por Juliana Albuquerque
Harold Bloom, em seu livro sobre o cânone ocidental, descreve Goethe como uma das vozes mais potentes da nossa literatura. De fato, poucos gênios literários tiveram uma vida tão produtiva. Entre poesia, romance, desenho, estudos científicos, diários de viagem e correspondências, a obra completa de Goethe acumula cerca de cento e quarenta e três volumes.
No entanto, Bloom também sugere que, apesar da sua importância para o cânone, Goethe talvez tenha perdido o seu apelo para o mundo moderno: “Goethe não é mais nosso antepassado como costumava ser antepassado de Emerson e Carlyle… Embora a sua obra configure o verdadeiro início da literatura imaginativa alemã, na perspectiva ocidental, ele representa o fim e não o começo de uma época.”[1]
Segundo o autor norte-americano, mesmo que a poesia de Goethe seja difícil de traduzir para outras línguas e, principalmente, para o inglês, a principal razão para esta perda de apelo seria, entretanto, consequência de uma mudança de valores e visão de mundo.
Distinto de outros poetas alemães como Hölderlin, cuja linguagem beira a inacessibilidade, mas cuja vida inspira a simpatia de todos nós que sofremos de sentimentos de inadequação histórica, a obra de Goethe inspira sentimentos de completude, harmonia e calma, totalmente estranhos ao pathos do homem moderno.
Neste diapasão, Bloom nos explica que, embora a sabedoria de Goethe permaneça atemporal, a sua obra parece ter sido produzida em outro sistema solar: numa realidade bem distante da nossa.[2]
Apesar de muito admirar o trabalho de Harold Bloom, ouso discordar da sua opinião. Pois, ao redescobrir Goethe, eu compreendi que ele é um dos inventores da modernidade. Ao contrário de Bloom, para quem a obra de Goethe simboliza o fim de uma época, entendo que a sua obra simboliza um novo ponto de partida tanto para imaginação quanto para o pensamento ocidental.
Admirado por Hegel, Nietzsche e Freud, pensadores sem os quais nós não saberíamos compreender o nosso lugar no mundo, Goethe contribuiu para a fundação da modernidade através da elaboração de um ideal de autonomia individual baseado nos conceitos autoconhecimento e autodomínio; através da ideia de desenvolvimento pessoal e da refutação de essencialismos sobre a natureza humana.
Nascido em 1749, Goethe viveu até os oitenta e dois anos de idade e durante a sua vida ele testemunhou alguns dos eventos fundadores da modernidade: a Revolução Americana; a Revolução Francesa e a ascensão de Napoleão ao trono da França. O contexto histórico em que se desenrola a vida e a obra de Goethe ainda norteia a nossa visão de mundo.
Esse mesmo contexto, acompanhado por avanços científicos e tecnológicos, bem como o questionamento do papel da religião na vida do indivíduo, faz parte da conjuntura que atribuiu ao homem moderno um sentimento constante de vertigem e inadequação. Assim, em sua caracterização do homem moderno como um indivíduo descontente, Bloom se esquece de que Goethe tenha sido um dos primeiros gênios do descontentamento.
Caso não compartilhasse do desassossego característico da modernidade, Goethe jamais teria sido capaz de extraordinários desenvolvimentos como na apresentação de Mefistófeles na primeira metade de Fausto: “Eu sou o espírito que tudo nega! E assim é, pois tudo o que existe merece perecer miseravelmente.”[3] Ou, tão perspicazes quanto o seu diagnóstico da época em Viagem à Itália: “Eu acho que é verdade que, no fim, a humanidade triunfará. Eu apenas temo que, neste ínterim, o mundo se transforme num imenso hospital onde cada um de nós se tornará o enfermeiro dos demais.”[4]
Naturalmente inquieto, Goethe teve uma vida marcada por experiências de perplexidade e encantamento diante do mundo. Estas experiências, muitas vezes dolorosas, engajaram o poeta alemão numa luta constante contra duas condições bem conhecidas do homem moderno: a ansiedade e a depressão.
Neste aspecto, um dos grandes motivos para o ler hoje, é compreender como os seus textos refletem a experiência de um indivíduo que conseguiu se preservar em meio às inúmeras mudanças e reviravoltas morais, científicas e culturais que ocorreram no mundo e na Europa do seu tempo.
Toda calma, harmonia e autocontrole característicos de Goethe, foram conquistados através de um esforço contínuo. Pode-se, inclusive, dizer que, não fosse a sua disposição para o trabalho, Goethe quase certamente poderia ter, como tantos outros gênios da literatura, terminado por se autodestruir.
Esta sua disposição para o trabalho tem a sua expressão artística na segunda parte de Fausto quando, já no final da peça, os anjos declaram: “Quem sempre se esforça com todo seu empenho, este, nós podemos salvar.”
Contrário a qualquer comentário essencialista sobre a natureza humana, Goethe acreditava que nós apenas somos capazes de conhecer um homem a partir das suas ações e do seu poder de auto realização. Adepto da ideia de que o homem é um animal em constante desenvolvimento, Goethe foi responsável pela criação do Bildungsroman, o “romance de formação”, inaugurado por sua obra Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister.
O personagem deste romance é a prova de que, para Goethe, o indivíduo não precisa tornar-se mais um doente terminal no hospital da modernidade. Diferente do que sucede aos seus outros personagens, Werther e Fausto, dois homens fora de controle que, de uma maneira ou de outra, ainda representam personalidades românticas: Werther ao morrer por amor e Fausto ao jamais tomar consciência das suas próprias limitações.
Mais do que qualquer outro personagem criado por Goethe, Wilhelm encarna, com maestria, o ideal goetheano de que a excelência apenas se alcança no aprendizado sobre as nossas próprias limitações e, por isto, aqueles que almejam grandes feitos, devem primeiro cultivar o autocontrole.[5]
Em tempos de excitação coletiva, em que cada pessoa crer estar fazendo certo ao atuar como juiz, ou até mesmo enfermeiro do resto da humanidade; em que o arranca-rabo ideológico torna-se cada vez mais despropositado e ressentido, Goethe nos oferece a possibilidade de superarmos a nossa condição de enfermos históricos e existenciais.
Assim, hoje, mais do que nunca, a leitura de Goethe se torna um antídoto precioso contra as pressões irrefletidas da cultura de massa em relação ao indivíduo. Pois, na atualidade, quem busca pensar e agir por si próprio deve aprender a educar a sua própria sensibilidade através do contato com o mundo e da vivência das mais diversas experiências afetivas. Apenas dessa forma, ao tomar posse de si mesmo e ao compreender o seu lugar no mundo, o indivíduo será capaz de recobrar o domínio sobre a sua própria criatividade para, enfim, redimir a humanidade.
[1] Bloom, Harold. The Western Canon, p. 203-4.
[2] Idem.
[3] Goethe, J. W. von. Faust, linhas 1338-40.
[4] Idem. Italienische Reise, 27 de Maio de 1787. (https://gutenberg.spiegel.de/buch/italienische-reise-3682/55)
[5] Goethe, J.W. von. Natur und Kunst, https://www.textlog.de/18302.html.
Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda.