por Pedro Gonzaga
Saber português é um privilégio para um leitor de poesia no século XX, a língua em que escreveram Drummond, Bandeira, Pessoa, entre tantos outros gigantes que o espaço da coluna injustiça, privilégio que lamento não ter em mais dois idiomas, o grego de Kaváfis e Séferis, e o polonês de uma constelação que vai Milosz a Szymborska, de Herbert a Anna Swir, passando por Tadeusz Rosewicz até chegar a Adam Zagajewski, que acaba de receber o renomado prêmio Príncipe das Astúrias por sua obra, e que hoje quero apresentar a vocês.
E nem que seja em segunda mão. Graças às traduções para o inglês se pode conhecê-los, e vocês que frequentam nosso espaço sabem que acredito ser viável alcançar alguma coisa do poema, por mais versões que ele tenha de enfrentar.
Nos dois poemas que escolhi verter estão características marcantes do estilo de Zagajewski: a agudeza das percepções humanas, com todos os sedimentos que os traumas do século passado foram acumulando, e um excelente trânsito entre os registros prosaico e poético. Há anos defendo que não há poema prosaico justamente por obras como esta: o que parece prosaico logo encontra um desvio lírico, por vezes pouco perceptível, mas que é essencial nas práticas da modernidade artística. É o arco-íris na poça do poema abaixo, são os sombrios veludos do poema a seguir.
Os pequenos desvios. Diante das destruições engendradas pelas grandes potências, pelos grandes ditadores, estes milagres em pequeníssima escala talvez sejam os únicos possíveis.
“Arco-íris”
Retornei à Rua Longa com seu negro
halo de poluição incrustada – e à Rua Karmelicka
onde bêbados de faces azuis esperam
o fim do mundo em delirium tremens
feito os anacoretas de Antioquia, e onde
bondes tremem pelo excesso de tempo,
e à minha juventude, que não quis
esperar e não sobreviveu, vítima de longos
afogos e estritas vigílias, voltei a
ruelas sombrias e aos sebos,
a conspirações capazes de ocultar
afetos e traições, à preguiça,
aos livros, ao tédio, ao esquecimento, ao chá,
à morte, que levou tantos
e não devolveu ninguém,
a Kazimierz, bairro vacante,
vazio mesmo de lamentação,
a uma cidade de chuva, ratos e lixo,
à infância, que se evaporou
como uma poça brilhante com um arco-íris de gasolina,
à universidade, que ainda tenta desairosamente
seduzir uma nova geração de ingênuos,
a uma cidade que agora vende
até os próprios muros, desde que vendeu
sua fidelidade e honra há tanto tempo, a uma cidade
a que amo desconfiadamente
e a qual nada posso oferecer
senão o que já esqueci e o que me lembro
senão um poema, senão a vida.
“A professora de dicção se aposenta da escola de teatro”
Alta, tímida, digna
de uma maneira antiquada,
Ela dá adeus aos estudantes, à faculdade,
e olha ao redor com suspeição.
Ela tem certeza de que eles mutilarão a língua mãe
impiedosa e impunemente.
Ela apanha o certificado (verificará
os erros depois). Dá meia-volta e desaparece na coxia,
nas sombras aveludadas dos holofotes,
em silêncio.
Ficamos sozinhos
a retorcer línguas e lábios.