por Miguel Forlin
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Nas experiências como leitor e espectador, podem existir, entre outros, dois momentos, que se complementam e dialogam diretamente com o desenvolvimento biográfico e interior. O primeiro desses momentos é o contato com diferentes personagens, situações e desdobramentos, ou seja, com diferentes possibilidades de vida. No caso da literatura, ler histórias que se passam em regiões onde não estivemos, em épocas que nunca viveremos e povoadas por figuras humanas que não conhecemos é um convite à imaginação e à instrospecção. Mesmo se mudarmos constantemente de rota, as nossas trajetórias individuais se desenrolam dentro de um recorte circunscrito, determinado por escolhas, acasos e consequências. Não podemos estar em todos os lugares e tempos, assim como não podemos vivenciar concretamente todos os dramas e alegrias. Parte da beleza que caracteriza a nossa condição é a variedade decorrente de tais limitações. Cada um de nós vive a sua história particular, e é a junção de todas elas que compõe o extenso poema da existência humana.
Nesse sentido, os romances, contos, novelas e poesias são como janelas às paisagens que não visitamos, às estradas que deixamos para um outro dia, como nos versos de Robert Frost. Assim, lê-los é um exercício de imaginação, mas, também, uma oportunidade de conhecimento. Concebemos, em nossa mente, os cenários e personagens que neles se movem e, ao imaginar, perscrutamos os recônditos da vida interior em busca de um referente, análogos que permitam a compreensão. Nesse processo, conhecemos o mundo, pessoas, ideias, pensamentos e nós mesmos, seja mediante aquilo que, de uma certa maneira, existiu, seja mediante aquilo que é possível de modo imaginário. Afinal, o reconhecimento pode se dar rapidamente, pela proximidade entre o que lemos e o que já vivenciamos, como pode ser mais longo e difícil. Em ambas as situações, no entanto, ocorre a abertura às diversas facetas da vida.
No caso do cinema, a experiência é similar. Evidentemente, uma parte considerável do exercício imaginativo está traduzido em imagens dadas, imagens que acompanhamos como espectadores, pois a sua ilustração se dispõe à frente, na tela. Porém, sempre há um universo além do mostrado, que transcende os limites e a superfície do quadro. Para que possamos enxergá-lo, imaginamos, com o mesmo ímpeto que empregamos na investigação interior, naqueles instantes em que buscamos pontos de contato. Quando um personagem chora, quais são, exatamente, os tumultos que produzem as lágrimas? Quando ouvimos, no extracampo, o som de uma sirene, o que ocasionou o seu acionamento? Quando um grupo se encontra fechado em um ambiente claustrofóbico, como são as ameaças externas? E o que se esconde por trás da realidade aparente?
Perguntas como essas são as que fazemos ao nos depararmos com eventos que clamam pela participação ativa daqueles que os veem, numa movimentação interna muito parecida à da leitura de um livro. Esse primeiro momento constitui, por assim dizer, o contato inicial, a descoberta de novas possibilidades. Pode existir, todavia, um segundo momento, relacionado à vivência posterior de algo lido ou visto anteriormente. Nessa ocasião, aquilo que, no início, foi visto e concebido em nossas mentes, ressoando no interior, passa a ser vivido concretamente, sentido na pele e debaixo dela. Por consequência, o que imaginamos enquanto leitores e espectadores se converte em lembranças abstratas de uma experiência que se efetiva, que se impõe em nossa realidade imediata e física.
Os exemplos mais atuais e pertinentes são os da pandemia e da quarentena. A literatura e o cinema estão repletos de histórias em que os personagens enfrentam vírus e doenças mortais, histórias em que, por algum desses motivos ou por outro não listado, eles precisam se isolar e modificar completamente as suas rotinas. Lembro, por exemplo, de lamentar como a peste sela os destinos de Romeu e Julieta, transformando em morte e suicídio o que seria um caso de amor; de tentar imaginar as condições descritas por Albert Camus no livro que leva o mesmo nome do mal que alterou a vida dos amantes shakespearianos; de recriar internamente o sentimento dos jovens que se abrigam numa vila para ler histórias enquanto um vilão invisível faz novas vítimas, como em Decamerão.
