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Na parceria do Estado da Arte com a Editora tinta-da-china, trazemos Fernando Pessoa e sua Mensagem; trazemos os poemas que abrem este livro?pátrio — visão de Portugal oferecida por um anunciado ‘supra?Camões’, posto ‘propositadamente’ à venda a 01 de Dezembro de 1934, dia da Restauração da Independência. Trazemos também um ensaio de Onésimo Teotónio Almeida sobre Mensagem, ‘lida à luz do próprio Pessoa’.
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I.
O INFANTE
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…………….Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
…………….Deus quiz que a terra fosse toda uma,
…………….Deus quiz que a terra fosse toda uma,
…………….Que o mar unisse, já não separasse.
…………….Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
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5…………..E a orla branca foi de ilha em continente,
…………….Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
…………….E viu-se a terra inteira, de repente,
…………….Surgir, redonda, do azul profundo.
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…………….Quem te sagrou creou-te portuguez.
10…………Do mar e nós em ti nos deu signal.
…………….Cumpriu-se o Mar, e o Imperio se desfez.
…………….Senhor, falta cumprir-se Portugal!
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II.
HORIZONTE
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…………….Ó mar anterior a nós, teus medos
…………….Tinham coral e praias e arvoredos!
…………….Desvendadas a noite e a cerração,
…………….As tormentas passadas e o mysterio,
5…………..Abria em flor o Longe, e o Sul siderio
…………….Splendia sobre as naus da iniciação.
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…………….Linha severa da longinqua costa —
…………….Quando a nau se aproxima, ergue-se a encosta
…………….Em arvores onde o Longe nada tinha;
10…………Mais perto, abre-se a terra em sons e cores;
…………….E, no desembarcar, ha aves, flores,
…………….Onde era só, de longe, a abstracta linha.
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…………….O sonho é ver as fórmas invisiveis
…………….Da distancia imprecisa, e, com sensiveis
15…………Movimentos da esprança e da vontade,
…………….Buscar na linha fria do horizonte
…………….A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
…………….Os beijos merecidos da Verdade.
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Mensagem — lida à luz do próprio Pessoa,
………………………………………………………………………………………………………………por Onésimo T. Almeida
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Mensagem foi desde o início interpretada pelos dois extremos do espectro político como uma obra nacionalista, com a diferença de que uma facção a reclamava como sua e a outra a rejeitava por esse mesmo motivo — tê-la lido como ideologicamente próxima do regime a que essa facção se opunha. De uma maneira ou de outra, portanto, quase toda a crítica entendeu Mensagem como um poema nacionalista, se bem que com aprovação de uns e reprovação de outros. Os críticos que apontaram ou sugeriram outras leituras não forneceram razões substanciais capazes de libertar o livro da catalogação política que tão cedo sobre ele pendeu.
Para identificarmos a ideologia de Pessoa subjacente a Mensagem, não bastam os elementos presentes na obra. É fundamental ter-se em conta tudo o que sobre ela, sobre Portugal e sobre a política escreveu Fernando Pessoa. Mas mais ainda: é importante enquadrar essas convicções ideológicas no pano de fundo mais vasto da mundividência pessoana, particularmente as suas concepções estéticas, as suas crenças sobre o papel do mito, da poesia e dos poetas. Depois disso, há que situar o quadro resultante da sua mundividência geral, que nele, como todos sabemos, é especialmente complexo, dada a multiplicação do seu eu em heterónimos e outros autores fictícios (cf. Eu Sou Uma Antologia). Porque é impossível realizar tamanha tarefa dentro do espaço limitado deste texto, tentarei resumir a proposta de leitura que desenvolvi primeiro em Mensagem: Uma tentativa de reinterpretação (Almeida, 1987) e desenvolvi posteriormente em vários ensaios reunidos no livro Pessoa, Portugal e o Futuro (Almeida, 2014).
