Problemas inculturais brasileiros: Do ideal e da glória e Evangelho na taba
Osman Lins (Org. Fábio Andrade / Editora UFPE)
Após uma espera de 40 anos, a Editora UFPE apresenta a segunda edição, num volume único, de dois dos livros que compõem a extensa obra do escritor Osman Lins. Do ideal e da glória, de 1977, e o póstumo Evangelho na taba, de 1979, reúnem textos em que a linguagem singular do autor de Avalovaras e entrega ao tratamento direto, frequentemente polêmico, de problemáticas do seu tempo: as diferentes modalidades de censura do regime militar, e as diferentes faces do empobrecimento cultural por ela ocasionado; as representações sociais do índio, do trabalhador rural ou da rebeldia juvenil encarnada pela figura de James Dean; as condições de vida do servente de obra sob o jugo de grandes empresas da construção civil; o ensino de literatura nas escolas, nos livros didáticos e nas universidades; o legado de escritores como Lima Barreto, Graciliano Ramos e Hermilo Borba Filho; fatos do mundo editorial como a Feira do Livro de Frankfurt, a Coleção Nobel ou a publicação de livros brasileiros no exterior sem o conhecimento dos seus autores; entre outros temas. A originalidade das perspectivas, o calor da denúncia, os achados de estilo: esses três ingredientes aqui se combinam na obra de um Osman Lins simultaneamente ensaísta, repórter e criador literário, e o leitor, através dessas páginas, não apenas toma conhecimento de como as aflições e os amores despertados pelo mundo em volta ansiavam por se tornar palavra em Lins para além da ficção, como nelas reencontra a própria matéria-prima que jamais deixou de atuar nas entrelinhas dos seus romances, contos e dramaturgia.
Os futuros inquisidores
Tenho lido, com alguma preocupação, vários ensaios e entrevistas de escritores versando um tema comum: todos, com uma certeza que nada parece abalar e uma autoridade que não consigo saber de onde lhes veio, determinam como deve ser – formal e tematicamente – a obra literária. Como e o que, nós, escritores brasileiros, devemos escrever.
Essas normas, por vezes, são estabelecidas de maneira trêfega e um tanto irresponsável – simples afirmações categóricas, não muito distantes dos slogans políticos e comerciais. Outras vezes, assumem as espécies de um raciocínio seguro, apoiado em leituras bastante variadas, com o que adquire o que se chama “peso” ou “autoridade”.
Há, naturalmente, matizes nesses modos de legislar sobre as nossas angústias, incertezas, inquietações, perquirições e, se possível, descobertas. Mas assim podemos sintetizá-los: a) a nossa literatura tem de ser popular; b) a literatura de caráter experimental é, diante da realidade brasileira, uma escapatória e, em certo grau, uma traição ao nosso povo.
Esses preceitos são apoiados por uma produção ensaística pouco compreensiva, de caráter acusatório, cujo objetivo é descobrir, clara ou veladamente, sinais de submissão – ou de um pacto secreto – entre o escritor e o poder. E, embora não seja o fator mais à vista no fenômeno que discuto, desempenha aquela produção, dentro dele, um papel da maior importância. Funciona como uma central teórica destinada à desmoralização da literatura já existente. Sua mensagem, em síntese, é mais ou menos esta: “Toda obra literária de certa complexidade é, em princípio, suspeita de compactuar com o poder e, portanto, desprezível. O escritor, para ser absolvido, tem de escutar os virtuosos, os justos. Os virtuosos, os justos, somos nós” [1].
A atitude, devemos sublinhar, tem um condimento moralizante e não se distancia muito da que quer transformar o escritor num apologista dos bons costumes. Desse trabalho de erosão não escapa praticamente ninguém, nem mesmo Lima Barreto: “O solidarismo literário em Lima Barreto acaba se orientando por uma trajetória que é o seu próprio estrangulamento”. Mais: “Para num modelo abstrato da consciência altruística burguesa, superado e conformista”. Julgamentos tão severos, paradoxalmente, partem de pessoas integradas na sociedade e que, nem de longe, sofreram na carne as consequências do seu próprio inconformismo (este sim, teórico). Os que acabo de citar, por exemplo, pertencem a uma tese de mestrado, apresentada na Universidade de São Paulo (Arnoni Prado, 1975, p. 90) [2]. Aos que, conhecendo as desventuras de Lima Barreto, surpreenda o veredito, esclareço que a contradição escritor massacrado/obra conformista já foi teorizada. Escreve Carlos Nelson Coutinho (por coincidência, em estudo sobre o mesmo Lima Barreto, que ele, ao contrário de Arnoni Prado, absolve): “O ‘intimismo à sombra do poder’ combinou-se frequentemente com um inconformismo declarado, com um mal-estar subjetivamente sincero diante da situação social dominante” (Coutinho et al., 1975, p. 5). Com isso, com essa afirmação que exala o inconfundível bolor dos divãs psicanalíticos, está o escritor para sempre à mercê dos seus inquisidores culturais: ele pode morrer no hospício e talvez até ser fuzilado. No fundo, como revelará a análise atenta e judiciosa dos seus livros, era um conformista, um servidor disfarçado – ingênuo ou não – do poder. Enfim: alguém muito abaixo do seu julgador e que, azar do réu, não teve a seu lado as beatrizes ideológicas que o levariam pela mão ao Paraíso da literatura certa, correta, legítima.
