo): “a mim, gordo e lustroso, com a pele bem cuidada, verás, / quando quiseres rir, a mim, porco da grei de Epicuro (vv.15-16: me pinguem et nitidum bene curata cute vises, / cum ridere voles, Epicuri de grege porcum). Assim, recolhendo ensinamentos das diversas escolas, busca “viver como se deve” (vivere recte) e ensinar este modo de vida, aspecto didático das epístolas, sempre ressaltado pela crítica, o que as aproxima do épos didascálico hexamétrico, como o De rerum natura de Lucrécio ou as Geórgicas de Virgílio.
A fim de concluir voltemos ao início de Epístolas 1, àquilo que também caracteriza a carta: o endereçamento. Horácio se dirige a Mecenas, como faz no início de seus livros (Epodos 1, Sátiras 1.1 e Odes 1.1). O amigo, “parte de sua alma” (Odes 2.17.5: … meae … partem animae …), é o único a receber três cartas (epist. 1.1; 1.7; 1.19). Augusto, por sua vez, não ganha nenhuma no primeiro volume – é destinatário, porém, de epist. 2.1 –, mas comparece na epist. 1.13, a quem envia os volumina por meio de Vínio: “a Augusto entregarás os volumes selados, Vínio” (v.2: Augusto reddes signata volumina, Vinni). Assim, destinatário dos volumina (provavelmente Odes 1-3, cf. carmina no v. 17), Otávio é, pois, honrado de maneira particular. Se, como já notado, o nome do princeps aparece no segundo verso mencionado acima em posição de destaque – primeira palavra, contrastando com o nome do endereçado, em fim de verso –, não passou despercebido também que surge novamente referido na mesma posição, agora como “César” no v. 18 (Caesaris. oratus multa prece …), com forte pausa, sintática e métrica, logo depois do nome, dando assim maior destaque na sequência do encavalgamento (vv.17-18). Não se notou, porém, até onde sabemos, como Otaviano aparece nomeado de modo especular nesta epístola: primeira palavra do segundo verso e de novo encabeça o penúltimo verso, ou seja, novamente segundo verso do fim para o início. É assim, em espelhamento também, que dispõe no livro as epístolas a Mecenas e a Lólio. Se as epístolas 1 e 19 são dirigidas a Mecenas, as contíguas, depois da primeira e antes da penúltima, epístolas 2 e 18, são destinadas a Lólio, o que evidencia o aspecto editorial, a composição do livro – ao qual dirige a última (epist. 1.20). Assim, relaciona cartas distantes na obra de tal modo a formar círculos concêntricos, um dos princípios editoriais das Bucólicas de Virgílio, obra também escrita em hexâmetros datílicos e modelo para a composição dos livros dos poetas augustanos. Para Fraenkel, Epístolas 1 é “o mais harmonioso dos livros de Horácio”. É evidente a sequência de duas epístolas breves, 1.8 e 1.9: a primeira, dirigida a Celso Albinovano, companheiro e secretário de Tibério; a segunda, destinada diretamente a Tibério Cláudio Nero, como carta de recomendação. As epístolas, como vemos, foram cuidadosamente editadas por Horácio, diferentemente do que ocorreu, por exemplo, com as de Aristóteles, que, embora editadas por Ártemon, como relata Demétrio (223), não nos chegaram.
A carta – assim iniciamos este texto – é, sem dúvida, imagem da alma, mas também é um corpo. Ao concluir o conjunto, Horácio dirige-se ao livro, recolha epistolar que carrega o corpus do autor, responsável por perpetuar continuamente quem é aquele exíguo corpo (epist. 1.20.24): filho de um pai liberto (v.20: me libertino natum patre …), que agradou os poderosos de Roma (v.23: me primis urbis … placuisse); já de cabelos brancos e adequado ao sol (v.24: praecanum, solibus aptum); rápido a se irritar, embora seja apaziguável (v.25: irasci celerem, tamen ut placabilis essem); completou 44 anos no consulado de Lólio e Lépido, em 21 a.C. (vv.27-28: me quater undenos sciat impleuisse Decembris / collegam Lepidum quo duxit Lollius anno). Depois de retratar o poeta (epist. 1.19) – de que trataremos, pela matéria, em conjunto com as outras cartas do segundo livro –, Horácio assina com esse autorretrato, colocando corpo e alma nas epístolas, que se propagam nas nossas letras, como bem testemunham os versos decassílabos da carta de Antônio Ferreira a Pero de Andrade Caminha (Carta 1.8.106-107):
A ti leiam, grã Flaco, após ti andem
meus olhos, trás os que também te seguem.
