Os livros mudam conforme mudamos: Antonio Candido e as releituras de “Vidas Secas” 

Com as diferentes leituras que fez da obra de Graciliano Ramos, o crítico brasileiro mostra como a volta aos textos, em momentos diversos de nossa vida, revela derivas de sentido inexploradas.

Em nome de uma maior sutileza de compreensão, convém, como sugeriu Roland Barthes, estabelecer uma distinção, ainda que parcial, entre leitor e consumidor. Não nos entendam mal. O leitor é, antes de tudo, um consumidor (Euclides pode nos perdoar!). No entanto, seu papel não precisa se esgotar no ato de participar do mercado editorial ao monetizar o trabalho de um escritor. O livro é resultado de um trabalho e não deve ser visto, sob hipótese alguma, como resultado meramente espiritual — ou resultado de qualquer um desses espiritismos teóricos infelizmente tão comuns no debate literário. Mas é preciso, dizíamos, separar as duas personas do ato de leitura. 

O consumidor está interessado na assimilação rápida do livro, quer ter uma opinião pronta e fechada, para que a obra enfim faça parte de suas posses intelectuais. O consumidor, enfim, quer o prazer sem riscos ou esforço. Porém, ao lado — não necessariamente ao lado oposto —, há o leitor. O leitor deseja não somente o simples prazer, mas o gozo, a fruição; e faz parte da fruição o desconforto, o contato com o descontínuo e com o imprevisto. Fruir é se submeter a um jogo cujas regras não são conhecidas e que se fazem enquanto se joga. E, por isso, o leitor é aquele que não se lança à ilusão da completa posse intelectual de um livro: a elaboração definitiva de um juízo unívoco sobre a obra. 

Faz parte da persona do leitor o desejo pela releitura, essa atitude tão pouco lucrativa para o empreendimento cultural. A releitura vai na contramão da lógica consumidora porque admite que o livro até pode ser comprado, mas a obra jamais pode ser apreendida. E, também, porque valoriza a expansão intensiva no lugar da extensiva, haja vista que deixamos de consumir uma nova obra. E aqui não se trata, para nos mantermos na lógica do consumo, de reciclar ou de reutilizar. Reciclamos o antigo para um novo uso. A releitura, na lógica do consumo, é pegar de volta o que já jogamos no lixo. 

A releitura, cabe enfatizar, não é uma estratégia de redenção contra a lógica do consumo, pois não lhe é oposta. A releitura é uma saída, mais uma promessa de participação desse jogo do texto que é cada vez mais estranho à velocidade de nosso tempo. O leitor cultiva uma relação de lentidão diante da obra literária que o desafia; e nessa lentidão — contrária ao espírito de nosso tempo — encontra-se um modo privilegiado de nos relacionarmos com nossas próprias demandas existenciais. É nesse sentido que Nietzsche, antes de tudo um filólogo — amante das palavras — fazia uma advertência ao leitor apressado, recomendando que rumine a leitura, como uma “quase-vaca”, mastigando pela segunda vez. 

Um grande exemplo de releitura, que pode servir de paradigma ao que tentamos propor aqui, são as que fez Antonio Candido, ao longo de mais de 40 anos, do romance Vidas Secas. Crítico sensível e leitor voraz, Candido sempre deixou claro seu apreço pela revisão de alguns livros particulares. Afirmou uma vez ter lido mais de 70 vezes o romance S. Bernardo, também de Graciliano Ramos. Contava também que tinha por hábito fazer uma nova leitura de O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati, a cada novo ano.

Essa atitude de frequente releitura talvez decorra de sua postura emblemática como crítico: a despeito do método, a despeito das teorias que lhe embasavam a análise, seus textos sempre possuem detalhes e impressões que parecem “sobrar”, como que traindo o esforço de compreensão integral das obras que costumava empreender. É como se Candido quisesse mais ser um companheiro de passeio de seus leitores em uma aventura pelas obras do que uma espécie de guia que conduz por caminhos já conhecidos.

Antonio Candido. Foto: Arquivo Pessoal/Antonio Candido/Divulgação.

O caso de suas (re)leituras de Vidas Secas é, a nosso ver, bastante paradigmático. Candido, como é sabido, é um dos maiores nomes entre os que compõem a vasta fortuna crítica de Graciliano Ramos. Seu primeiro intento de interpretação da obra do escritor alagoano foi publicado em 1945, em jornal. Esse texto foi posteriormente revisado, ampliado e publicado em livro sob o título de “Ficção e confissão”, no ano de 1955. Nesse primeiro momento, porém, a abordagem de Candido sobre Vidas Secas causa certa estranheza ao leitor contemporâneo. Afinal, hoje, Vidas Secas é considerada por muitos a grande obra de Graciliano Ramos, e nessa apreciação o romance aparenta ser, para o crítico, resultado do mesmo naturalismo algo imaturo de Caetés, narrativa primogênita do Velho Graça. 