Ora, que, num regime como o nosso – e mesmo em outros, de caráter menos totalitário –, estabeleçam os governantes quais os temas a serem abordados pelo escritor e até, em certa medida, o modo de serem tratados esses temas, compreende-se. Não digo que seja admissível: digo que se entende. Essa imposição, afinal de contas, é um dos modos através dos quais o poder tenta amortecer os focos de renovação ou resistência. Mas que dos seus próprios pares, dos que como ele trabalham com a palavra, venha o escritor receber também pressões é muito mais sério. Significa que: a) certos autores, cegos pela ambição de se afirmarem, são capazes de ser tão intolerantes quanto qualquer autoridade (faltando-lhes, apenas, a força); b) subsiste, estranhamente, em muitos intelectuais, não me interessa se com as melhores intenções, um gérmen anti-intelectualista; c) paira sobre nós a ameaça de, livres das pressões que hoje nos esmagam, vermo-nos na dependência de outras, agindo em outra direção, mas tão cerceadoras quanto as atuais.
O quadro não é dos mais animadores, e urge incentivar o debate em torno dele. Dificultam esse debate razões óbvias. Todos os que se alistam nas hostes de uma literatura popular e, no fundo, conservadora apresentam-se como arautos da mudança, como depositários do futuro e paladinos das aspirações brasileiras. O que condenam é uma literatura dissociada da nossa realidade, e estão certos; é o escritor não solidário com o seu povo, e estão certos; é a obra literária a serviço do poder, e estão certos. Suas teses e propósitos são inatacáveis. De modo que não concordar com o que dizem envolve o risco de parecermos fazer o jogo dos atuais dominadores.
Mas, sejam quais forem os riscos, essas teses precisam ser passadas a limpo. Uma das primeiras coisas a considerar é que está havendo, aí, um estreitamento inadmissível. Virginia Woolf, cuja posição feminista é hoje reconhecida (e quem quiser que leia com atenção os seus livros), escreve, em algum ponto do seu Diário (cito de memória), que a primeira coisa que uma escritora deve esquecer é o próprio sexo. O escritor não deve lançar-se à sua obra com atitudes preconcebidas. Além disso, qualquer pessoa com uma razoável bagagem de leituras sabe que a grandeza e a importância de uma obra não têm nada a ver com o fato – absolutamente acidental – de ela ser ou não popular. E que maniqueísmo é esse de separar povo e não povo, de ignorar como matéria romanesca as classes dominantes? A meu ver, isso é apenas querer ignorá-las, e até, de certo modo, deitá-las ao abrigo de crítica, mediante uma manobra com forte sabor demagógico. Isso quando grande parte da melhor ficção latino-americana, hoje, vai extrair sua força e sua virulência precisamente do estudo dos dominadores. Eu, o supremo, de Roa Bastos, O recurso do método, de Carpentier, O senhor presidente, de Astúrias, O outono do patriarca, de García Marquez, são apenas alguns exemplos. Mas o conceito de popular parece ainda mais grave se se desloca do temático para o formal. Aqui, chegamos às maiores implicações, e vem à tona, com o rótulo de “literatura verdadeiramente brasileira”, uma série de postulados tão categóricos quanto discutíveis, como o que condena, in limine, a “influência estrangeira” e, principalmente, os chamados “formalismos estéreis”. Tudo expressões de um atraso lamentável. Então vamos outra vez inventar a literatura? Não seria mais radical e mais brasileiro inventarmos inicialmente um alfabeto nosso? Ignora, por acaso, essa nova versão de ideologia curupira[3], a constante, imensa, fecunda e necessária rede de permutas e influências que tem vivificado a literatura? Que o romano Virgílio imita o grego Homero? Que o florentino Dante, por sua vez, é conduzido ao Paraíso por Virgílio? Que um dos mais importantes romances do século, do alemão Hermann Broch, chama-se A morte de Virgílio? Que Camões se abebera em toda a tradição clássica? Já ouviram falar na influência de Camões sobre Melville, estudada pelo Prof. Alex Severino, da Vanderbilt University? Desconhecem a influência de George Sand e do folhetim francês sobre um gênio como Dostoiévski? Que dizem do francês Baudelaire haver traduzido e divulgado o norte-americano Edgar Allan Poe? E de outro francês, Diderot, haver retomado em Jacques, o fatalista um tema do Tristram Shandy, do inglês Sterne? E que dizer da presença do espanhol Cervantes na literatura mundial, através do seu Quixote? São contra a influência do teatro grego, que chega até Gota d’ água?
