Hoje nós do Estado da Arte propomos uma versão um pouco diferente da coluna “Poesia em Casa”, assinada pelo poeta e tradutor Pedro Gonzaga todos os domingos neste espaço. Queremos aproveitar para apresentar aos leitores da coluna um pouco do trabalho poético do próprio Pedro, que lançou neste primeiro semestre o livro Em outros tantos quartos da terra (Editora Ar do Tempo).
montanhas
esqueça os grandes gestos
as montanhas serão sempre selvagens
é no reino das pequenas coisas
que a cortesia surge e se apaga
a delicadeza do cascalho
contra a solidez da rocha
o silêncio da planta celibatária
contra a afetação das florestas
o amor do trajeto cotidiano
despercebido na viagem gloriosa
o carinho no corpo adormecido
gratuito demais para ser mensurado
suspeite do amor feito grandeza
o louvor ao tecido e não à trama
a conflagração da orquídea
contra o buquê de flores mortas
os banhos que o pijama arquiva
contra as vestes das festas longas
pois é no reino das pequenas coisas
que o amor governa senhor
de cada súdito seu diminuto
o amor sabe-se uma soma
de tantos desperdícios plenos
para que se concentre em gota
(o sal grudado no fundo do pote
o café perdido no inox da pia
a areia que a vassoura esquece
e o grão de amarelo ouro
deixado na espiga de milho)
para uns dentes que agora mordem
a parte carnuda da orelha
enquanto o dia dos amantes começa
meia-vida
a meia-vida de um isótopo do rutherfórdio
não chega a completar setenta segundos –
eis o quanto leva para se fazer mais leve
esse dissoluto elemento transurânico
agrada-me sua desconhecida serventia
algo admirável para uma coisa
semiliberta de sua massa
à leitura do último verso deste poema
nunca ser útil para além de setenta segundos
não ser a pedra da escada do hotel
o vermelho boquirroto do cobre
o metal em amante anel forjado
a transparência do oxigênio para os animais
não ficar mais pesado nunca
como coisa feito gente
coisas velhas
coisas densas
coisas em lenta
decomposição
os amantes
os amantes se recrutam em automóveis
separados ainda pelo freio de mão
em lojas de animais domésticos
diante do olhar estarrecido e estrábico
de algodoados lulus da pomerânia
os amantes se reconhecem em salas
recobertas de ferros e espelhos
sussurram enquanto grita a televisão
cegados para o mau-gosto ostensivo
das roupas que eles mesmos vestem
os amantes se declaram em supermercados
em frente aos pães morenos
em plena seção de hortifrutigranjeiros
ou por um momento refrigerados
diante de luminosos laticínios
os amantes se revelam amantes
mesmo quando não há testemunhas
ou no centro de estádios repletos
pois são flores que desde ancestrais primaveras
rasgam a aridez da superfície dos cactos
antilha
heróis não morreram em nossas praias
banha-nos apenas um caribe de publicitário azul
em nossas serras aves ornamentais gorjeiam
e não barbudos revolucionários chamejantes
ninguém virá cortar a doce cana nem traficará
os tomates esquecidos pelo plano quinquenal
cassinos aqui giram o tédio dos aposentados
não há jovens desembarcando em nossos portos
dispostos a morrer e matar e foder pelo sonho
nosso reino e coroas por um ministério do turismo
que tenha uma antilha a oferecer aos novos americanos
prêmio
quem poderá nos devolver a fé
frustrada a manhã do terceiro dia
que máquina de razão e vapor
será capaz de nos dar a cegueira
ao obsceno brilho do real
disseram – ter certezas é dogmatismo
mas queriam a fidelidade
disseram – a nova partícula explicará
o segredo do existirmos
entre as paredes de um moderno acelerador
quando o que queríamos era outra vez
a mesma fé esférica e integral
densa e veloz noite de negros sonhos
quando o que queríamos era acreditar
mais uma vez no amor perdido
sem os pactos frios e legais
de uma conferência de nações
sem a cortesia calculada do sexo
saudosos da antiga religião
reduzida a uma química eucaristia
pois como não perceber –
tudo escolhemos às escuras
como não considerar
a genuína alegria atrás do acerto
que operamos porque operamos
a vida não mais que um obscuro corredor
que agora desapiedados nos oferecem
como uma solução feita de luz
quando não fora isso o que pedíramos
quando desejávamos que ao nosso lado
a pessoa recém-desperta fosse feita
apenas uma última vez
de matéria carnal e etérea
que voltasse a ser a prova de um prêmio
que nada fizéramos para merecer