por Alexandre Pinheiro Hasegawa
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quotiens revocatum eandem rem dicere commutatis verbis atque sententiis
Cícero, Pro Archia 8.18
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Damos continuidade à tradução e ao comentário do trecho sobre a peste no DRN de Lucrécio, série iniciada no mês passado aqui no Estado da Arte. Nos novos trechos apresentados, o poeta continua a descrever em detalhe os efeitos causados pela peste nos homens. Nossos comentários dão especial atenção aos recursos poéticos utilizados por Lucrécio para trazer uma vívida imagem da peste. É na leitura detalhada, quase verso a verso, que é possível perceber o estilo desse autor tão fundamental não só para os autores latinos, que o tiveram como modelo; é nessa atenta leitura (e contínua releitura) que se percebe o cuidado na construção dos versos, na escolha e na colocação das palavras. Tal leitura exige pesquisa e estudo, assim como para perceber as inúmeras referências. Lucrécio é um poeta douto. Assim como ele imita a narrativa da História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, assim Virgílio, Horácio e Ovídio imitaram o autor do DRN em muitas passagens. Mas imitar não significa repetir ipsis litteris; antes, o poeta procura emular o modelo, rivalizar com o autor exemplar, para que ele mesmo possa ser emulado. A poesia de Lucrécio, assim, exige diversos conhecimentos: a filosofia de Epicuro, que procura expor a Mêmio, e a de outros filósofos, como Empédocles ou Parmênides, que também escreveram sobre a natureza em hexâmetro datílico; as obras gregas que imita, tais como a Ilíada e a Odisseia de Homero, ou a obra historiográfica de Tucídides, ou mesmo os tratados hipocráticos; as obras latinas, tal como o poema épico de Ênio, os Anais. Que os trechos que se seguem sejam um convite para começar a descobrir esse poeta romano, discutido por mais de dois mil anos.
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Lucrécio 6.1160-67: A Peste (1.4)
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S?ng?lt?squ? fr?qu?ns || n?ct?m p?r sa?p? d??mqu?……………………………..1160
c?rr?p?r(e) ?ss?d?? || n?rv?s ?t m?mbr? c??ct?ns
d?ss?lv?b?t ??s, || d?f?ss?s ?nt?, f?t?g?ns.
…..N?c n?m?? cu?qu?m || p?ss?s ?rd?r? t??r?
c?rp?r?s ?n s?mm? || s?mm?m f?rv?sc?r? p?rt?m,
s?d p?t??s t?p?d?m || m?n?b?s pr?p?n?r? t?ct?m………………………………… 1165
?t s?m?l ?lc?r?b?s || qu?s(i) ?n?st?s ?mn? r?b?r?
c?rp?s, ?t ?st || p?r m?mbr? s?c?r || d?m d?d?t?r ?gn?s.
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E o soluço frequente, muitas vezes durante a noite e o dia,…………………….1160
obrigando a contrir assiduamente músculos e membros,
destruía-os, cansando os que já antes exaustos estavam.
…..E não poderias perceber que a parte superficial de alguém
queimava com excessivo calor na superfície do corpo,
mas antes apresentava às mãos um toque tépido e, ao mesmo………………1165
tempo, enrubescia o corpo todo com feridas, como se
queimaduras, como ocorre ao se espalhar o fogo sacro pelos membros.