A saga dos retirantes seria uma espécie de escrita coadjuvante e preparatória para as verdadeiras grandes obras do autor: Infância e Memórias do cárcere. Para Candido, assim, nessa primeira leitura crítica, os elementos constitutivos de Vidas Secas, a exemplo do uso da terceira pessoa e de certo telurismo, “representam a incorporação de Graciliano Ramos às tendências mais típicas do romance nordestino, no qual se enquadrava apenas em parte até então”. A referência à tipicidade já indica que, na visão do crítico, nada havia de excepcional na representação ficcional daquela família e daquela cachorrinha. 

A forma como Antonio Candido enxerga as personagens nos parece, hoje, um tanto limitada. A capacidade de Graciliano Ramos de dar vida a figuras desprovidas de espírito é que é considerada notável pelo crítico. Trata-se de seres sem capacidade de reflexão, uma vez que o “matutar de Fabiano ou Sinha Vitória não corrói o eu nem representa atividade excepcional”. O romance, enfim, teria a mesma temática que a d’Os sertões: a exposição do vínculo brutal entre ser humano e terra. E é importante notar que não haveria problema algum a comparação com a obra de Euclides da Cunha, não fosse a visão positivista que isso implica, no contexto em questão. As inconclusibilidades do texto euclidiano, ressaltada por leitores como Lourival Holanda, não entram em cena aqui. Vidas Secas passa por um simples, embora não simplório, romance que fixa caracteres sofredores que são moídos pelo sol escaldante e pela terra seca; seres espectrais que vagam pela paisagem hostil, a mesma que lhes impede de desenvolver o espírito e o intelecto.

A segunda tentativa de apreensão crítica da mesma obra, Antonio Candido a realiza no ensaio intitulado “Os bichos do subterrâneo”, publicado na década de 19601. Aqui, porém, Vidas Secas não é objeto de um tratamento muito melhor. Afinal, a releitura que levou à escrita desse novo estudo foi a de outro romance, Angústia, que se tornará agora paradigma da obra graciliana (no ensaio “Ficção e confissão”, o crítico o considera um livro mal-acabado). Candido pretende, nessa leitura, defender que as narrativas de Graciliano têm em seu âmago a investigação dos lugares mais recônditos do ser humano, à maneira de Dostoiévski. 

Graciliano Ramos.

Esse insight, contudo, não se aplica muito bem a Vidas Secas, pois ele, segundo o crítico, é o “único inteiramente voltado para o drama social e geográfico da sua região, que nele encontra a expressão mais alta”. Ou seja, nos anteriores, Caetés, S. Bernardo e Angústia, havia preocupações que ultrapassavam a problemática regional… A despeito de sua qualidade, Vidas Secas não alça voos para além das fronteiras da região que sua prosa pinta. Apesar de agora admitir que o livro “conserva, sob a objetividade da terceira pessoa, o filete da escavação interior”, e de finalmente mencionar a cachorra Baleia como personagem relevante, a hoje considerada grande obra de Graciliano recebe apenas três parágrafos muito pouco elucidativos. O silêncio, porém, também comunica. E, aqui, parece indicar que esse “filete de escavação interior” continua sendo a tentativa de entender essas almas primitivas, essas almas que quase não são almas, apenas fantasmas, sombras. 

Mais de 20 anos depois, em fins da década de 1980, Antonio Candido, em comemoração aos 50 de Vidas Secas, resolve lhe oferecer novo empreendimento hermenêutico. O texto é aparentemente despretensioso, tanto que o ensaio se anuncia menos como reflexão original do que como retomada de duas críticas realizadas a Vidas Secas no ano de seu lançamento. Não podemos acreditar nisso, pois toda retomada é interessada. E não parece detalhe que, sem fazer menção a isto, faça referência a interpretações que apresentam visão diametralmente oposta à defendida nos dois primeiros ensaios. De maneira muito sutil, Antonio Candido opera uma radical releitura do livro dos retirantes. E, ao mencionar críticas de outros ensaístas que certamente leu no período, mas que só agora parecem fazer sentido, mostra como a volta aos textos (tanto às críticas quanto ao romance), em momentos diversos de nossa vida, revela derivas de sentido inexploradas. Não é à toa que o crítico ressalte que a obra de Graciliano Ramos é “uma das poucas de nossa literatura que parece melhor com a passagem do tempo, porque mais válida à medida que a lemos de novo”.