Antes de prosseguirmos, será talvez conveniente definirmos os termos. Por mundividência entendam-se aqui as coordenadas de fundo da visão que uma pessoa tem de si, do universo e do seu lugar nele. O termo ideologia possui um alcance mais limitado. Abrange essa área da mundividência em que se concentram e conjugam as convicções éticas em geral e as políticas em particular.[1]
Fazer aqui um resumo da proposta de leitura já referida é difícil. Ela será inevitavelmente mutilada, já que esse ensaio constitui um argumento único, escrito de modo compacto e altamente sintético, em que cada peça do argumento geral é apoiada por um mínimo de argumentos que a sustentam. De qualquer modo, aqui fica o esquema central da argumentação:
………….(1) Fernando Pessoa preocupou-se seriamente com o estado de decadência em que Portugal se encontrava. O facto de ter vivido parte considerável da sua infância e adolescência exposto à cultura inglesa, então no seu auge, deve ter agudizado a percepção da diferença e acentuado os seus sentimentos de obrigação para com a pátria. Daí o ter sonhado fazer algo pelo ressurgimento nacional. O espólio hoje conhecido documenta em profusão estas asserções.
………….(2) Convencido de que a atitude pessimista e derrotista que predominava em Portugal nunca levaria à construção de nada, propôs-se elaborar um plano que, posto em prática, colocaria Portugal numa atitude dinâmica, positiva e de criação.
………….(3) Influenciado por Carlyle, Pessoa concebeu uma sociedade em que uma aristocracia de heróis, entre os quais o poeta é o maior, desempenha um papel-motor no processo evolutivo dum povo: «o mais alto grau de imaginar é o do poeta, é na poesia que vamos buscar a alma da raça» (Pessoa, 1980, p. 69).[2]
………….(4) Conhecedor da filosofia de Henri Bergson, acolhe-a como pano de fundo: a criatividade atinge-se quando se está num estado de tensão contínua a que se chega através da assunção do passado que nos projecta depois num futuro profundamente superior, espiritual e de largos horizontes.
………….(5) Naturalmente conhecedor do mito da greve geral proposto por Georges Sorel[3] como solução para se sair do inactivismo decadentista, Pessoa ter-se-á servido do modelo adaptando a ideia à situação portuguesa, mas seguindo-o de perto: o mito deve ter raízes populares (daí o ter ido buscar o sebastianismo[4] , e as bases do nacionalismo elaboradas pela Renascença Portuguesa[5]); deve apontar para um futuro iminente, próximo, ainda que não se saiba nem se defina exactamente quando; o mito deve ser descrito em termos vagos, misteriosos, de modo que exerça apelo sobre as pessoas — daí o nevoeiro, a utilização da simbologia hermética e a sua formulação no ponto máximo de encontro entre o símbolo, a palavra e a ideia, isto, na forma de expressão que corresponde às suas concepções de poesia; não importa que o mito seja inatingível, já que, no processo dinâmico de se lá chegar, se operam, criam e realizam actos que seriam impossíveis sem essa tensão. Daí a ideia de recuperar o Quinto Império — mito igualmente «nacional» —, transformando-o num império espiritual, a fim de parecer possível e ser simultaneamente inatingível. Criar um mito anunciando um novo império material não seria acreditável para ninguém, nem Pessoa achava ser isso sequer um bom ideal para o país.
………….(6) O projecto da construção desse mito nacional de Fernando Pessoa tinha duas vertentes: uma teórica que, ao longo dos anos, foi elaborando de modo fragmentado, anotando inúmeras reflexões para um livro «sociológico» dedicado a Portugal; a outra era a apresentação desse mito aos portugueses em geral, expresso na forma superior da arte poética — a única capaz de tocar não a razão mas o sentimento das pessoas — e que viria a realizar-se em Mensagem.
………….(7) A atitude de Pessoa face ao conceito de verdade reflecte uma concepção epistemológica que remonta a Pascal e aos pragmatistas, como William James. Com efeito, o conceito de verdade tradicionalmente dividia os filósofos entre defensores da verdade como correspondência (aristotélica) e a verdade como coerência (mais platónica) e referia-se apenas a verdades relativas ao passado e ao presente. Em relação ao futuro, essas concepções de verdade são defeituosas, porque os factos ainda não aconteceram. Além disso, os seres humanos podem interferir nos acontecimentos alterando-lhes o rumo. Sendo assim, o conceito de verdade em relação ao futuro tem de ser outro. Os seres humanos podem fazer escolhas e impor-se atingir determinados objectivos. Ainda que não os consigam na sua totalidade, essa atitude coloca-os numa posição de poderem realizar algo. Quer dizer: os seres humanos podem influenciar o futuro, aquilo que vai ser verdade. Daí Pessoa falar em verdade como escolha.