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Na passagem inicial (1160-1), o poeta repete advérbios de frequência (saepe [‘muitas vezes’] e assidue [‘assiduamente’]), que, conjuntamente com o adjetivo frequens (‘frequente’), intensifica a descrição dos soluços contínuos, repetitivos e reiterados que fatigavam ainda mais os já cansados músculos e membros, destruindo-os por completo. A mesma ideia é reforçada ainda pela repetição da partícula enclítica –que (‘e’): singultusque e diemque, que se junta ainda à parte da palavra frequens. Aqui é possível perceber algum efeito onomatopaico na insistência de –que. Além disso, a colocação dos advérbios e do adjetivo é cirúrgica: frequens e assidue estão imediatamente antes da primeira cesura do verso, ao fim do primeiro hemistíquio, e saepe está surpreendentemente entre a preposição per (‘durante’) e o substantivo diem (‘dia’) na segunda metade do verso, em que a anástrofe entre noctem (‘noite’) e per já chama a atenção. Ademais, per e saepe, pela posição que ocupam, podem ser lidos como uma palavra só, persaepe, que significa ‘muito frequentemente’, como nos sugeriu argutamente Eduardo Henrik Aubert. Nos manuscritos, lembremos, as palavras são escritas sem separação, o que facilita a percepção do jogo de palavras a intensificar ainda mais a repetição. Parece, assim, que elocução e matéria caminham pari passu, como frequentemente sucede no DRN.
Lucrécio, ao falar da contração de músculos e membros, faz o verbo ‘contr(a)ir’ (1161: corriper[e]) contrair-se pela elisão – ou sinalefa, segundo outro entendimento do fenômeno – com assidue. Alguém poderia julgar que se trata de mera casualidade, pois é recurso comum, como se vê, por exemplo, no verso 1166 entre as palavras quasi e inustis, onde a elisão não parece significativa. No entanto, a fim de corroborar tal interpretação, o verbo corripere é usado tecnicamente para tratar da perda de sílaba em um vocábulo desde Varrão, no De Lingua Latina (‘Sobre a Língua Latina’, 7.33). Posteriormente, o mesmo termo é encontrado na ‘Formação do Orador’ (Institutio Oratoria) de Quintiliano para abreviação do discurso (4.2.44), correndo o risco de cair na obscuridade (obscuritas; cf. Horácio, Arte Poética 25-6), ou da duração das sílabas (9.4.89 e 10.1.29).
Assonância e aliteração são claramente perceptíveis no verso 1162. Assim, a dor e a morte, causadas por tantos e tão frequentes soluços, são descritas por variados e repetitivos sons simultaneamente. Destaca-se o som sibilante [s] da passagem que parece mimetizar o sibilo respiratório de uma pessoa doente e extremamente cansada com arfadas incessantes. Portanto, Lucrécio não procura traduzir verbum ad verbum Tucídides, mas imitá-lo e emulá-lo em versos latinos, como ressaltamos anteriormente. Como é conhecido, os poetas latinos da Antiguidade não usavam rima, mas por vezes o homeoteleuto ocorre entre palavras colocadas em fim de versos subsequentes, como em 1161-2: coactans e fatigans. É muito frequente a colocação de adjetivo no fim da primeira metade do pentâmetro elegíaco e do substantivo no fim do mesmo verso, produzindo homeoteleuto, como em Propércio 1.1.6, 8, 12, 18 e 20, para ficar em poucos exemplos do início da obra elegíaca (50% nos dez primeiros pentâmetros): improbus, et nullo || vivere consilio; cum tamen adversos || cogor habere deos; rursus in hirsutas || ibat et ille feras; nec meminit notas, || ut prius, ire vias; et labor in magicis || sacra piare focis. Veja, em nossa passagem, o verso 1165, em hexâmetro datílico: sed potius tepidum || manibus proponere tactum. Tal padrão, já presente com frequência em Catulo (cf. 64.2, 6, 14, 16, 20 etc.), antes dos Augustanos, é prática comum entre os poetas helenísticos, como Calímaco e Hermesíanax.
Passa Lucrécio, em seguida, a descrever o contraste entre a superfície tépida, ao contato com a mão, e o extremo calor interno, resultando em feridas pelo corpo. A vívida descrição que se conclui com o símile do ‘fogo sacro’ – a erisipela, segundo alguns comentários – não passou despercebida por Virgílio, que encerra o terceiro livro das Geórgicas (3.566) imitando o DRN, sem usar o símile. Descreve o poeta os efeitos da peste na província romana de Noricum como ação própria do ‘fogo sacro’: tempore contactos artus sacer ignis edebat (‘em [pouco] tempo o fogo sacro devorava os membros contagiados’). Do ponto de vista elocutivo, porém, a construção de Lucrécio é mais inusitada pela separação de adjetivo e substantivo (sacer … ignis), que encerra a oração subordinada temporal com forte aliteração: dum diditur (‘enquanto se espalha’), enquanto em Virgílio adjetivo e substantivo estão contíguos (sacer ignis).
