por Pedro Gonzaga
Lancei ontem, em Porto Alegre, meu terceiro livro de poesia, Em outros tantos quartos da Terra. O anterior, Falso começo, publicado em 2013, já leva quase quatro anos de distância, o que pode dar uma ideia aos leitores da quantidade de material bruto que eu tinha para selecionar. A escrita da poesia, em circunstâncias normais, e para uma boa parte de poetas, é um trabalho episódico, mais ou menos frequente, o poema se insinua, cabendo a quem o compõe prendê-lo, dar-lhe forma, para depois, a pior parte, ao menos para mim, esperar que ele cresça, quando só então se lhe pode aparar os excessos, como em qualquer arte de miniaturização. Esta luta, entre a criatura rebelde em seu confinamento e o burocrata catalogador, ocupado em conferir sentido e unidade ao seu bestiário, é a essência da atividade poética.
Passando solene por entre cerca de 200 seres expectantes, eu sei que pouco mais de cinquenta podem ser salvos. Alguns sucumbirão por serem perturbadoramemte parecidos, outros porque o poeta mudou, porque o mundo mudou, porque intenções antes claras se apagaram sem alarde durante a espera da publicação. Mas há sempre uns vinte ou trinta poemas que chegaram bem perto, que, na última hora foram vítimas de alguma implicância por carregar um verso insolúvel, uma palavra aftosa, uma ou outra imagem inconveniente aos caprichos de meu gosto. E haverá também as vítimas do esquecimento em algum arquivo não coletado, em alguma publicação nas redes e que não foi devidamente arquivada. São os injustiçados, mas disso todos nós entendemos bem. Aquilo que sobra, talvez fosse um bom nome para uma coletânea. Por ora, deixo vocês com este que sobrou. Não me perguntem por quê.
os lados da quadra
há muitos anos trabalho numa rua sem saída
cujo fundo é o portão dos fundos de um hospital
e ninguém demora a descobrir o que sai por ali
não poucas vezes vi aqueles carros sem janelas
agourentos e mudos como gordas aves de rapina
a manobrar sem pressa em nossa garagem
tornando o ar mais frio e úmido ao partirem
na outro lado da enorme quadra
abre-se vaticana a fachada do sistema hospitalar
cafeterias e farmácias prometem a ressurreição
há caixas eletrônicos porque o mundo segue em revoada
médicos e médicas ostentam plumagens brancas
enfermeiros e enfermeiras passam barulhentos e azuis
pouca coisa se move na rua onde trabalho
e o que se move na morgue viaja em silêncio
entre árvores verdes que tudo limpam
um tipo límpido de silêncio
que se alastrar como somente em certos enterros
no instante antes da terra receber o baque do caixão