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Uma chave de interpretação é válida quando permite explicar os elementos fundamentais que compõem um problema. A leitura acima sugerida parece dar-nos essa possibilidade. Ficaria assim explicado por que motivo Fernando Pessoa se considerava um «sebastianista racional» (Pessoa, 2016, p. 641), e também se entenderia a sua concepção, expressa no poema «Ulysses» da própria Mensagem, de que «o mytho é o nada que é tudo». Mais ainda, deixaria de ser necessário tomar-se à letra tudo o que nela vem dito sobre o Quinto Império, ou sobre D. Sebastião, e o próprio poeta não teria mais de ser apontado como tendo pretendido ser a reincarnação daquele.
Do mito em termos sorelianos fazem parte todos esses elementos que o mito pessoano apresenta e, à luz desse modelo, não há que continuar a interpretá-los literalmente. Nem muito menos se deverá esmiuçar-lhes o conteúdo, uma vez que o carácter misterioso do que vai acontecer, bem como a indefinição do tempo em que há-de realizar-se, são factores psicológicos fulcrais e sine qua non da eficácia do mito. Pessoa, nesse aspecto, devia ser bergsoniano demais para se arrogar o direito de indicar um plano ou descrever o futuro. O importante era redimensionar as energias numa tensão criadora do que quer que fosse, para se sair do niilismo retrógrado, improdutivo e podre em que se encontrava o país.
Estas concepções do mito como construção racional e da verdade como escolha parecem-me ter implicações fundamentais na hermenêutica pessoana, sobretudo porque revelam uma mundividência muito mais articulada do que a sugerida por todo um discurso da fragmentação. A leitura atenta dos escritos filosóficos de Fernando Pessoa deixa clara a sua posição sobre o problema da verdade. Ele defende de modo explícito uma verdade construída pragmaticamente (ver Almeida, 1990; incluído em Almeida, 2014).
Se estas peças do puzzle estão correctamente montadas, então as ligações entre a mundividência de Fernando Pessoa e a sua ideologia política não padecem de mais desajustamentos incoerentes. E desaparece aquele nó górdio com que se debatiam os admiradores do Pessoa dos heterónimos, cujo reconhecido génio contrastava com o facto de se ter deixado emaranhar num nacionalismo estreito e retrógrado e em loucuras visionárias. A ser assim, é uma vez mais o próprio Fernando Pessoa quem melhor traça o seu perfil ideológico, na famosa nota autobiográfica, de 30 de Março de 1935. Recordemo-la:
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Ideologia politica: Considera que o systema monarchico seria o mais proprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarchia completamente inviavel em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimens, votaria, embora com pena, pela Republica. Conservador do estylo inglez, isto é, liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionario. […]
Posição patriotica: Partidario de um nacionalismo mystico, de onde seja abolida toda infiltração catholica-romana, creando-se, se possivel fôr, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catholicismo portuguez houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lemma: “Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação”.
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Esta leitura não pretende insinuar que a ideologia política de Fernando Pessoa tenha tido trajectória linear. Espírito extremamente arguto, Pessoa expunha-se a toda a espécie de ideias, que se transformavam ao passarem pelo crivo da sua análise.[6] Senhor, porém, de uma personalidade muito especial, foi construindo e alargando essa sua visão única do mundo ao longo de toda a sua vida, com hesitações, ambiguidades e até mesmo enganos, mais tarde corrigidos ou retratados, na sua leitura de alguns acontecimentos políticos, como no conhecido caso do «Interregno». O seu projecto para Portugal foi igualmente tomando corpo ao longo dos anos. Inicialmente não sabendo bem para onde ia, foi ano após ano sabendo para onde não queria ir.[7] Se pontualmente, neste ou naquele momento da história política do seu tempo, é possível encontrar Pessoa mais reaccionário ou mais liberal, tomadas no conjunto, as suas posições políticas revelam uma consistência notável. Coadunam-se com a citada classificação ideológica que o poeta faz de si. A ser assim, qualquer que seja a tradução prática de expressões como «nacionalismo cosmopolita»,[8] não parece de modo algum defensável continuar-se a colá-lo ideologicamente ao regime político que «premiou» a sua Mensagem.
