Poesia em Casa – A experiência fiel

De todas as produções artísticas humanas, a poesia é a que mais se parece com a capacidade múltipla de nossa consciência.

por Pedro Gonzaga

Um dos grandes poetas do século passado, Seamus Heaney, em seu discurso ao receber o Nobel de Literatura, referindo-se à potência da poesia de tornar um instante do passado um instante do presente, disse em agradecimento:

“Devo à poesia a possibilidade de caminhar por esse espaço. Dou-lhe crédito pensando em uma frase que escrevi recentemente para me valorar (e a alguém mais que estive escutando), caminhei em pleno ar, apesar de qualquer juízo. Mas o reivindico finalmente porque só a poesia pode criar uma ordem verdadeira sobre o impacto externo da realidade, e sensível às leis internas do próprio poeta, assim como as oscilações da superfície da água dentro do balde em nossa despensa cinquenta anos atrás. Me refiro a uma ordem onde conseguimos crescer e alcançar tudo aquilo a que nos propusemos. Uma ordem que satisfaz todos os apetites da inteligência aderindo-lhe os afetos. Em outras palavras, agradeço à poesia por ser ela mesma e por ser uma ajuda, por tornar possível o fluido restaurador que relaciona o centro da mente à sua circunferência, o menino que escutava a palavra Estocolmo pelas ondas do rádio, com o homem que hoje está frente a vocês em Estocolmo, neste momento privilegiado. Agradeço à poesia porque a ela se deve gratidão em nossa época e em todos os tempos, por sua fidelidade à vida, em todo o sentido inerente a essa frase.”

“The Throes of Creation”, de Leonid Pasternak

A fidelidade da experiência. Não seria esta uma das grandes buscas humanas? Essencialmente apegados ao passado, lutamos sempre para reconstituir o que foi por meio de um discurso instável. O esforço racional da ordem, que encontra no relato seu meio de confiança, a força indomável dos afetos, que descrê de tudo que não seja sincrônico. Ao tentarmos fixar a experiência, deparamo-nos com alguma forma de traição. Exceto na poesia. Por uma questão, me parece, de fundo temporal, a água do balde que ainda oscila ao homenageado em Estocolmo, apenas no poema encontraria seu movimento. Em outra de minhas colunas aqui no Estado da Arte, já apontei para o poema como um ato presencial, que nunca deixa de ser atualizado, seja como imagem construída pelo poeta, seja como imagem reconstituída pelo leitor. De todas as produções artísticas humanas, é a que mais se parece com a capacidade múltipla de nossa consciência: estamos aqui, o passado nos chega, o futuro nos provoca, sentimos o corpo, lembramos da pele, cogitamos universos, combatemos as dores, refazemos tantos cálculos, sonhamos com o que está além. Uma ordem que satisfaz todos os apetites da inteligência aderindo-lhe os afetos, afirma, Heaney. A pintura nos ilude os olhos; a música, os ouvidos; a dança, o corpo; a prosa, a razão. Apenas a poesia reúne todas as artes em si mesma, baralhando-nos, com fidelidade, o estar dentro e fora do mundo.

Álvaro de Campos, em Aniversário, apresenta à perfeição, ao reconstituir suas experiências como matéria presencial e sensível (e assim nossas experiências), o que aqui tentei apontar. Meu fracasso é, preso à pálida razão argumentativa, mais certo, uma prova de sucesso

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes…

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa.

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim…

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

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