por Pedro Gonzaga
Então você sabe que está numa livraria.
Em um desses diálogos que a alma trava consigo mesma, escuto a frase acima. E minha alma, avessa a papelarias e magazines disfarçados, não diz isso em qualquer lugar. Ela precisa de prateleiras em que se acotovelem volumes e volumes de livros não repetidos, de um espaço em que não haja pilhas nem pirâmides de um só lançamento, mas sim seções inteiras de artes raras como a poesia. Pobre alma peregrina, já consideram, talvez, as outras almas que chegam neste domingo ao Estado da Arte. E uso a palavra alma com uma conotação transcendental, não espiritual ou religiosa, necessariamente. Consciência sempre soa para mim como uma alma diminuída, da qual se tivessem extraído todo o sopro e toda a luz, que não aquela oriunda dos elétricos neurônios.
Então você sabe que está numa livraria. Por fruto da chance. Paralelo ao Passeig de Gràcia, no Carrer de Pau Claris, fica a Laie, com sua quase obsoleta crença de que um negócio como este se faz com livros. Avanço pelas prateleiras. Uma parede só para poesia. Venço os dois segmentos de versos em catalão, quem sabe em outra vida, outros dois segmentos de poesia em espanhol, que me tomam boa meia hora, e chego na poesia em tradução. Um espaço público de escrita é muitas vezes uma oportunidade de cambiar confissões ou obsessões. Tenho especial predileção por edições bilíngues. E nem importa que não entenda o idioma original. Agrada-me a fé humana nas palavras que esses trabalhos guardam. Passamos os dias a descrer do poder das palavras, gastando-as, malgastando-as, simpósios e colóquios sobre a impossibilidade da comunicação e ali está um poema que venceu tudo isso, apesar de suas inevitáveis perdas, traduzido ao lado, com tudo aquilo que a tradução por ofício sonega, e, ainda assim, duas almas estão ligadas pelo esforço de dar sentido a este estarmos no mundo sem saber por que da existência humana, e que logo se unirão a uma terceira alma, que em seu idioma de leitor converte mais uma vez essas palavras em alguma coisa que é imagem, som e experiência. Claro, o efeito é muito mais poderoso quando as duas línguas nos são conhecidas. Por isso, gosto muito de comprar livros de poesia em inglês acompanhados da versão em espanhol, que soma à alegria de encontrar poetas cujas obras desconhecemos. Por estranho que soe aos leitores de prosa, que contam com um mercado bem mais estabelecido, há grandes autores de poesia que mal são conhecidos em seus próprios países.
O livro me atraiu primeiramente pela ilustração da capa, um retrato de um homem de óculos feito por um dos meus pintores favoritos, Alex Katz. Com a ajuda do celular, descobri que era o retrato do poeta, e que os dois tinham sido amigos. Nem precisei folhear a obra para saber que era o fino. De volta à casa da minha irmã, que há anos vive em Barcelona, comecei a conhecer os versos de Kenneth Koch. Conquistou-me seu humor, a aparente franqueza, a erudição a serviço do leitor e não contra ele. Seu estilo é o que, muitas vezes, erroneamente, classificam de prosaico. A ausência de metro fixo e de um padrão de rimas, a extensão às vezes larga de um verso, a coloquialidade, podem até assemelhar o verso a uma frase em prosa, mas o poético conhece outros recursos que operam sob uma aparente ausência de forma lírica, ao menos no sentido clássico. Prosaico, para mim, é, antes de tudo um tom, que transforma a narrativa em estratégia central da poética, e não penso ser este o caso aqui. Basta repararmos no inteligentíssimo corte dos versos. Deixo a vocês a avaliação. Queria mesmo era dividir esta descoberta. E, pela primeira vez em Poesia em casa, faço-a de modo bilíngue.
Não custa acrescentar que ao terminar esta coluna descobri que o jornal Rascunho, num excelente trabalho de André Aubert, já havia traduzido alguns poemas do Koch, inclusive este, chamado Ulla, o que vem a ampliar ainda mais a nossa crença no diálogo das versões.
Ulla
I followed the young woman — Ulla, was that her name?
Down the hallway — what a strange destiny it is
To be so beautiful! I followed
And that was all I was doing — following. It was not a Civil War
Thank goodness! not even something I had to work on
And as some would follow a matador and others a thrilling soprano
I walked on after this Ulla down the hall
To a light and airy room. She said, This is your chamber.
You will stay here tonight, and, then, tomorrow morning
We will change you to another one, which is a little bit more comfortable than this.
I’m perfectly happy with this room, I said. I thought,
Today I’ve seen Ulla. Is that enough? But, well,
Yes, now, could you show me the other
Where tomorrow I may be lodging. The rooms are national.
Ulla is one part of what is real. She says, yes,
Please follow me. On the walls are designs of roses and of fleurs-de-lys.
Ulla — Kenneth Koch
Segui a jovem – Ulla, era esse o nome dela?
Pelo corredor – que estranho destino é
Ser tão linda! Eu a segui
E isso era tudo o que fazia – seguir. Não era uma Guerra Civl
Graças a deus! nem sequer algo que me exigisse trabalho
E assim como alguns seguiriam um matador e outros uma comovente soprano
Avancei atrás desta Ulla pelo corredor
Até um aposento arejado e luminoso. Ela disse, Este é seu quarto.
Você ficará aqui esta noite, e, depois, amanhã de manhã
Transferiremos você para outro, que é um pouquinho mais confortável que este.
Estou plenamente satisfeito com este quarto, eu disse. Pensei,
Hoje eu vi Ulla. Não será o suficiente? Mas, bem,
Será que você poderia, agora, me mostrar
O quarto em que me alojarei amanhã. Os quartos são nacionais.
Ulla é uma parte do que é real. Ela diz, sim,
Por favor, me siga. Nas paredes há desenhos de rosas e flores de lis.