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Como tentei demonstrar, a minha proposta de leitura de Mensagem como um mito entendido à luz da possível influência de Henri Bergson, e sobretudo de Georges Sorel, para quem o mito da greve geral constituiria o pilar fundamental, ajudar-nos-ia a compreender o porquê da insistência de Fernando Pessoa no papel do poeta e da poesia como mensageira do mito e mobilizadora do espírito das pessoas, único processo de agir sobre a mentalidade portuguesa, com vista a fazer a sociedade sair do pessimismo inactivo. O mito nacional com raízes populares de modo que as pessoas pudessem com ele identificar-se — o sebastianismo — actuaria transformando a mentalidade colectiva em atitude positiva. Assim, ficaria decifrada a expressão «sebastianismo racional» — quase um oxímoro —, criada pelo próprio Fernando Pessoa, consciente do carácter fabricado desse mito, mas ciente e convicto da operosidade dele sobre as pessoas, desde que expresso em forma poética e revestido de um sem-número de efeitos estéticos que lhe imprimiriam a necessária força capaz de actuar sobre os leitores.
À luz da concepção soreliana do mito, as diversas peças do puzzle à volta de Mensagem parecem complementar-se num todo coerente. Atrás, afirmei que Pessoa possui um conceito especial de mito, que acontece ser o mesmo de Sorel e que mais ninguém em toda a história usou. Para ambos, em vez de fixado no passado, o mito é todo projectado no futuro, existindo como agente no processo da sua consecução, apontando o caminho para a verdade que vai sendo construída, ou servindo para apontar esse caminho, mesmo que ele esteja ainda envolto em nevoeiro. Não apenas autores clássicos sobre o tema, como Mircea Eliade (1963), Claude Lévi-Strauss (1979), ou Joseph Campbell (1997), mas inclusivamente alguns mais recentes, como Bruce Lincoln (1999), ou Karen Armstrong (2005), entre tantos outros que consultei (Sebeok, 1958; Kirk, 1970; Ausband, 1983), não incluem qualquer visão do mito como futuro e actuante sobre o rumo dos acontecimentos.
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Com a seguinte citação do próprio Pessoa, espero deixar claro não ser eu quem está a colocar ideias na mente do poeta, mas apenas a detectá-las:
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Ha só uma especie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação — a construcção ou renovação, e a diffusão consequente e multimoda, de um grande mytho nacional. De instincto, a humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instincto, que não ha verdade, ou que a verdade é inattingivel. O mundo conduz-se por mentiras; quem quizer despertal-o ou conduzil-o terá que mentir-lhe delirantemente, e fal-o-ha com tanto mais exito, quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que creou. Temos, felizmente, o mytho sebastianista, com raizes profundas no passado e na alma portugueza. Nosso trabalho é pois mais facil; não temos que crear um mytho, senão que renoval-o. Comecemos por nos embebedar d’esse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, por cada um de nós independentemente e a sós comsigo, o sonho se derramará sem exforc?o em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosphera estará creada, em que todos os outros como nós o respirem. Então se dará na alma da nação o phenomeno imprevisivel de onde nascerão as Novas Descobertas, a Creação do Mundo Novo, o Quinto Imperio. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.
