Philip Roth e “A Marca Humana”

Philip Roth foi o escritor americano que melhor se entregou à tarefa de escrever a América nos últimos 60 anos. Ao fazê-lo, mergulhou fundo nos dramas e nos dilemas da condição humana, da existência ora turbulenta, ora banal dos indivíduos. "A Marca Humana" é uma de suas obras máximas, nesse sentido.

por Thiago Blumenthal

Philip Roth, o escritor americano justamente celebrado como um gigante da Literatura, morreu no último dia 22 de maio. Coincidentemente, naquele dia, eu acabara de enviar aos editores do Estado da Arte este texto sobre uma de suas maiores obras, A Marca Humana, capítulo final do que se costuma denominar de “a trilogia americana”, juntamente com Pastoral Americana e Casei com um Comunista.

A Marca Humana, romance segmentado pelo olhar de Nathan Zuckerberg, se rege pelo signo do segredo. Desde o início, da primeira linha da história, descobrimos qual é esse segredo: o ex-professor e ex-decano da Universidade Athena, Coleman Silk, está tendo um caso com uma faxineira de metade da sua idade.

Isso se deu na mesma época em que veio à tona o segredo de Bill Clinton, ou seja, 1998. As intimidades trocadas ali no Salão Oval com a estagiária Monica Lewinsky explodiram em todos os jornais. Um verdadeiro escândalo.

É Zuckerman que está nos contando tudo, ele que fora vizinho de Silk por alguns anos. Zuckerman, sabemos, é o grande personagem-narrador de outros grandes romances de Roth, nove no total. Um escritor que vive à sombra de seu grande maestro intelectual, o célebre E.I. Lonoff (uma espécie de Saul Bellow), e busca em seus escritos o verdadeiro retrato judaico-americano de uma época. Como nas palavras de Isaac Babel, o autor judeu é aquele que tem o outono em seu coração e óculos sobre o nariz. Zuckerman adicionaria: e sangue por todo o pênis.

Nicole Kidman e Anthony Hopkins como Faunia Farley e Coleman Silk na adaptação cinematográfica da obra de Roth.

Contudo, Zuckerman nos faz penetrar no pensamento de todos os personagens, seja por uma espécie de discurso indireto livre, ou por uma espécie de apropriação narrativa que vai muito além do discurso indireto livre. A voz que é dada aos personagens, o acesso às camadas conscientes e mesmo inconscientes de todos os personagens, tudo isso se deve às investigações psicológicas de Zuckerman. Ele nos conta uma história cujo segredo ultrapassa o mero affair do professor Silk com a faxineira e atinge o que há de mais profundo nos Estados Unidos: a identidade estraçalhada do indivíduo.

Esse segredo, que Silk esconde por toda a sua vida, se desdobra em sua condição étnica, entre sua verdadeira origem e sua identidade judaica que passa a assumir depois de alguns anos vivendo no Village, em Nova York. É ao longo do romance que vamos desenformando esse personagem vigoroso que é Silk, tirando-o dessa forma de acadêmico, para descobrir que o homem – o homem americano – guarda mais segredos por trás de si do que podemos imaginar. O caso com Faunia Farley, a faxineira, é apenas um caso. E, como diz o título do primeiro capítulo, a partir de uma cartinha misteriosa que ele recebe, “todo mundo já sabe”. O que ninguém sabe está muito além de suas relações sexuais com quem quer que seja. Ou nas palavras de Zuckerman:

O que está por trás da anarquia da sequência de eventos, as incertezas, os infortúnios, a incoerência, as irregularidades chocantes que definem os assuntos humanos? Ninguém sabe, professora Roux. “Todo mundo sabe” é a invocação do clichê e o início da banalização da experiência, e a seriedade e o tom de autoridade que as pessoas adotam ao repetir esse clichê é o que é mais insuportável. O que sabemos é que, ao contrário do que diz o clichê, ninguém sabe nada. Não se pode saber nada. As coisas que você sabe, você não sabe. Intenção? Motivo? Consequência? Significado? É surpreendente, quantas coisas desconhecemos. Mais surpreendente ainda é o que passa por conhecimento.

Silk é um homem que, apesar de sua força física e intelectual, está estraçalhado no momento em que Zuckerman se põe a escrever sua história. Perdera o emprego há alguns anos, depois de uma série de acusações, quando ele chamou dois alunos negros de “spooks”, em um episódio para lá de puritano, pois ele estava se referindo a fantasmas (uma vez que eles nunca tinham dado as caras em suas aulas de letras clássicas), e não a negros, no significado pejorativo que a palavra, de fato, assumira no passado.

O que revela duas questões importantes: o professor vitimado pela patrulha do politicamente correto, e, mais do que isso, o distanciamento que ele, com sucesso, conseguira manter de suas origens. “Spook” não lhe atingia mais (como poderia atingir outrora, conforme o enredo vai revelando). Como um judeu que, tão distante de suas raízes e de sua cultura, não se incomoda quando lhe falam que estão a “judiar” de alguém. Ou, no caso do negro no Brasil, dizer que “a coisa está preta”.

O coração da treva humana é inexplicável, e inexplicáveis são as consequências a partir desse fato-chave na vida e na carreira de Silk. Pedira demissão, sua esposa morrera, e passando por uma de suas maiores crises nervosas em sua vida. Não tinha mais família, não tinha mais ninguém, apenas Faunia, a faxineira.

Com sua mãe e irmãos, perdera o contato, com exceção de ligações telefônicas muito eventuais. Tinha vergonha de mostrar sua origem aos filhos e à esposa, e inventava uma história de judeus que haviam todos morrido no leste europeu. Também havia perdido o contato com os filhos.

Roth gosta de tratar de homens solitários, isolados, perturbados com uma espécie de degradação mental e moral. Assim são os personagens de Bellow, sujeitos perturbados, uxoricidas, prestes a queimarem pontes e mais, queimarem mulheres. Assim também são os personagens de Roth, que passam pela vida deixando sua marca humana, nas palavras de Faunia.

Não se trata de tristeza, de melancolia, mas antes de um vazio inerente à condição humana. São as trilhas, os vestígios que deixamos, a impureza, a crueldade, excrementos, o esperma – a mesma marca de esperma que fora encontrada no vestido de Lewinsky.

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