Por fim, Paulo Sérgio de Vasconcellos nos faz perceber a assonância em ‘i’ nos dois últimos versos: sImul ulcerIbus quasi InustIs … /… dIdItur IgnIs, frequente em passagens em que se menciona o fogo (ignis), seja em prosa, como na descrição do incêndio de Roma em Tácito (cf. Anais 15.38), seja em verso, como em Virgílio (Geórgicas 4.263), em símile que citamos abaixo. Ele exemplifica ainda com a famosa passagem da narrativa da serpente que vai atacar Laocoonte e seus filhos na epopeia virgiliana (Eneida 2.210-1): ardentIsque oculos suffectI sanguIne et IgnI / sIbIla lambebant lInguIs vIbrantIbus ora. Acrescentamos ainda o sonoro trecho em que os troianos, chegando em Cartago, precisam fazer fogueira e Acates faz o fogo batendo uma pedra contra outra (Eneida 1.174-6): ac prImum sIlIcI scIntIllam excudIt Achates, / succepItque Ignem folIIs, atque arIda cIrcum / nutrImenta dedIt, rapuItque In fomIte flammam.
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Lucrécio 6.1168-1177: A Peste (1.5)
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?nt?m? p?rs h?m?n?m || v?r? fl?gr?b?t ?d ?ss?,
fl?gr?b?t st?m?ch? || fl?mm(a) ?t f?rn?c?b?s ?nt?s.
n?l ?d?? || p?ss?s cu?qu?m || l?v? t?nu?qu? m?mbr?s…………………………..1170
v?rt?r(e) ?n ?t?l?t?t(em), ?t v?nt(um) ?t || fr?g?r? s?mp?r.
?n fl?v??s || p?rt?m g?l?d?s || ?rd?nt?? m?rb?
m?mbr? d?b?nt n?d?m || i?c??nt?s c?rp?s ?n ?nd?s.
m?lt? pra?c?p?t?s || l?mph?s p?t??l?b?s ?lt?
?nc?d?r?nt, || ?ps? v?n??nt?s || ?r? p?t?nt?:……………………………………………1175
?ns?d?b?l?t?r || s?t?s ?r?d?, c?rp?r? m?rs?ns,
a?qu?b?t || m?lt?m p?rv?s || ?m?r?b?s ?mbr?m.
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A parte interna dos homens queimava até os ossos,
a chama queimava no estômago, como no interior das fornalhas.
Não poderias introduzir nada tão leve e fino nos membros……………………1170
para benefício de alguém, mas sempre vento e frio.
Parte entregava os membros, ardendo pela doença,
aos rios gelados, lançando o corpo nu nas águas.
Muitos, do alto caíram nos líquidos dos poços,
precípites, chegando lá com sua boca arreganhada.………………………………..1175
Insaciavelmente, a sede seca, envolvendo o corpo,
igualava muita chuva a poucas gotas.
