Em Dicionário das ideias feitas, de Gustave Flaubert (1821-1880), o crítico é definido satiricamente como alguém “sempre eminente. Considera-se que conhece tudo, que sabe tudo, que leu tudo, que viu tudo. Quando não nos agrada, devemos chamá-lo de Aristarco, ou de eunuco”. Vale lembrar que Aristarco de Samotrácia (cerca de 216-145 a.C.) criticou alguns versos de Homero, propondo inclusive alternativas para eles. Já o eunuco era (e é) um estéril, como o seriam certos textos críticos.
A definição do mestre francês permanece válida em parte: o crítico de hoje, acredita-se, não é uma figura “eminente”, mesmo assim segue sendo atacado quando dá uma opinião que desagrade à turba (um exemplo é o crítico francês que colocou em xeque a atuação de Fernanda Torres no filme Ainda estou aqui). Presume-se também que ele continue a ser aquele que “sabe tudo” e “viu tudo”. Contudo, “ver” e “saber” já não são mais medidos pelo conhecimento sobre a produção artística na sua totalidade. Esses atributos parecem estar cada vez mais relacionados com a regularidade de suas publicações nas redes sociais e com a quantidade de capas de livros, às vezes acompanhada de uma ou duas frases sobre a obra, que ele costuma postar.
Já a sua capacidade de influenciar estaria atrelada ao número de seguidores que ele tem: quanto mais seguidores, mais abalizado seria o crítico, aos olhos daqueles que estão dispostos a acatar seus “oráculos”. A palavra “crítico”, aliás, poderia ser substituída, neste caso, por “anunciante de livros”, ou, ainda, por “crítico-anunciante”, e a sua atuação pública configuraria uma espécie de pós-crítica, um tipo de discurso que, a meu ver, impõe um novo modelo de análise e comunicação.
Algo que realmente chama a atenção é a quantidade de livros que essa nova proliferação de “críticos-anunciantes” consegue ler por semana ou por mês. Cabe-nos indagar como são capazes de digerir essa leitura vertiginosa! Quando não há tempo para reflexão, não há como transformar a informação em experiência, como diria Walter Benjamin. A ideia modernista de canibalização, de transformar criativamente o que veio de fora (no mais amplo sentido), sequer é cogitada por esses ávidos leitores que não estão preocupados com posicionamentos críticos consequentes no campo da arte e da literatura em particular.
Os seguidores (antes chamados de leitores) dos anunciantes de livros parecem não questionar nem o número de livros que o anunciante diz ter lido nem mesmo se a qualidade daquilo que é indicado por ele é realmente efetiva, tanto do ponto de vista estético como do histórico.
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Espaço reduzido
Diante desse quadro, podemos passar a temer que críticos como Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e Beatriz Sarlo, recém-falecida, estejam se tornando cada vez mais raros. Há algumas razões para a “escassez” de críticos e para o desaparecimento da crítica. A mais óbvia é o espaço reduzido para textos dessa natureza nos veículos de comunicação de massa, como jornais e revistas. Talvez não haja mais espaço para ensaios críticos, breves ou extensos, porque se acredita que os leitores não se interessem mais por eles.
Não bastasse isso, hoje, nem sempre os críticos “à moda antiga” têm a liberdade de escolher sobre o que querem falar, ou seja, sobre o que realmente valeria a pena falar. Algumas publicações fecham com muita antecedência a lista de livros que deverão ser resenhados ao longo do ano. As obras são previamente escolhidas por alguma razão que, parece, escapa aos valores da crítica literária propriamente dita.
Caberia ao crítico sobrevivente refletir e, quem sabe, escrever a respeito disso: como saber se tais livros merecem de fato ser destacados? E por que esses e não outros?
Outra questão que vem à tona é a restrição de publicar em jornais e revistas de grande circulação artigos sobre livros lançados em anos anteriores. Ora, o crítico poderá ter lido uma grande obra, antiga ou contemporânea, publicada alguns anos antes, a qual mereceria, ainda assim, uma nova releitura que ressaltasse a sua importância e atualidade. A crítica séria poderia resgatar e apresentar essas obras, impedindo que elas passassem despercebidas, independentemente do gancho jornalístico que lhes garantiria de antemão espaço nas publicações.
Distanciamento
Ao longo dos anos, o que não mudou para os críticos (não para os anunciantes de livros) foi a dificuldade de escrever sobre literatura contemporânea, pois isso requer distanciamento, graças ao qual o horizonte em que se movem ganha clareza. Como diz Clarice Lispector em Água Viva: “não sei sobre o que estou escrevendo”, pois o mundo é “um emaranhado de fios telegráficos em eriçamento”. E a luminosidade se torna “no entanto obscura: esta sou eu diante do mundo”. Lispector fala do ponto de vista do escritor, mas a ponderação pode muito bem ser aplicada ao crítico de um modo geral.
De fato, analisar a produção contemporânea não é tarefa fácil. Parafraseando David Lapoujade, diria que o crítico tem diante de si uma espécie de anamorfose cartográfica, mas nem sempre conseguem ver o que ela representa. Em um outro contexto, mas pensando também na intepretação de obras de arte, Lapoujade afirma que algumas pessoas “são como espectadores que estivessem diante de uma anamorfose sem ver o que ela representa, porque não procuraram o ângulo certo de visão que permite decifrá-la. No cosmos das coisas, há aberturas, inúmeras aberturas desenhadas pelos virtuais. Raros são aqueles que as percebem e lhes dão importância; mais raros ainda aqueles que exploram essa abertura em uma experimentação criadora”.
Talvez o crítico pudesse ouvir Oswald de Andrade que, no Manifesto Pau-Brasil, afirma: não há “nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo”, a única talvez seja a de “ver com olhos livres”. Aqui surge outro problema: os “olhos livres” não podem estar conectados a interesses outros que não seja a literatura.
Retomando Clarice Lispector em Água Viva, destaco que escrever hoje faz parte do “instante do tempo”, e o instante está sempre por nascer, ele é “semente viva” aguardando desabrochar: “você que me lê que me ajude a nascer”. Mas, segue a escritora, “ao amanhecer eu penso que nós somos os contemporâneos do dia seguinte”. Lispector fala para leitor de um modo geral, mas, vale lembrar, o crítico faz parte dessa categoria.
O lugar da crítica contemporânea é no meio do emaranhado de fios citados pela escritora. Os anunciantes de livros, se têm um discurso direto e confiante, é porque desconhecem essa situação.
Ainda que seja visto como figura irrelevante, o crítico estabelece um cânone, já que ninguém dá valor a determinado autor até que um discurso o tenha consagrado. O cânone, contudo, não pode ser confundido com o sucesso imediato nem se basear na lista de best-sellers. Ao mesmo tempo, convém apontar que nenhum escritor precisa de críticos, mas de leitores que leiam simplesmente pelo prazer da leitura. Não é assim, porém, que as reputações literárias são feitas atualmente.
Dirce Waltrick do Amarante é professora do Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, tradutora e escritora, autora de Interferências: Censura, apagamento e outros temas contemporâneos, no prelo pela Editora Iluminuras.