¨…………………………..(125B-36r; cf. Pessoa, 1978b, pp. 254-255; publ. em Portugal, Vasto Império, 1934)[9]
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Até ao final da vida, Pessoa manteve a faceta sebastianista nesse seu singular sentido de «sebastianista racional». Significa então que, para ele, o necessário para alterar a mentalidade portuguesa de modo a mobilizá-la e fazê-la sair do estado depressivo e pessimista em que se encontrava era a crença no mito de Mensagem. Abúlico e incapaz de intervenção cívica ou política na segunda fase da sua existência, e ividido também pelas múltiplas visões do mundo que mantinha em simultâneo, vivia quase só no cérebro todas essas realidades. Portanto, Mensagem acabou sendo algo como Mahatma Gandhi terá dito quando lhe perguntaram se acreditava na civilizacão ocidental: «Seria uma boa ideia.»
Pessoa terá alimentado essa sua boa ideia até ao final dos seus dias.[10]
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Notas:
[1] O conceito de ideologia possui uma longa história de confusões e mal-entendidos. Recentemente, tornou-se muito comum usar o termo com o sentido de mundividência. Por existirem essas duas realidades distintas e analiticamente separáveis — mundividência e ideologia —, os dois conceitos são aqui mantidos. A justificação teórica desse uso foi feita noutro lugar (Almeida, 1980).
[2] A influência do pensamento político de Carlyle em Pessoa foi estudada por Gilbert Cavaco (1979).
[3] Inicialmente, foi apenas a leitura dos textos de Pessoa sobre o mito que me fez associá-lo às páginas das Refléxions sur la Violence, de Sorel. Posteriormente, Pedro Teixeira da Mota encontrou uma referência a outro livro de Sorel, Les Illusions du Progrès. Através do contacto epistolar que então travei com Francisco Peixoto Bourbon, benjamim da tertúlia que Pessoa reunia no Café Montanha, foi-me por ele confirmado que o poeta conhecia e admirava o pensamento de Sorel. O próprio Peixoto Bourbon publicara mesmo num pequeno jornal regional um artigo («Evocando Fernando Pessoa», O Comércio de Gaia, 11 de Marc?o de 1986) em que se referia ao apreço que Pessoa tinha pelo pensador francês. Dessa ligação dei conta em pormenor em Almeida (1991 e 2014). Neste último, incluo provas adicionais do conhecimento que Pessoa tinha da obra de Sorel, graças a manuscritos encontrados no espólio pessoano por Jerónimo Pizarro.
[4] Sobre ele Fernando Pessoa escreve com uma clareza transparente: «Temos, felizmente, o mytho sebastianista, com raizes profundas no passado e na alma portugueza. Nosso trabalho é pois mais facil; não temos que crear um mytho, senão que renoval-o» (125B-36r ; cf. Pessoa, 1978b, p. 255; publ. em Portugal, Vasto Império, 1934).
[5] São bastante explícitas as passagens em que Pessoa se demarca do nacionalisno de Teixeira de Pascoaes, embora reconheça a importância da etapa, por este levada a cabo, de reconstituição dos elementos fundamentais da cultura portuguesa manifestados desde Camões (o seu lado português, segundo Pessoa), passando por Antero de Quental e António Nobre, acabando por entroncar-se em Pascoaes. Para o «nacionalista synthetico» de Pessoa, como ele lhe chama, «não ha propriamente uma alma nacional; ha apenas uma direcção nacional» (92B-77v ; cf. Pessoa, 1978a, p. 224).
[6] É curioso notar que o pensamento de Pessoa é afirmado quase sempre de modo negativo. Parece saber melhor o que não quer do que o que quer. Mas, nas suas críticas, transparece constantemente a ideia de que o autor tem consciência de que transcende as suas próprias influências, embora assimile e transforme muitas delas, por servirem os seus objetivos.
[7] Podemos perguntar-nos se Pessoa terá mantido ao longo da sua vida essa concepção da poesia como potencialmente mobilizadora de espíritos. Provavelmente não, embora nenhum escrito até agora conhecido nos faça supor que ele a abandonou. Parece indubitável que manteve durante muitos anos essa convicção como um dado adquirido. Na fase final da vida, as dúvidas sobre cada uma das suas certezas intensificaram-se e multiplicaram-se, bem como a abulia que confessava torná-lo incapaz de agir, ou de levar a cabo tudo o que ele próprio reconhecia ser importante fazer. Na carta a Adolfo Casais Monteiro, que delicadamente lhe censurara a publicação da Mensagem, Pessoa assume sem reservas esse seu lado nacionalista: «Sou, de facto, um nacionalista mystico, um sebastianista racional. Mas sou, àparte isso, e até em contradicção com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclue» (Pessoa, 2016, p. 641).