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A linguagem hiperbólica, a enfatizar as dores e os efeitos da peste, é característica cristalina da passagem, como claro é o mármore de Paros. O interior que ‘queimava até os ossos’ (1168) ou a sede que ‘igualava chuva torrencial a poucas gotas’ (1177) são descrições com hipérbole, que, segundo Quintiliano (8.6.67-8), é ‘apropriado exagero da verdade’ (decens veri superiectio), servindo tanto para amplificação como para atenuação. Aqui, obviamente, amplifica o calor que sentem os contagiados. Contribui ainda para a amplificação o uso do símile (1169: ‘como no interior das fornalhas’), tropo já mencionado anteriormente. O símile é uma metáfora (cf. Aristóteles, Retórica, 3.4.1; Quintiliano 8.6.8-9), mas há comparação entre A e B: ‘o calor que se sentia no interior do corpo era como o do interior das fornalhas’. Há metáfora, porém, quando um elemento é substituído por outro (A = B): ‘o homem era a peste’ (símile: ‘o homem era como a peste’). O símile é tropo que remonta à fonte da poesia grega: Homero. São inúmeros os exemplos como a quantidade de aqueus reunidos para derrubar Troia! Assim, para ilustrar com um único e célebre passo, citamos o momento em que o aedo descreve na Ilíada o confronto entre aqueus e troianos (11.67-71), na tradução de Frederico Lourenço:
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Tal como os ceifeiros de cantos opostos do campo
vão aproximando as carreiras ceifadas de trigo ou cevada
no terreno de um homem rico e cerradas caem as paveias –
assim Troianos e Aqueus arremetiam uns contra os outros;……………………….70
e de nenhum lado surgia a lembrança da fuga ruinosa.
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Não é o caso de explorar aqui neste texto, mas o símile tem um caráter didático, muito apropriado, portanto, ao gênero praticado por Lucrécio. Ademais, é ornato que serve a adoçar com mel a borda do copo, como mencionamos em texto anterior. Assim, são abundantes também no Virgílio didático. Fiquemos com um exemplo das Geórgicas, em que há três símiles em sequência, usados para tornar mais claro o zumbido das abelhas que estão prestes a morrer (4.260-3):
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tum sonus auditur grauior tractimque susurrant,………………………………………260
frigidus ut quondam silvis immurmurat Auster,
ut mare sollicitum stridit refluentibus undis,
aestuat ut clausis rapidus fornacibus ignis.
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Então, ouve-se um som mais grave, e prolongadamente sussurram,………..260
como, por vezes, o gélido Austro murmura nos bosques,
como o mar atribulado sibila com o refluxo das ondas,
como ferve o fogo devorador em fornalhas enclausuradas.
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A passagem das Geórgicas mereceria um comentário mais detalhado, ressaltando a ordem das palavras, a sonoridade e as figuras presentes. No entanto, infelizmente não há espaço neste texto para isso. Além de ilustrar o símile, o trecho parece ser outra imitação que Virgílio faz dos versos de Lucrécio. Anteriormente, vimos na primeira passagem das Geórgicas (3.566) não haver símile, como no DRN. Agora, porém, não só há o símile, como Virgílio, ao falar de doença que pode levar as abelhas à morte, também usa a comparação com as fornalhas (263: fornacibus), penúltima palavra do verso, como em Lucrécio (1169). Some-se ainda o uso de ignis (263), última palavra do verso, como se encontra no símile lucreciano (1167). Undis (262: ‘ondas’) pode ainda, pela mesma posição, retomar o undas do DRN (1173) Em duas passagens diversas, de diferentes modos, Virgílio imita um passo da peste descrita no DRN.
Na extremidade inicial do segundo trecho do Da Natureza das Coisas (1168-9), Lucrécio dispõe cuidadosamente as palavras que fazem referência ao interior nas pontas da sequência de dois versos: intima (‘interna’), primeira palavra do verso 1168, e intus (‘interior’), última do verso seguinte, dispostas simetricamente na tradução, embora não nos extremos. Ainda neste início convém observar como o poeta, mesmo quando repete a palavra (flagrabat: ‘queimava’), consegue variá-la. Pela posição no verso – sem entrar em muitos detalhes técnicos –, vê-se que o –bat da primeira ocorrência é breve, enquanto o segundo é longo. Ademais, pela posição novamente, a tonicidade do verbo na primeira vez coincide com a tonicidade (ictus) do pé, ou seja, flagrábat; na segunda, porém, devemos pronunciar como sílabas fortes as outras duas: flágrabát. As palavras são idênticas, mas muito distintas na pronunciação, com destaque para a última em início de verso e acentuado duplamente.
