Poesia em Casa – ‘Eros, o agridoce’, de Anne Carson

Pedro Gonzaga escreve sobre a escritora e classicista canadense Anne Carson e seu livro 'Eros, o agridoce'.
Anne Carson, por Robby-Campbell.

por Pedro Gonzaga

O amor “sugou todo meu escuro sangue”, asseverou Teócrito, roubou “de meu peito o suave sentido” e “trespassou-me até os ossos em ferozes dores”, escreveu Arquíloco. Eis apenas dois dos exemplos tomados da lírica grega clássica e utilizados pela grande poeta canadense Anne Carson na busca por definir a tortuosidade, o caráter duplo do sentimento erótico ao longo dos séculos. Dotada de uma erudição robusta e ao mesmo tempo suave (aquele raro tom que mesmeriza o leitor sem excluí-lo), Carson vai da filosofia à literatura moderna, da psicanálise à história, com o intuito de esmiuçar essa experiência humana que se revela una apenas em sua duplicidade.

Em Eros, o agridoce, sem tradução ainda para o português, Safo representa um papel central, como aquela que primeiro enxergou o papel doce e amargo do amor erótico como uma estrutura tripartite: amante, amado e o espaço que os medeia, composto de distância e desejo, o que faz com que seja impossível para o amante “ter o que deseja, pois tão logo o possui, já não o deseja”. Safo criou assim uma tradição que fez do amor erótico um encanto fugaz e precário, encerrado em geral pelo vazio amargo deixado pela ausência de eros, uma visão que passará por Catulo em Roma (odeio e amo), pelos trovadores (com seu jogo de sofrimento pela dama a um só tempo má e valorosa), pelos renascentistas, por Camões (a meu gosto o maior poeta do amor no ocidente moderno), pelos barrocos do século de ouro espanhol, pelos românticos até os modernos (e aqui me ocorre o amor amaro de nosso Drummond).

Em uma percepção genial, Carson reduz os elementos do triângulo a suas funções sintático-gramaticais: Quem deseja é o sujeito; a pessoa desejada, o objeto; eros, um verbo, um movimento, que faz unir amante e amado, mas que, assim que os une, desaparece. Dois substantivos aproximados por um terceiro elemento feito de fantasia, depois movimento, depois consumição. O próprio tema da fuga do objeto de desejo, tão caro à cultura greco-latina (Dafne fugindo de Apolo, Prosérpina de Plutão) não é mais que tentativa de captar a própria força erótica que deixa de existir ao toque dos corpos, vertida em realização e anulação (as estátuas de Bernini alcançam o milagre de nos fazer enxergar este instante impossível de manter senão como congelamento).

Os capítulos curtos de Eros, o agridoce vão, sequencialmente, desdobrando novos aspectos do assunto, criando uma verdadeira poética do desejo, com tanta profundidade que cada parágrafo pede uma pausa reflexiva, em que as experiências do próprio leitor parecem ser revisitadas e escrutinadas: o tormento da posse, a carência de não ter em mim o que já parecia parte integrante de mim mesmo, o conhecimento dos limites do mundo a partir da radical experiência de perdas e ganhos do erotismo.

Fiel, no entanto, ao espaço desta coluna, em geral voltado à poesia, termino convocando um editor de coragem a oferecer o prazer deste livro aos leitores brasileiros e traduzindo, da versão de Anne Carson, o poema de Safo que lança luz sobre o vigor do terceiro elemento, fundamental para eros, pois cria a distância que permite à poeta voltar a enxergar a amante com a ilusão da distância inicial, distância do amor em que encontramos a nós mesmos. Na sequência agrego, para encerrar, um soneto de Drummond que umas tantas vezes me veio à cabeça durante essa jornada.

Safo — Fragmento 31

Parece-me igual aos deuses aquele homem
sentado à tua frente
e que escuta de perto
as coisas doces que dizes

e enquanto ris graciosamente — ah, isso
faz meu coração disparar dentro do peito
pois, se te olho, mesmo por um momento,
minha voz não me obedece,

minha língua se volve rota,
um suave fogo corre sob minha pele,
nada vejo com meus olhos,
zumbem-me os ouvidos,

E brota de mim um suor gelado, um tremor se apodera
de todo meu corpo,
fico mais verde que a relva
e a ponto de morrer — ou quase
vejo a mim mesma.

Destruição — Carlos Drummond de Andrade

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

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