[8] Confira-se o artigo de José Augusto Seabra (1988), «Fernando Pessoa e a ‘Nova Renascença’ da Europa», onde a interpretação estreita do nacionalismo de Pessoa é convincentemente rejeitada, e a «Nota» de José Blanco no final do volume de sua organização, A Poesia de Fernando Pessoa de Adolfo Casais Monteiro (1985).
[9] A entrevista foi inicialmente publicada no Jornal do Commercio e das Colonias, curiosamente no histórico dia 28 de Maio de 1926.
[10] Versão condensada do prefácio de Mensagem publicado pela Livraria Lello, à qual o autor deste texto e o editor deste livro agradecem a autorização concedida.
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Referências:
Almeida, Onésimo T. (2014). Pessoa, Portugal e o Futuro. Prefácio de George Monteiro. Lisboa: Gradiva.
__ (1991). «Pessoa, a Mensagem e o mito em Georges Sorel», in Actas do IV Congresso de Estudos Pessoanos [São Paulo, 1988]. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, vol. ii, pp. 211-222. 2 vols.
__ (1990). «Pessoa e Verdade(s) — ou a crítica do abuso de leituras herméticas», in Um Século de Pessoa: Encontro Internacional do Centenário de Fernando Pessoa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 195-203.
__ (1987). Mensagem: uma tentativa de reinterpretação. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional de Educação e Cultura.
__ (1980). The Concept of Ideology: a critical analysis. Providence: Brown University Philosophy Department. Tese de doutoramento mimeografada.
Armstrong, Karen (2005). A Short History of Myth. Edimburgo; Nova Iorque: Canongate.
Ausband, Stephen C. (1983). Myth and Meaning, Myth and Order. Macon: Mercer University Press.
Campbell, Joseph (1997). The Mythic Dimension: selected essays 1959?1987. Edição de Anthony Van Couvering. São Francisco: Harper San Francisco.
Cavaco, Gilbert (1979). Mensagem: Esoterismo e Ideologia em Fernando Pessoa. Nova Iorque: Department of Spanish and Portuguese; New York University. Tese de doutoramento mimeografada.
Eliade, Mircea (1963). Aspects du Mythe. Paris: Gallimard.
Kirk, G. S. (1970). Myth. Its Meaning and Functions in Ancient and Other Cultures. Cambridge: Cambridge University Press.
Lévi?Strauss, Claude (1979). Myth and Meaning. Nova Iorque: Schocken Books.
Lincoln, Bruce (1999). Theorizing Myth. Narrative, Ideology and Scholarship. Chicago: Chicago University Press.
Monteiro, Adolfo Casais (1985). A Poesia de Fernando Pessoa. Organização de José Blanco. Lisboa: INCM. 2.ª ed.
Pessoa, Fernando (2016). Eu Sou Uma Antologia: 136 autores fictícios. Edição de Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Lisboa: Tinta-da-china.
__ (1980). «A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico», in Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980, pp. 43-74.
__ (1978a). Da República (1910?1935). Recolha de textos de Isabel Rocheta e Paula Morão; introdução e organização de Joel Serrão. Lisboa: Ática.
__ (1978b). Sobre Portugal — Introdução ao Problema Nacional. Recolha de textos de Isabel Rocheta e Paula Morão; introdução e organização de Joel Serrão. Lisboa: Ática.
Seabra, José Augusto (1988). «Fernando Pessoa e a ‘Nova Renascença’ da Europa», in Nova Renascença, vol. 8, n.o 30/31, Porto, Primavera/Verão, pp. 121-125.
Sebeok, Thomas A. (1958) (ed.). Myth. A Symposium. Bloomington: Indiana University Press.
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Todos nossos agradecimentos à tinta-da-china, personificada aqui em Catarina Homem Marques.
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