A justaposição de palavras contrastantes é outra construção de destaque no trecho em análise. No verso 1172, gelidos (‘gélidos’), que caracteriza fluvios (‘rios’), está ao lado de ardentia (‘ardendo’), que por sua vez qualifica membra (1173: ‘membros’). A antítese, ressaltando o contraste entre a temperatura dos corpos e da água, é semelhante àquela usada por Horácio, na Arte Poética (464-6) – sobre esse texto, ver aqui no Estado da Arte –, ao narrar comicamente a anedota do salto de Empédocles no Etna: deus immortalis haberi / dum cupit Empedocles, ardentem frigidus Aetnam / insilvit (‘Empédocles, ao desejar ser tido como deus imortal, frio saltou no ardente Etna’). Contrastantes também são as palavras putealibus alte justapostas no fim do v. 1174, o poço e a altura de onde se jogam os homens. Há ainda aqui um jogo muito sutil entre as palavras, em que alte é um eco às avessas da parte interna de putealibus. Ao fim do trecho, há outra antítese na justaposição de multum (‘muita’), que é atributo de imbrem (‘chuva’), e parvis (‘poucas’), que caracteriza umoribus (‘gotas’). O hipérbato, portanto, aproxima termos antitéticos. Eduard Fraenkel (1950), em seu monumental comentário ao Agamêmnon de Ésquilo (ver notas aos vv. 320 e 1455), chama atenção para a particular ordem das palavras na tragédia, colocando lado a lado termos antitéticos (??? ??? ??????: ‘uma [Helena] muitas [vidas]’), e dá muitos exemplos em outras peças. Figura muito adequada a esse gênero que apresenta amiúde duas personagens em confronto.
No verso 1172, pelo homeoteleuto em –os (fluvios e gelidos), com as palavras colocadas antes das cesuras, em posições do verso em que as últimas sílabas serão tônicas (fluviós e gelidós), é possível escutar aquele som muito característico de algo fervendo em água fria. É patente também o –te repetente nos vv. 1174-5: muti praecipites lymphis putealibus alte / inciderunt, ipso venientes ore patente.
‘Caíram’! Essa palavra logo no início do v. 1175 (inciderunt), isolada, em que se seguem forte pausa sintática e a primeira cesura, é continuação do verso anterior, um enjambement. Este encavalgamento, seguido por forte pausa sintática é frequente na poesia latina e deriva já de prática grega. Lucrécio, porém, parece aproveitar de modo significativo o enjambement, fazendo a palavra ‘caíram’ cair para o verso seguinte, como os homens, precípites, do alto se lançaram nos líquidos dos poços.
‘Insaciavelmente’! Para esse advérbio enorme, ocupando todo o primeiro hemistíquio, remetemos o insaciável leitor ao nosso primeiro texto sobre a peste de Lucrécio. Ali na terceira parte (1.3, ‘Perfeitamente Intolerável’), comentamos esse tipo de advérbio no v. 1158. O uso é frequente no DRN.
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Lucrécio 6.1178-1181: A Peste (1.6)
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N?c r?qu??s || ?r?t ?ll? m?l?: || d?f?ss? i?c?b?nt
c?rp?r?. M?ss?b?t || t?c?t? m?d?c?n? t?m?r?,
qu?pp? p?t?nt?? c?m || t?t??ns ?rd?nt?? m?rb?s………………………………………1180
l?m?n? v?rs?r?nt || ?c?l?r(um) ?xp?rt?? s?mn?.
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Não havia nenhum descanso do mal: jaziam exaustos
os corpos. A medicina tartamudeava, em tácito temor,
pois, padecentes, tão frequentemente ardentes pelas doenças,
as luzes dos olhos eles reviravam, carentes de sono.
