por Fabrício Tavares de Moraes
Num artigo relativamente recente, a filósofa Amy Kind, autora de Persons and Personal Identity (2015), expôs em poucas linhas o repúdio que a filosofia moderna não raro dedicou à imaginação. Ora, indaga a autora, sendo a capacidade imaginativa uma poderosa ferramenta, por que os filósofos ainda se recusam a empregá-la na formulação de seu pensamento?
Os últimos decênios testemunham, porém, não necessariamente um repúdio, mas uma reação ambígua – ora benfazeja, ora apreensiva – para com a imaginação. É o que se vê, por exemplo, na implosão dos limites entre a poesia e a filosofia, na fusão entre formulação filosófica e composição literária.
Contudo, já em sua gênese, a filosofia moderna não fugiu dessa tensão, pois mesmo Descartes, em suas Meditações Sobre a Filosofia Primeira (1641), concebia a imaginação antes como entrave do que auxílio, embora em sua obra O mundo ou Tratado da luz (1633), o filósofo tenha se fundamentado em suas capacidades imaginativas para a construção de uma verdadeira cosmologia mecanicista.
Kant, de semelhante modo, distinguiu entre a imaginação produtiva e imaginação reprodutiva, isto é, respectivamente, a faculdade que, numa espécie de síntese, transforma o conteúdo de nossos sentidos num todo dotado de sentido e a outra que, sendo reminiscência, simplesmente reúne os materiais anteriormente fornecidos também pelos sentidos.
Para Kind, no entanto, o “temor” dos filósofos em relação à imaginação deve-se em parte à sua incapacidade de conceber “a imaginação como uma faculdade mental unificada”; ao que ela se contrapõe dizendo que não se trata de dois tipos, mas de dois usos distintos de uma mesma faculdade da cognição humana, nomeadamente, as funções transcendente e instrutiva da imaginação. A primeira far-se-ia presente, por exemplo, na leitura e imersão de uma obra de ficção, que conduz o indivíduo para além de sua imediaticidade (no tempo e no espaço). A outra função, por sua vez, tem um senso prático e concreto, quando se aplica às descobertas científicas e técnicas ou à resolução de problemas que exigem a apreensão de circunstâncias e relações as mais variadas.
Entretanto, como diz a filósofa, até mesmo essa distinção não é estrita, e seus limites são traçados segundo as contingências e necessidades. O ponto, todavia, conforme enfatiza Kind, é que a imaginação tem sido, de certo modo, reabilitada aos poucos pela filosofia, em razão de seu papel não somente na formação da personalidade, mas também nas próprias estruturas sociais. Lembremos de Schelling, para quem “a nação não produz um mito; antes, é o mito que produz a nação”. A própria unidade nacional depende fortemente de mitos literários fundacionais, como testemunham os projetos dos escritores românticos brasileiros.
Mais que isso, essa citada reabilitação advém, em parte, da crise de uma antropologia iluminista, que concebia o homem como essencialmente racional e a sociedade, portanto, como produto do planejamento racionalista. Terrores, fobias e fanatismos não são meras anomalias num mundo governado pela razão, mas evidenciam também (e talvez principalmente) uma imaginação pauperizada. Martha Nussbaum, em especial, analisa a forma como a literatura é essencial para a consecução da justiça numa sociedade civilizada, já que, na imaginação, razão e sentimento se conjugam. E mais: na literatura temos a experiência do “sofrimento vicário” (Lelan Ryken), em que, como dizia Borges, somos ao mesmo tempo nós e ainda outros.
Nussbaum, é claro, não está desatenta aos eventuais efeitos negativos de sua perspectiva, pois como a história da literatura atesta, várias obras incitaram, propositalmente ou não, ódios então quase esquecidos, ou foram mesmo responsáveis pela criação de preconceitos e rancores. Isto, no entanto, simplesmente evidencia a intensidade da imaginação na vida humana e uma de suas principais capacidades, nomeadamente, a convergência e coesão de elementos díspares numa unidade simbólica – os elementos essenciais para a criação de uma visão de mundo. Nesse sentido, para o bem ou para o mal, as narrativas políticas valem-se primariamente da imaginação na formação de um “mito fundador” (como no nazismo), embora simultaneamente esvaziam o imaginário coletivo reduzindo o homem em sua complexidade.
As causas – se esta é a linguagem apropriada à presente questão – para a crise da imaginação se encontram talvez em dois fenômenos aparentemente antípodas. Em primeiro lugar, o horror pós-moderno (ou pós-hegeliano) às metanarrativas culmina sempre num repúdio algo pueril aos sistemas e à sistematização. Desse modo, toma-se o sentido inverso da concepção pré-moderna, que, de modo geral, percebia o mundo como uma grande hierarquia cósmica (scala naturae), em que cada ente apontava para algo além de si, e na qual as relações estabelecidas entre todos os elementos formavam, quando vistos de uma perspectiva mais ampla, uma grande harmonia.
Obviamente não cabe a nós uma repristinação dessa cosmologia que talvez não seja mais cabível; mas há aqui uma percepção profunda da natureza da modernidade, que também Ortega y Gasset percebeu: a despoetização do mundo. Segundo o filósofo espanhol, os animais selváticos (para citar uma de suas ilustrações) são despidos de seu sentido simbólico sedimentado ao longo dos anos pela tradição, e tornam-se meros recursos, coisas que existem e subsistem em razão unicamente de sua relação com o homem. Possivelmente é essa a raiz do crescente esoterismo moderno, que remonta pelo menos à escola simbolista europeia.
Em segundo lugar, temos a ascensão da tecnocracia, que significa não somente a entronização da técnica, mas a crença inabalável de que as sociedades humanas são passíveis de serem por ela redimidas. Daí os reis-filósofos platônicos dão lugar aos técnicos do Estado, com seus ideais de gestão, desenvolvimento e aperfeiçoamento a longo prazo. Como se percebe, essa ideia caminha próxima à concepção de Ortega y Gasset, pois se o mundo é apenas campo de ação da técnica, todos seus entes serão vistos como simples recursos, coisas encerradas em sua pura funcionalidade.
À vista disso, se há de fato uma “redenção” contemporânea da imaginação e sua consequente reinserção no trabalho filosófico, faz-se ainda mais necessária a prudência para com essa “poderosa ferramenta”. Pois, afinal, o primado iluminista da razão conduziu-nos, após seu período de euforia, aos abismos do irracionalismo, niilismo e coletivismo. Pela própria natureza das coisas, o futuro é ainda, em grande parte, imaginação.