Poesia em Casa – Os mais belos tijolos

Quantas vezes, me pergunto, um poema precisará ser lido antes de começar a revelar seus secretos encantos?

por Pedro Gonzaga

Quantas vezes, me pergunto, um poema precisará ser lido antes de começar a revelar seus secretos encantos? Em sua experiência radical de forma e conteúdo (e não uso radical aqui no sentido modernista, um soneto de Dante ou Camões nunca perdem sua impactante novidade), um poema quase sempre esconde o poder das palavras que o compõem. Redigo. A palavra no poema ganha um aspecto de tijolo, pois é ritmo e sonoridade para a forma, peça e suporte da expressão para o conteúdo. A busca por novos usos, por novos tijolos (neologismos), sem dúvida consegue chamar atenção para o papel essencial da palavra, mas ao colocá-la em primeiro plano, nada mais faz do que expor uma parede de tijolos à vista. Ou seja, mesmo nesses casos, não se chega ainda à essência do tijolo.

O grande crítico e poeta espanhol Dámaso Alonso, há tanto sonegado dos currículos das faculdades e também das livrarias, foi um verdadeiro mestre neste trabalho investigativo conhecido por leitura estilística. Ter em mãos suas análises de mestres como Garcilaso ou Góngora é chegar a essa região dos secretos encantos, é habitar aquilo que Drummond com gênio chamou, em Procura da poesia, de “reino das palavras”.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Creio que há leitores inspirados que chegam mais rápido a essa essência atômica do poema. Para mim só funcionou até hoje por revelação após cem leituras. Talvez seja uma deficiência ou característica de alguns leitores, entre os quais me incluo, que veem ou o todo, ou a parte, mas não a parte no todo, ou o todo na parte. Enfim, queria apenas revelar aqui meu momento alonsiano, quando, em meio a uma aula, cheguei à aspereza granulada e laranja do imo do tijolo. Foi lendo um Bandeira, tantas vezes repassado em forma e conteúdo, mas ainda inalcançado por mim em sua máxima riqueza. Era Momento num café.

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Quantas vezes podemos ler essa obra-prima? Deem-nos as divindades uma vida longeva para muitos e futuros retornos. Naquela ocasião, e devo ter parecido ridículo aos alunos, consegui ver – e se lhes parecer óbvio o que segue, tenham a piedade daqueles jovens que acham que os professores estão sempre viajando – o tijolo. Trata-se de um advérbio que o Bandeira usa no segundo verso da segunda estrofe do poema: longamente. Depois que seu duplo no poema se revela isolado dos outros – ele é aquele que já intuía, e logo saberá que a “a vida é uma agitação feroz e sem finalidade” – esse duplo se pega olhando, com vagar, para o caixão que passa. Bandeira escolheu para determinar o modo de olhar a palavra “longamente”. Diz o verso: “olhando o esquife longamente”. Agora reparem. Não é apenas um advérbio. E que se aflijam os gramáticos, porque Bandeira lhes oferece um ornitorrinco verbal, um adjetivo oculto atrás de longamente, pois a palavra também revela a forma longa do esquife. E não bastasse, também é uma ocorrência adverbial de tempo, a duração do olhar para o esquife. Movimento do olhar, aparência do que se olha, duração com que se olha. Tudo atrás de uma palavra que também se estende mais do que em seu uso normal pela conversão do adjetivo em advérbio pelo acréscimo da terminação “mente”. Longamente.

Mas que belo tijolo.

Que belo.

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