Lembro, também, de assistir aos autoexílios dos personagens de Ingmar Bergman, que, assim como o diretor acabou por fazê-lo, se afastam do mundo em ilhas solitárias, o que é recriado, com destreza e de maneira particular, em alguns filmes mais dramáticos de Woody Allen; de testemunhar o desespero do protagonista de O Sacrifício (1986), de Andrei Tarkovsky, ao descobrir que o seu pequeno paraíso doméstico pode não ser poupado de uma possível exterminação global, situação que se repete, de outras formas, em filmes como O Cavalo de Turim (2011), de Béla Tarr, 4:44 – O Fim do Mundo (2011), de Abel Ferrara, e Melancolia (2011), de Lars von Trier; de ver a luta por sobrevivência de um grupo de isolados em O Anjo Exterminador (1962) e Quinteto (1979), obras-primas de Luis Buñuel e Robert Altman, respectivamente; de acompanhar, pela mise em scène de Luchino Visconti, o fim trágico de Gustav von Aschenbach em Morte em Veneza (1971), o que vale também para as linhas da novela de Thomas Mann, da qual o longa é uma adaptação.
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Claramente, esses são apenas alguns dos exemplos, mas todas as menções têm em comum situações que, sob diferentes aspectos e em maior ou menor medida, estão sendo vividas atualmente, pela minha geração e por outras. Estamos diante de um inimigo que a nossa falsa onipotência considerava ser um dado antigo, morto, pertencente apenas aos livros. Ao ler e ver essas histórias, imaginávamos, a partir de um correlativo, como seriam as sensações de impotência e vulnerabilidade geradas por uma situação tão limítrofe como a de uma pandemia. Agora, o que imaginamos e vimos se tornou a memória de experiências materiais, que encontramos diariamente, em nossas casas e nas notícias dos jornais.
Quantas histórias de amor não acabaram tragicamente por causa do coronavírus? Quantos aspectos de A Peste, do Camus, não são vistos diariamente no nosso comportamento e no comportamento alheio? Como não entender completamente o tédio e o pavor que o isolamento origina nos personagens bergmanianos? Ou as tensões que o convívio fechado entre diferentes pessoas proporciona? E como não enxergar, de um jeito apocalíptico, a realidade em que nos vemos inseridos, com as incontáveis mortes, a crise econômica, os milhões de desempregados e as exigências da subsistência batendo à porta?
Algumas dessas histórias foram contadas por artistas que as viveram. O mesmo pode ser dito de pessoas que, em determinado momento histórico, as leram e viram. Hoje, podemos dizer que também fazemos parte desse grupo. Nós não mais apenas imaginamos como deve ter sido, nós sabemos como foi e como é, está no tecido do nosso dia a dia. As páginas e cenas se tornaram as dos nossos próprios livros e filmes, os particulares e os coletivos. Ficção, imaginação e vida real se misturam. Todos somos como Crusoés na solidão de nossas ilhas, nesse imenso arquipélago de terras similares.
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Até a própria experiência de reler e rever essas lembranças é como a dos jovens no livro de Bocaccio, voltamos às histórias como uma forma de aprender, guardamos dentro de nós mesmos e compartilhamos, pelos meios virtuais, o que elas têm a ensinar, não como um possível ensinamento futuro e sim como um ensinamento aplicável, capaz de aplacar a solitude e revelar coisas acerca da nossa condição e do que vivemos como indivíduos e grupos.
No entanto, permanece uma questão: ainda estamos sob o jugo desse inimigo, não sabemos como será depois da pandemia. Já lemos em livros e vimos em filmes vidas reconstruídas, reerguidas sobre escombros, já imaginamos como isso pode acontecer, geralmente, retornando aos recomeços efetuados após derrotas e fracassos pessoais. Tivemos, digamos assim, aquele primeiro momento como leitores e espectadores. Mas o segundo momento continua um mistério. Poderemos conhecê-lo materialmente apenas no futuro, nos restando, no momento, apenas a esperança de que isso aconteça da melhor maneira possível, para que possamos responder à pergunta “e depois?” com um certo otimismo.
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