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O trecho final desta parte é repleto de pausas, não só a dupla cesura no verso inicial, mas também com duas fortes interrupções sintáticas: a primeira depois de mali (‘do mal’), que coincide com a pausa métrica, e a segunda depois de corpora (‘os corpos’), em enjambement, isolando a palavra no início do verso seguinte. Tal andamento, mais entrecortado, poderia ser visto como a imitação do cansaço, da exaustão, da dificuldade de falar e da respiração ofegante causada pela peste. Em seguida, o verbo mussabat (‘tartamudeava’), cujo –ssa ecoa defessa (‘exaustos’), faz soar o tartamudear da medicina, que não sabe o que dizer, calada em ‘tácito temor’ (tacito … timore). A dupla aliteração cruzada (mussabat medicina e tacito timore) reforça ainda o balbucio da personificada medicina, que por metonímia está no lugar dos médicos. A sequência da dental ‘t’ mais vogal que se desenvolve no verso seguinte parece ainda ‘tartamudear’: TAciTO … TImore, /… paTEnTIa cum TOTIens ardenTIa.
Repete-se ainda, pelo homeoteleuto, o som final dos atributos da palavra lumina (‘luzes’): patentia (‘padecentes’), ardentia (‘ardentes’) e expertia (‘carentes’). Na tradução, não fica claro que qualificam lumina, e não o sujeito. Totiens reforça a aliteração em /-t/ do verso anterior e amplifica pelo eco em –ti o homeoteleuto dos atributos, como evidenciado acima. A aterrorizante visão está nos próprios olhos dos doentes. Não há ‘sono’ (somno), última palavra da passagem que se abre com nec requies (‘não [havia] descanso’). Repetição da ideia com variação das palavras, que iniciam e encerram o trecho, perfaz a chamada composição em anel, construção característica desde Homero, que por vezes cochilava.
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Agradeço meus habituais leitores, Eduardo Henrik Aubert, Giselle de Carvalho e Paulo Sérgio de Vasconcellos, pelas correções e valiosas sugestões, feitas desde o primeiro texto desta nova série. Os erros que permanecem são de minha inteira responsabilidade.
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Para Saber Mais:
Para edições e comentários, ver o ‘Para Saber Mais’ no primeiro texto da série. Traduções do Da Natureza das Coisas, há tradução em prosa de Agostinho da Silva, publicada na coleção Os Pensadores, da Abril Cultural. A mais recente tradução completa é de Luís Manuel Gaspar Cerqueira, publicada em 2015, em Lisboa pela Relógio d’Água. Há uma tradução em verso do séc. XIX feita por Antônio José de Lima Leitão. Muito útil para a pesquisa, a bibliografia sobre Lucrécio, organizada por Alexander Dalzell em tópicos, com obras de 1945 até 1972, publicada em duas partes: ‘A Bibliography of Work on Lucretius, 1945-1972’, Classical World 66 (1973): 385-427 e 67 (1973): 65-112. De lá para cá, a bibliografia cresceu enormemente e há algumas recolhas on-line, como a de Gordon Lindsay Campbell para a Oxford Bibliographies, com acesso restrito: https://www.oxfordbibliographies.com/. Sobre a comparação entre Lucrécio e Virgílio, ver David West, ‘Two Plagues: Virgil, Georgics 3.478-566 and Lucretius 6.1090-1286’, in D. West and T. Woodman (edd.), Creative imitation and Latin Literature, Cambridge, 1979: 71-88; em português, Matheus Trevizam, ‘Relatos da peste em Virgílio, Geórgicas III, e Lucrécio, De Rerum Natura VI’, Humanitas 66 (2014): 167-88. Sobre a poesia didática romana, ver Matheus Trevizam, Poesia Didática: Virgílio, Ovídio e Lucrécio, Campinas: Editora da Unicamp, 2014. Para as Geórgicas de Virgílio, ver a recente reedição da tradução do poeta Odorico Mendes, com anotação e comentário do Grupo de Trabalho Odorico Mendes, organizada por Paulo Sérgio de Vasconcellos, publicada pela Ateliê Editorial (2019). Para o início do estudo de figuras e tropos, o excelente trabalho de Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, várias edições, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, tradução portuguesa de R. M. Rosado Fernandes, que acrescenta exemplos das Letras Portuguesas.
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