por José Francisco Botelho
Conforme nos garante a sabedoria vernácula, não há nada mais sem graça do que explicar uma piada. E tanto menor será a graça quanto mais minuciosa for a explicação; sob esse ponto de vista, o jazigo do humor é a nota de rodapé. Eis aí um dilema que tem assombrado tradutores literários em todas as épocas e lugares: muitas vezes, a fidelidade semântica implica em jogar o gracejo no sepulcro e trocar o riso pela informação filológica. Existe, é claro, um tipo de humor facilmente transponível entre duas línguas: é aquele baseado nos jogos de lógica, de eficácia supostamente universal. Jorge Luis Borges, apreciador de gracejos racionais, gostava de contar uma piada mais ou menos assim: “Dois homens vinham andando pela rua. Duas mulheres, Maria e Joana, os observavam na esquina. Joana perguntou: ? Qual deles é o mais bonito? Maria respondeu: ? O do meio.” Nesse caso, o efeito cômico depende de questões numéricas ou, digamos, espaciais: um tipo de humor que parece emanar dos arquétipos platônicos. Totalmente distinto é o gracejo baseado na promiscuidade e na malemolência das palavras: sua eficácia se baseia na semelhança arbitrária entre certos sons, na flutuação dos sentidos que se roçam, no contraste e na surpresa que alguns vocábulos engendram simplesmente por estarem juntos. Eu me animo a citar dois exemplos cabais desse tipo de pilhéria: o humor fisiológico brasileiro e os trocadilhos rebuscados que abundam nas peças de William Shakespeare.
O público elisabetano apreciava o chiste exagerado, cheio de acrobacias espirituosas e referências muitas vezes enigmáticas a assuntos da época – tudo isso amarrado em feixes de duplo, triplo ou quádruplo sentido. Não por acaso, os trocadilhos são muitas vezes a parte mais hermética nas obras do Bardo. Se a piada do “homem do meio”, que reproduzi acima, é facilmente transferível entre idiomas, até a mais modesta tirada do velho Falstaff pode se transformar no calvário de um tradutor. Mas há quem acabe gostando de pisar em espinhos e pedras escaldantes; com a devida dose de obsessão e imprudência, alguns calvários podem até se tornar divertidos ? como eu próprio voltei a constatar, alguns meses atrás, ao traduzir Romeu e Julieta para o selo Penguin/Companhia.
A história dos desditosos amantes de Verona está elencada entre as grandes tragédias shakespearianas; mas, como escreveu o crítico Adrian Pole, “ninguém, antes de Shakespeare, havia colocado tanta comédia em uma tragédia”. Os dois primeiros atos da peça têm um espírito de hilaridade desbocada: rapagões briguentos, servos desaforados e penetras espertalhões fazem as ruas de Verona fervilharem com escracho vertiginoso. E não se trata de uma vertigem aleatória. Romeu e Julieta é, entre outras coisas, um poema frenético (e, ao mesmo tempo, contemplativo) sobre a brevidade da juventude; a comédia das cenas iniciais serve para intensificar, pelo contraste, o choque e a súbita tristeza dos atos seguintes – quando os mais incansáveis piadistas acabam vítimas da morte extemporânea. Sacrificar o riso, na primeira metade da obra, seria arrefecer o vindouro efeito trágico.
Alguns anos atrás, ao verter a obra de Geoffrey Chaucer – outro magnífico esteta da pilhéria –, eu havia percebido que a melhor forma de traduzir uma piada, sem perder a graça, é inventá-la de novo, ab origine. Para isso, me pareceu necessário depurar cada gracejo, descobrir sua essência e, em seguida, usar aquelas mesmas sementes para montar tudo de novo, criando uma tirada digna de riso – em português, no Brasil, hoje. Aí vai um exemplo. No Ato II de Romeu e Julieta, o implacável Mercúcio zomba do apaixonado Romeu com estas palavras:
Now will he sit under a medlar tree
And wish his mistress were that kind of fruit
As maids call medlars when they laugh alone.—
O Romeo, that she were! Oh, that she were
An open-arse, and thou a poppering pear.
A graça dessa passagem está, inicialmente, no duplo significado de open-arse – apelido da nêspera nas regiões rurais da Inglaterra. A fruta, dependendo do ponto de vista, pode apresentar vaga semelhança com um derrière. Já a poppering pear é um tipo de pera, nomeada a partir da cidade de Poperinge, na Flandres Ocidental; seu formato – o imaginativo leitor já terá adivinhado – tem algo de fálico. Mas como colocar tudo isso em verso, sem recorrer exclusivamente às sisudas divindades do rodapé? Eis minha solução: se Shakespeare faz uma piada envolvendo frutas e sexo, eu crio uma boutade com palavras diferentes, de forma imediatamente compreensível ao leitor moderno – mas mantendo a oscilação de significados entre o pornográfico e o botânico. Ficou assim:
Romeu, senta-te ao pé da nespereira,
Cujo fruto parece um par de nádegas
– Como as moças gracejam quando a sós.
Que ela seja uma nêspera polpuda
E tu, uma glande inchada! Boa noite!
A nêspera ganhou o epíteto de “polpuda” – alteração autoexplicativa, graças ao meu verso “Cujo fruto parece um par de nádegas”. Embora inexista no original, a linha arredonda a piada na tradução. E, finalmente, para amarrar a punchline, a pera de Poperinge se transformou em uma glande. Em português, a palavra indica tanto o conhecido artefato da anatomia masculina quanto o igualmente célebre fruto do carvalho; o adjetivo “inchada” serve para zerar as dúvidas. Os termos da piada mudaram; mas os mesmos polos continuam governando o pêndulo do escárnio.
Essas jornadas do humor entre diferentes línguas, culturas e épocas podem ser a nêmesis de um tradutor – ou a parte predileta de seu ofício. Em todo caso, é assunto para muita conversa. Voltaremos, em breve, a essa gólgota cheia de prazeres.