por Pedro Gonzaga
Durante um ano percorri escolas da rede pública do interior do Rio Grande do Sul, a convite do SESC, num projeto chamado “Mais Leitura”, com a missão de falar sobre poesia para os anos finais do ensino fundamental, além de lhes apresentar os grandes poetas brasileiros.
Acostumado ao descaso quase universal votado à lírica, imaginei-me numa daquelas situações (tantas vezes vivida como professor de latim) em que todos gostariam de sair correndo, se pudessem, professor e alunos.
O resultado, no entanto, foi justamente o contrário de um pesadelo, e quero crer que muito mais pela ideia de poesia que defendi a eles do que por eventuais capacidades retóricas ou mesmo mérito individual. Há anos considero a abordagem nas escolas, com honrosas exceções, um desserviço à formação de leitores, mais ainda de leitores líricos. Quando há espaço nos currículos para literatura, o que já é raro (o fato de o ENEM não ter uma lista de leituras obrigatórias é um crime), faz-se apenas a apresentação dos poetas românticos, talvez dos parnasianos, de modo irrefletido, mal chegando aos modernos, quando na verdade é por esses que se deveria começar.
E não suponham uma visão avessa à história. É somente uma inversão cronológica, apresentar antes poemas modernos e acessíveis, como “No meio do caminho”, de Drummond, “O bicho”, de Bandeira, “A rosa de Hiroshima”, do Vinicius, por serem diretos em sua expressão e conteúdo, compreensíveis na primeira camada (e como foi recompensador apresentar a uma plateia atenta uma segunda ou terceira camadas) para só depois apresentar os elementos formais, rima e ritmo, os recursos sonoros e imagens comuns à lírica, mais presentes na poesia tradicional. E até esses elementos, por contraditório que pareça, aparecem bem mais claros e de fácil apreensão no calculado despojamento dos mestres de 30: a dificuldade formal da leitura de “No meio do caminho”, com a pedra posta como um empecilho à oralidade:
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
Ou a percepção da palavra justa em “O bicho”, quando se convoca os alunos a encontrar alguma palavra que substitua “detritos”, com seu “i” pungente:
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Ou ainda a beleza da aliteração nos versos decisivos de “A rosa de Hiroshima”, os erres repetidos a fim de mostrar a corrosiva ação humana sobre a natureza:
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Somente depois disso, me parece, há espaço para mergulhar no passado, nas riquezas da composição clássica, com seus decassílabos, redondilhas rimas toantes e consoantes, estrofes padronizadas. Sem esforço, em muitas escolas, declamaram juntos comigo passagens de “I-Juca Pirama”, até que encerramos com Camões. Na verdade, trata-se de aproximar os futuros leitores da experiência de ler o verso, essa contrafrase, como quer Jean Cohen. E quando os jovens percebem a sonoridade da poesia formal, é natural que percebam que estão acostumados a ouvi-la nas letras das canções, o que termina por expor uma obviedade: os alunos são capazes de fazer, eles mesmos, as relações tão incensadas pela pedagogia. Ao professor cabe apenas oferecer os elementos que lhes eram desconhecidos para que se tornem fundamentos libertadores, parte de uma nova síntese, por que não, poética, no maior sentido do termo.