O tácito desalento da vida e a morte da consciência

Clare Torry, a deslumbrante Clare Torry, foi chamada aos estúdios da Abbey Road para cantar em uma faixa do Pink Floyd, do Dark Side of the Moon. Perguntou sobre a letra e diz a lenda que Roger Waters respondeu que não tinha letra nenhuma.

por Thiago Blumenthal

Clare Torry, a deslumbrante Clare Torry, foi chamada aos estúdios da Abbey Road para cantar em uma faixa do Pink Floyd, do Dark Side of the Moon. Perguntou sobre a letra e diz a lenda que Roger Waters respondeu que não tinha letra nenhuma. É uma música sobre a morte, a senhorita poderia cantar um pouco sobre isso? A canção, muitos fãs do Pink Floyd sabem, é “The Great Gig in the Sky” e Torry passa bons minutos em desespero, muito distante da “quiet desperation” da faixa anterior “Time”, que Richard Wright tira de Walden, de Thoreau (“mass of men lead lives of quiet desperation”). Bem, não faltam lendas e fatos sobre a gravação de Dark Side of the Moon. Somos tocados pela sensação de carregada angústia diante da morte, do grande gigante no céu.

Morte decerto não é um assunto popular. Nem Freud conseguiu popularizá-la e o ser humano encontrou maneiras diversas de driblá-la, ora pelo humor, ora pelo cientificismo, ora pela esquiva precisa. Ou fingimos que não existe. Vai da fé de cada um. Entram religiosidade, um pouco de história, e um pouco do que nos há de mais humano: o afeto. Sem afeto não há morte possível. Ou, ao contrário, por causa do afeto, a morte torna-se moralmente impossível. Impasses.

Meu principal foco de interesse de pesquisa nos últimos anos tem sido a questão da consciência e do hard problem, temas sobre os quais já tratei aqui de maneira introdutória neste Estado da Arte (inclusive dediquei um artigo a Proust neste sentido). O que me instiga, além da superfície deste terreno, aproxima-se da questão da linguagem e, com esta, da ficção. Interessam-me muito, por exemplo, relações entre um distúrbio como a esquizofrenia e a ficção, ainda que isto apenas margeie o cerne de minhas preocupações – e bem de longe, acenando na outra margem do rio, por razões de recorte entre a linguística e o orgânico (não sou médico psiquiatra). Porque, além de pesquisa acadêmica, e trabalho, é uma preocupação. Não separo uma coisa da outra. E dedicar-me a uma área tão recôndita me coloca tantas vezes em contato com a morte, como aconteceu com Torry em “The Great Gig in the Sky”. Só não berro daquele jeito.

 

Inevitável. Estar consciente ou não é um dos grandes dilemas morais da medicina contemporânea. Distinguir, por exemplo, o que é um estado chamado “vegetativo” (antiquado, mas que uso por questão de melhor compreensão) de um CMD, espécie de dissociação motora-cognitiva, em que há uma resposta “consciente” do paciente, é uma das chaves para entendermos melhor o limiar entre a vida e a morte. Exemplo básico de um paciente com CMD: quando ouve “The Great Gig in the Sky”, determinada ou determinas regiões do córtex motor são acionadas, ou, literalmente, piscam diante de um exame de ressonância magnética funcional (os poderosos fMRI). Estaria a resposta ao nosso estado “consciente” nesses estímulos? A medicina não pode responder ainda, e creio que a filosofia e a antropologia ainda têm um tortuoso caminho à frente. Contudo, em um paciente em estado vegetativo nada ocorre, ainda que haja um movimento assustador como o dos olhos, para lá e para cá. Isso para não falar em sorrisos sombrios.

Pacientes que estão em CMD não são capazes de responder perguntas complexas – os borrões na ressonância tornam-se incompreensíveis. Fosse eu um médico perguntaria “você gostaria de morrer?”? Jamais. Alguns responderiam, via aparelhinho mágico, que sim. O que fazer diante dessa resposta/vontade? Questões importantes como volição, influências de distúrbios variados em um sistema nervoso debilitado, a responsabilidade que a pessoa tem de tomar decisões por si. Claro que a família faria parte do debate, como deveria ocorrer em qualquer país e legislação decentes no mundo, tema infelizmente pouco tratado no Brasil, como eutanásia e suicídio – assistido ou não – lembrando que estamos em setembro, do combate ao suicídio, o “setembro amarelo”. Não conheço um candidato que trate do assunto, mas pode ser ignorância política minha.

O que significa estar consciente afinal? O que me difere de um paciente em CMD ou de um paciente sem nenhum espírito a vagar pelas cavernas da terra? Estudos contemporâneos nos mostram que o nosso cérebro toma decisões sem nossa interferência. Por que devemos confiar em nosso cérebro? Somos nós ou nosso cérebro? Livre-arbítrio, conceito que ficou lá atrás em interpretações no Antigo Testamento.

Questões que permeiam minhas pesquisas, direta ou indiretamente, e a morte sempre está ali a tocar, porque a minha hipótese, resguardada por muitos neurolinguistas e médicos, é a de que a ficção (e sua criação – a necessidade de criarmos algo, em especial, uma mentira) tem função imperiosa no que Freud outrora chamou de pulsão de morte.

Há algumas, nem todas de muito rigor, referências a essa relação, dentre elas podemos citar Brian Boyd, Michael Gazzaniga, Christof Koch e Giulio Tononi. Há gente da literatura envolvida nisso nos últimos anos, como o ensaísta e tradutólogo Tim Parks, de quem particularmente gosto – embora seu livro mais recente sobre o assunto, deste ano, Out of My Head – On Trail of Consciousness, não seja lá um primor.

Sabemos, nos conta Oliver Sacks por exemplo, quase nada sobre o que determina a emoção e o encanto estético em relação à cor, em um ensaio à frente de seu tempo. Para Sacks, trata-se de um assunto de profunda experiência individual, e esta se encontra toda marcada por estímulos dos mais variados. Sacks fala de daltonismo e de cor, em específico, mas, no macrocosmo (expressão que detesto, mas sei que alguns leitores gostam), estamos a tratar da experiência estética como um todo, muito além da cor; as primeiras marcas de “ficção” nas diversas cavernas espalhadas mundo afora vão muito além de uma questão de cor. Temos ali movimento, sombras, um imaginário complexo de dentro e fora que dão os limites de toda e qualquer manifestação de ordem ficcional. Até hoje.

O que nos emociona em nossos cotidianos, ora comezinhos ora fantásticos, está além do consciente, argumentam alguns estudiosos do assunto. Confesso que não sei. Ninguém sabe, acho eu. E desconfio que estamos longe, muito longe, de alguma resposta. O que sei, ou sinto, é que a morte é o motorzinho da vida, a ponto de o ser humano criar mentiras para dobrá-la ao avesso. Religiões, deuses, totens, só para ficar em Freud.

Mas mais do que Freud, a literatura formal, que não propõe um pacto formal, um pacto ao qual devemos fiar. Fiamos e não fiamos. É verdade que nas palavras do próprio Freud os escritores são uns irresponsáveis. Entendo a irresponsabilidade como uma resposta tanto à vida como à morte e, em um sentido estendido, uma resposta aos limites infindáveis da nossa consciência.

A irresponsabilidade de alguém que se permite não ir, que vai ficar calado. E que no artigo da morte, peguem pela mão e depositem numa canoinha de nada, numa água que não para, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio. O grande show no céu está também na terceira margem do rio, afinal. E dentro de cada um de nós, em um lugar bem protegido em nossa caixa craniana.

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