por Pedro Gonzaga
Gosto de pensar que o tempo trai nossas intenções e feitos com mais frequência do que os possíveis desvios morais, do que os pequenos deslizes éticos que tenhamos cometido, em especial no que significa ser justo com alguém, porque boa parte das ingratidões, dos louros tomados à mão grande, se constrói pela distância dos anos, que nos facilita o papel de protagonistas de nossa própria (e quase sempre modesta) aventura. Assim diminuímos aos outros, emprestamo-lhes ações forjadas para nos permitir algum brilho, algum raciocínio capaz de fazer vingar a ideia de que vimos as coisas antes, senão antes, mais e melhor. Se vos serve de consolo, pecaminosos leitores, eu professo meus dolos à espera de remissão: diminuí professores que me desagradavam, desdenhei de meus contemporâneos de escrita em seus bons acertos, deixei o tempo filtrar com o seu quê de esquecimento seletivo e fantasia redentora os gestos de amor nos amores perdidos.
Por isso, me parece, somente a verdadeira amizade, copiosa em seu amor benigno, desconhece essa injustiça do tempo, porque são os amigos criaturas que já nos fazem melhores do que somos dentro do próprio tempo. Um amigo é para o outro, mesmo que não o seja, sempre um Sancho Pança. Como naquela leitura dos Evangelhos que aponta o amor de Judas por Cristo, um amor capaz de fazer o que era preciso para que o outro fosse o Messias.
Com bem menos drama, na última quarta-feira, o meu amigo de há décadas, editor aqui do Estado da Arte, Eduardo Wolf, me escreveu dizendo, tu precisa traduzir este poema do Brodsky do inglês, Pedrão. Vejam, ele poderia serenamente fazê-lo, mas estava a dizer, tu é um baita tradutor, e isso dentro do tempo, sem ter de me obrigar a um papel vaidoso ou, no mínimo, exagerado, equivocado e injusto. Como agradecimento, por ser nesta semana o maior tradutor nesta casa, eis o poema:
Sobre o amor
Acordei duas vezes nesta noite e perambulei
até a janela. E as luzes na rua abaixo,
como pontos pálidos e omissos, tentavam completar
os pedaços de uma frase falada em meio ao
sono, mas também foram engolidas pela escuridão.
Sonhei que você estava grávida, e apesar
de termos vivido tantos anos apartados
eu ainda sentia culpa e minha palma encorajada
acariciava sua barriga enquanto, ao lado da cama,
atabalhoadamente buscava por minhas calças e
pelo comutador de luz na parede. E com a lâmpada ligada
eu sabia que deixava você sozinha
ali, na escuridão, no sonho, onde, com calma,
você esperaria pelo meu retorno,
sem tentar me censurar ou repreender
pelo hiato antinatural. Porque
a escuridão recupera o que a luz não pode reparar.
Lá nós éramos casados, abençoados, mais uma vez nos
volvíamos nas feras reclinadas e as crianças eram a justa
desculpa para o fato de nossa nudez.
Em alguma noite futura você voltará a aparecer.
Chegará até mim, agora esgotada e magra, depois
das coisas entre as coisas, e verei um filho ou uma filha
ainda sem nome. Desta vez conterei
minha mão em sua busca pelo comutador, temeroso
e sentindo que não tenho nenhum direito
de deixar vocês como sombras por detrás daqueles
arames farpados dos dias que bloqueiam sua visão,
sem voz, renegados pela luz real
que me mantém para sempre inalcançável.