Poesia em Casa – O português oriental

Trata-se de um poeta português sem passaporte, disse-me o meu editor Alfredo Aquino, leu teu livro e quer te conhecer. E assim entramos na cafeteria do Bom Fim na qual Paulo José Miranda nos esperava...

por Pedro Gonzaga

Trata-se de um poeta português sem passaporte, disse-me o meu editor Alfredo Aquino, leu teu livro e quer te conhecer. E assim entramos na cafeteria do Bom Fim na qual Paulo José Miranda nos esperava, uns óculos com lentes fotocromáticas estranhamente ativas na penumbra, uma cerveja na mão. Eu estreava na poesia, e apesar dos anos de amizade que ali começavam, não creio nunca ter-lhe agradecido o texto de apresentação que escreveu para o meu A última temporada. Na verdade, nossos assuntos são quase sempre os poetas da dinastia Tang, ou um dos grandes escritores brasileiros vivos, infelizmente pouco frequentado, Aldyr Garcia Schlee.

O escritor português Paulo José de Miranda, vencedor do primeiro prêmio José Saramago

Em nosso último encontro em Curitiba (creio que ele agora tinha documentos), o Paulo me passou o que era então seu livro recém-lançado, um romance soberbo, de uma ousadia rara nos dias de hoje, chamado A máquina do mundo – da editora Abysmo, cujo trabalho gráfico é invejável -, que por azar não temos como encontrar aqui no Brasil. 

Paulo José Miranda é um desses raros casos de autor que não nos permite escolher qual gênero pratica melhor. Em prosa, já venceu o prestigioso prêmio José Saramago; na poesia, sua voz está entre as mais interessantes, a meu gosto, da atualidade.

E como esta é uma coluna dedicada (por anacrônica é inexplicável licença dos editores) à poesia, gostaria de apresentar aos leitores brasileiros três poemas que estão em Exercícios de humano, sua obra mais recente. Eivados da principal matéria da poesia que é o estar no mundo sendo essa coisa a que nominamos humano, cada exercício celebra (ou lamenta) a experiência cotidiana, pesada e sopesada por passados e futuros intangíveis, a melhor maneira dos poetas chineses do século VIII.

Exercício 3 

quando o silêncio se equipara ao volume das águas da casa
à agitação dos peixes junto às colinas de rochas no aquário maior um verso sobe pelos escombros do homem e respira 

nesse tempo de nada e de ninguém instante onde a palavra cria todas as coisas 

Exercício 13 

um quase nada de pó chega
para provar a vulnerabilidade dos olhos 

e é também por aí
que deixamos entrar o inimigo 

Exercício 34 

sol e pássaros pela manhã e nenhuma dor no horizonte 

e o sentido da vida estilhaça em milhões de imagens lembranças futuras e passadas
de um inequívoco como é bom estar aqui 

não fôssemos nós este rio poluído
este corpo a caminho de um pó imprestável só haveria alegria
palavras sons imagens
e os animais que nos visitam 

depois passa na rua a filha da vizinha
jovem e bela e luminosa como um milagre precioso só para que eu acabe de vez com o poema

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