Quanto às investidas contra as formas novas (aglutinadas sob o epíteto de “formalismos estéreis”), eu gostaria de saber por que o experimento é estéril e o conformismo não; por que toda forma ainda não canonizada é estéril e as formas consagradas não; por que a originalidade é estéril e a lição bem-aprendida não é. São conceitos nascidos da má fé ou, simplesmente, da falta de leitura? Da desonestidade ou da ignorância?
Escreve Pierre Daix, em Sept siècles de roman, que “ser balzaquiano, hoje, é negar Balzac” (Daix, 1955, p. 354). A forma nova, eventualmente, pode ser gratuita; mas, em geral, nasce da necessidade de expressar uma visão nova. A arte modifica-se, senhores: sempre se modificou. Não podemos ver o mundo de hoje com os olhos dos séculos passados, do naturalismo, como não podemos vê-lo com os olhos dos árcades. Além disso, nós, criadores, nós, romancistas, não entramos nisso para sermos criados de ninguém. Não estamos pedindo nem esperando ordens de ninguém. Já disse e volto a dizer que, como tudo no mundo, a literatura tem os seus macacos. Mas a nossa medida e a medida do nosso ofício não são dadas por eles. Uma obra literária (precisar repetir isso a escritores!) é uma aventura total, exaustiva, dramática, profunda, arriscada, nada simples – e tanto a sua eficácia como a sua direção não podem ser determinadas de fora. Uma obra literária não tem nada que ver com palavras de ordem. Pessoalmente, acho que uma visão não naturalista é muito mais rica e abre mais vias de acesso ao real que a visão naturalista. Admito, ao mesmo tempo, que um escritor, hoje, possa trazer uma contribuição importante através do naturalismo. Mas esse naturalismo diferirá do naturalismo do século xixe nascerá como uma descoberta ou redescoberta feita pelo escritor, não decorrerá de uma decisão de terceiros.
Tais verdades, óbvias, são negadas ou ignoradas por mentores autonomeados, que exigem de nós submissão à sua restrita tábua de valores e condenam toda expressão nova, intrigante, como manifestação de “intimismo à sombra do poder”[4], ou seja, como um estratagema em favor do poder, nem o sacrifício da vida do escritor podendo ser arrolado em sua defesa.
Reflitam sobre isso os que amam a liberdade e a literatura. E decidam por si se não repercute nas posições e postulados desses mentores o mesmo diapasão totalitário e imobilista das forças políticas que hoje nos regem e das quais não será injusto supor que eles se aprestam para ser, vinda a hora, os zelosos substitutos.
(17-9-1977)
[1] Exemplar, a esse respeito, o volume Realismo & antirrealismo na literatura brasileira (Coutinho et al., 1975). Gilvan P. Ribeiro, por exemplo, fala da “mera sonoridade parnasiana” de Grande Sertão: veredas, para ele, simples “palco povoado de sombras”. E José Paulo Netto considera “mistificação” o prestígio que desfruta o romance de Guimarães Rosa…
[2] Exemplar mimeografado. Na época, ainda não me desligara do ensino universitário e participei da banca examinadora.
[3] “Pois há mais ensinamentos de modernidade do estilo, da concepção absolutamente inédita da Arte, numa simples narrativa tupi do que num manifesto de Marinetti” etc.; “Com o ser apenas nacionais, profundamente brasileiros, teremos ultrapassado tudo o que se tem feito ultimamente na Europa” etc. (Salgado, 1959, p. 164).
[4] A expressão tem sido usada no Brasil, em segunda mão, com uma certa ligeireza. Emprega-a Lukács no ensaio Thomas Mann e a tragédia da arte moderna, e Carlos Nelson Coutinho, seu tradutor, informa em nota de pé de página ter sido antes utilizada por Mann em ensaio sobre Wagner. Com as dificuldades que há no Brasil para tudo, não consegui o ensaio de Thomas Mann no original. Na tradução espanhola e na francesa, porém, a expressão aparece com outros matizes. Seja como for, é oportuno esclarecer que T. Mann tinha grande admiração por Wagner, de quem diz, entre outras coisas: “Um espírito tão vivo, tão avançado, sabia que não há senão um único problema humano, que o espírito e a política não são separáveis”. Escrever, portanto, simplesmente, que Thomas Mann, referindo-se a Wagner, usa a expressão “intimismo à sombra do poder” é informar pela metade e pode sugerir, da parte do romancista, uma atitude condenatória em relação ao autor dos Mestres cantores, o que não é exato.
N. O.: Embora não conste da passagem qualquer referência, foi acrescentada à Bibliografia da presente edição uma possível fonte do ensaio de Lúkacs consultado por Lins (cf. lukács, 1965). Quanto ao ensaio de Thomas Mann, “Leiden und Größe Richard Wagners” (“Sofrimento e grandeza de Richard Wagner”), de 1933, foi publicada recentemente uma tradução brasileira (cf. mann, Thomas. Pensadores modernos: Freud, Nietzsche, Wagner e Schopenhauer. Tradução de Marcio Suzuki. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. p. 147).