Para saber mais:
Os principais comentários, mais recentes, são: o de Roland Mayer, Horace. Epistles, Book I, Cambridge, 1994; mais denso, o de Paolo Fedeli, Q. Orazio Flacco. Le Opere, II.4: Le Satire. Le Epistole. L’Arte Poetica, Roma, 1997; mais breve, mas a mais nova contribuição, o de Andrea Cucchiarelli, Orazio. L’esperienze delle cose (Epistole, Libro I), Venezia, 2015. As epístolas de Horácio recentemente foram objeto de algumas dissertações e teses entre nós: Camilla Ferreira Paulino da Silva, em A representação do lugar social do poeta no principado de Augusto a partir das Epístolas de Horácio, tese defendida em 2018 (UFES), em que, entre outros assuntos, estuda como o autor se representa e a partir da construção do éthos epistolar propõe-se como modelo para os novos membros da elite romana; Bruno Francisco dos Santos Maciel, em O Poeta Ensina a Ousar: ironia e didatismo nas Epístolas de Horácio, dissertação defendida em 2017 (UFMG), propõe a leitura do conjunto de epístolas, explorando ironia e didatismo como estratégias discursivas, apresentando ainda a tradução em verso das Epístolas 1 e 2 (incluindo a Arte Poética); Alexandre Prudente Piccolo (in memoriam), em O Homero de Horácio: intertexto épico no livro I das Epístolas, dissertação defendida em 2009 (UNICAMP), estuda as retomas de Ilíada e Odisseia à luz da intertextualidade e apresenta tradução de Epístolas 1; já um pouco mais antigo, mas estudo muito original e ainda inédito, é o trabalho de Marcos Martinho dos Santos que, em As epístolas de Horácio e a confecção de uma ars dictaminis: o opus, dissertação defendida em 1997 (USP), faz ampla e rica investigação do gênero. Entre os estudos merecem destaque o livro de Rolando Ferri, I dispiaceri di un epicureo. Uno studio sulla poetica oraziana delle Epistole (con un capitolo su Persio), Pisa, 1993; o mesmo autor faz boa introdução, com seleção bibliográfica comentada, no capítulo “The Epistles” in S.J. Harrison (ed.), The Cambridge Companion to Horace, Cambridge, 2007, pp. 121-131; o capítulo de J. Moles, “Poetry, Philosophy, Politics, and Play: Epistles 1” in T. Woodman, D. Feeney (edd.), Traditions and Contexts in the Poetry of Horace, Cambridge, 2002, pp. 141-157; por ser mais antigo, já está superado em parte, mas ainda uma referência importante é o estudo de E. Courbaud, Horace. Sa vie et sa pensée à l’époque des Épîtres, Paris, 1914; por fim, retomando muito o estudo de Courbaud, Eduard Fraenkel, em Horace, Oxford, 1957 (cap.VI: “Epistles, Book I”, pp.308-363), que considera Epístolas 1 “the most harmonious of Horace’s books” (p.309); entre os artigos, destaco dois dos mais citados, que destacam os aspectos filosóficos da obra: ambos de C.W. Macleod, “The Poetry of Ethics: Horace, Epistles 1”, in Journal of Roman Studies 69, 1979, pp.16-27; “The Poet, the Critic, and the Moralist: Horace, Epistles 1.19”, in Classical Quarterly 27, 1977, pp.359-376. Para a arte epistolográfica depois dos autores gregos e latinos, vale a pena o livro organizado, traduzido e anotado por Emerson Tin, A Arte de Escrever Cartas. Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio, Campinas, 2005.