por Pedro Gonzaga
Anos atrás, em outra vida de escrita, fui tradutor. Trabalhei para a L&PM vertendo os autores mais variados do inglês, de Conan Doyle a Charles Darwin. Por alguma razão, no entanto, que ainda não pude descobrir (espero que não por suposições biográficas), tornei-me, na editora, o tradutor oficial de Charles Bukowski. Eu havia convivido literariamente com o velho safado, como muitos leitores, na minha adolescência e mocidade, e guardava por ele o afeto que votamos aos autores que nos formaram, independente de suas qualidades estéticas.
A primeira coisa que descobri foi que sua prosa em inglês não era tão descuidada como aparecia nas traduções dos anos 80, talvez influenciadas pelo clima de desbunde daqueles tempos frenéticos. Tratava-se, antes, de um estilo direto e econômico, que lembrava o dos realistas americanos, Hemingway (mais do que Bukowski gostaria de admitir) e Fante (uma espécie de herói literário e pessoal). À época, por curiosidade, e por tantas referências em suas histórias às leituras de poesia que ele fazia em faculdades e bares obscuros, fui atrás de seus versos. Encomendei dois livros que para mim, hoje, estão entre os melhores que escreveu: Love is a dog from hell e The days runaway like wild horses over the hills. Durante algum tempo defendi sozinho que o verdadeiro Bukowski era este, o da lírica.
Ele mesmo secundaria tal opinião. Começou a escrever em prosa por dinheiro, e creio que veio a gostar. Mas como é comum aos poetas, o excesso verbal lhe fazia afrouxar a tensão da linha, parecia não ser afeito às maratonas dos romances. Criticamente, é possível notar as oscilações de qualidade em suas narrativas, não poucas vezes mascaradas sob a personagem do velho safado e beberrão. Na poesia é diferente. A ironia, o sarcasmo, a ternura, a solidão, o amor, a ferida existencial que estão nos seus grandes momentos brilham com uma nitidez quase cegante. O lado sujo, marginal e violento (que tanto agrada aos jovens de todas as idades) continua lá, mas não há um esforço para fazer disso um assunto, ou melhor, o assunto principal. Seus poemas guardam um equilíbrio difícil entre sonoridade, precisão, domínio do tema e força das imagens, como nos grandes líricos e esta força destrutiva que tende a baratear todo o resto. Administrada, no entanto, gera instantes do mais profundo lirismo.
E então finalmente me foi dada a chance de traduzir Love is a dog from hell, que acabou sendo O amor é um cão dos diabos, tentei ao máximo manter em português o tom franco do original. O português é uma língua mais macia que o inglês, e me perdoem os linguistas por tal definição. Mas é isso. É preciso um pouco mais de espaço para as almofadas de nosso idioma. O inglês suporta bem a economia. Aqui temos de fazer a economia soar coerente para não parecer apenas tosca.
Descontados os erros inerentes ao ofício dos tradutores, quase sempre de leitura e interpretação, é um trabalho do qual me orgulho até hoje. A esta altura também, já é hora de revelar que a missão da coluna de hoje era apresentar aos leitores, para além do preconceito, um dos grandes poetas, a meu gosto, da segunda metade do século XX. Deixo com vocês uma tradução que fiz há bastante tempo.
Confissão
à espera da morte
como um gato
que saltará sobre a
cama
sinto terrivelmente por
minha esposa
ela verá este
corpo
duro e
branco
vai sacudi-lo uma vez, depois
quem sabe
outra:
“Hank!”
Hank não
responderá.
não é minha morte o que
me preocupa, é minha mulher
abandonada com este
monte de
nada.
quero
no entanto
que ela saiba
que todas as noites
dormindo
ao seu lado
que mesmo as discussões
inúteis
sempre foram esplêndidas
e que as palavras
difíceis
que sempre temi
dizer
podem agora ser ditas:
eu te
amo.