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Anos atrás, escrevi nesta página do Estado da Arte sobre meu livro que então saía, Em outros tantos quartos da terra. Revendo-a agora, em busca de uma possível relação com o que tenho a dizer, ainda me parece uma página interessante, embora, três anos depois, não lembre bem, não consiga mesmo reconhecer por que tomei tal caminho naquela apresentação. Talvez movido por uma dessas coisas que não dormem, assanhada em nos perseguir, até que um dia, de súbito, desaparece. No primeiro poema do atual volume, chamei-a a ela e suas semelhantes de fantasma, precária nomeação, mas antiga a ponto de que possamos reconhecê-la. De um modo ou outro, é no corpo, que desconhece nomenclaturas, que tais forças exercem seu poder de assombro.
Como bem disse Eduardo Wolf, os poemas a seguir — pequena prévia de O nome da parte que não dorme — operam no estilo do alto século XX, concebidos com economia lírica e rigor prosaico, oscilando entre o desespero e a ironia, o desalento e a compaixão.
A pré-venda já está aberta no site pedrogonzaga.com e em breve haverá uma live de lançamento aqui no Estado da Arte. Por ora, seguem, com exclusividade, os três poemas que abrem o livro.
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o nome
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deixaste a tua melhor parte
num café da rua da praia
de um modo desatento
não lembras sequer o ano
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mas não te recrimines tanto
perder é um invento do passado
como um dente roído por dentro
antes do breve estalo de cristal
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depois o disparo da raiz exposta
a bonança do plano dentário
bônus do lastimoso emprego
à energia empenhada com gente
que em breve precisará de um
aplicativo para limpar o rabo
enquanto tua melhor parte
ah aquela tua melhor parte
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no corpo levas só a outra
em tuas tantas partes flácidas
com olhos a cada dia mais molhados
frente a esse fantasma que baila
feito ave na poça baldia
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coisas sobre nós que os livros de física ignoram
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a gravidade lunar de teus dedos neste planeta
a radiação quente do teu corpo quando chora
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o reflexo solar em nossos olhos na penumbra
a fluida inércia da noite ao redor deste quarto
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a clara acústica dos sons que apenas intuo
o movimento jamais reto e uniforme do amor
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ossos
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o comprimido na mão
a velha senhora pergunta —
qual a quantidade exata de cálcio
para um osso não quebrar
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não se dirige a ninguém em específico
parece espantada com a descoberta —
é estranho ter gordura nas artérias
pedra nos rins
açúcar no sangue
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os olhos fechados
dentro das abarrotadas
niqueleiras das pálpebras
ela me diz que no ano passado
perdeu a cabeça do fêmur
e enumera entre faceira e confusa
as vantagens da prótese de titânio
enquanto tateia aflita a lápide
do remédio na palma
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é cálcio — exclama
levando o comprimido aos lábios
um cintilante cartucho branco
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é uma drágea de hortelã
no frescor escuro do cinema
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