Antonio Candido cita concretamente dois críticos: Lucia Miguel Pereira e Almir de Andrade. No entanto, podemos aqui nos limitar unicamente à menção feita por Candido à excepcional contribuição crítica da ensaísta e escritora mineira, pois, além de considerarmos essa a melhor contribuição analítica, sua argumentação é suficiente para compreender a mudança paradigmática da leitura que faz Antonio Candido de Vidas Secas

A romancista, crítica e historiadora da literatura Lucia Miguel Pereira, que, embora ande, injustamente, esquecida atualmente, era um dos grandes nomes do ambiente intelectual brasileiro, não nega que haja, em Vidas Secas, uma preocupação com o sertanejo e com o que podemos chamar de “seu meio”. Porém, para ela, explorar esse ambiente regional não significa aderir a uma representação com traços de exotismo ou mero registro sociológico, que delimita e demarca claramente o lugar do outro. Para ela, em verdade, Vidas Secas é romance em que o regional é ponte e não muro, afinal não há nele “nenhuma preocupação fotográfica, mas a fixação de sentimentos de criaturas humildes, sentimentos também humildes e trágicos justamente por não se poderem alçar mais alto e nem ao menos expressar”. Fixação de sentimentos, não de caracteres ou de tipos. Fixação, ainda, de um sentimento que é ainda mais intenso porque não se pode articular em palavras — e não é esse drama muito próximo a todos? Não temos frequentemente a sensação de que as palavras se descolaram do mundo e que sentimos muito mais do que entendemos? Ao enfatizar que há nesses seres uma riqueza interior, secreta e escondida, que o romancista procura, Lucia Miguel Pereira vai na contramão dos discursos anteriores de Antonio Candido e da maioria dos críticos do período (a exemplo de conhecidas figuras como Nelson Werneck Sodré), os quais colocavam os membros da família de Fabiano como seres incapazes de complexidades internas. Dito de outra maneira, e por analogia: seres que habitavam apenas o nível ôntico e não o ontológico, para retomar a famosa distinção heideggeriana.

Lucia Miguel Pereira.

Candido, mais adiante, corrobora esse pensamento, ao dizer que “[…] desvendar o universo mental de criaturas cujo silêncio ou inabilidade verbal leva o narrador a inventar para elas um expressivo universo interior por meio do discurso indireto” e que, por isso, realiza “a superação do regionalismo e da literatura empenhada, devido a uma capacidade de generalização que engloba e transcende estas dimensões e, explorando-as mais fundo do que os seus contemporâneos, consegue exprimir ‘a vida em potencial’”.

Essa busca, por “mostrar paradoxalmente a riqueza interior das vidas culturalmente pobres”, permite ao crítico repensar a tão famosa personagem Baleia. Para ele, analisar a vida interior e espiritual de uma cachorra consiste em instituir “a humanidade de seres que a sociedade põe à margem, empurrando-os para as fronteiras da animalidade”. Antes, a reflexão cabia apenas ao narrador, figura externa ao ambiente rural e precário do sertão nordestino, que representaria, nessa leitura, o homem da cidade que olha com pesar — mas, enfatizamos, olha de cima para baixo — aqueles retirantes. Agora, a capacidade de reflexão, a despeito da falta de material cultural/simbólico “civilizado”, reside naqueles seres, e descobrir essa outra forma de apreensão do mundo, não inferior mas diferente, é também o cerne e a riqueza do romance. 

O tempo, o amor pelas letras e a coragem de sempre admitir que as leituras das obras não são exaustivas fizeram com que Antonio Candido percebesse naquela obra tão convencionalmente entendida como regional, reduzindo-a a registro do drama sociopolítico da região, uma problemática a um só tempo filosófica e ética, muito ao gosto da modernidade e, sobretudo, da contemporaneidade.


Eduardo Cesar Maia é professor do curso de Comunicação Social (CAA) da Universidade Federal de Pernambuco.

José Roberto de Luna Filho é mestre em Teoria da Literatura e doutorando em Estudos Literários pelo PPGL-UFPE.

  1.  O ensaio sai primeiro em 1961, num livro que reunia trechos escolhidos da obra de Graciliano, publicado pela editora Agir. Posteriormente, em 1964, o ensaio integrará a obra Tese e antítese.
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