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Eis um período histórico peculiar: de uma só vez, uma crise sanitária de dimensões globais, que encerra adultos e crianças, homens e mulheres, permanentemente em casa, e um Brasil instável e polarizado, talvez, como há décadas não se via. Para o jornalismo, trata-se de um prato cheio; para analistas políticos e frequentadores assíduos das redes sociais, também – bem como para os que compõem teoria e prática jurídicas, cientistas, psicólogos, sociólogos, economistas, e toda outra ordem de áreas. Nesta lista, porém, poucos incluiriam artistas, músicos, escritores – exceto quando lhes diz respeito algum movimento político desastrado. Os poetas, de modo especial?
No entanto, como toda boa literatura, talvez eles possam aportar mais ao debate do que se esperaria numa sociedade pouco dada aos versos (sim: bastaria breve consulta aos números do mercado editorial referentes ao gênero). O Estado da Arte buscou quatro nomes da poesia nacional para lhes pedir uma mostra – inédita – da produção realizada em período de quarentena. O resultado talvez ofereça um surpreendente retrato da tensão (ou da completa falta de tensão) entre a sensibilidade e a interioridade de cada um desses autores e as vicissitudes presentes.
Os textos vêm de Hugo Langone, autor de Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito, A descida do Monte Tabor (no prelo) e do livro-ensaio Chorar por Dido é inútil;
de Mariana Ianelli, quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti e autora de mais de uma dezena de títulos, entre eles Trajetória de antes, Passagens, Almádena e Treva alvorada, com o qual recebeu menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas;
de Bernardo Lins Brandão, professor da UFPR e responsável por Rua Musas;
e de Guilherme Gontijo Flores, autor de brasa enganosa, Tróiades, l’azur Blasé e Naharia.
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Hugo Langone
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Do vento
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Meus filhos choram
Enquanto trabalho.
As vocações concorrem entre si:
É assim que Deus se diverte,
Mas não creio serem essas
As delícias que encontra entre os homens.
Do lado de fora da janela,
O vento empurra folhas contra a grade
Porque gosta do som, mas eu mesmo
Penso ser algum chamado.
Sou todo ouvidos,
Vejo símbolo em tudo, chamo o outono de artista,
Busco a liturgia de uma palavra precisa e rara,
Mas tudo, segundo as aves, é só a brisa, só a manhã.
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Brasil
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Pede-se:
Ouvi-nos,
Atendei-nos,
Na breve litania
Sem cantos.
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Figueira frondosa
Sem frutos,
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Túmulo das
Promessas,
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Estertor da
Esperança,
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Devir constante do
Não,
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E a jaculatória, enfim,
Que roga a
Piedade.
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Mariana Ianelli
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Os amantes de Wuhan
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Até quando? É a pergunta que nubla
Uma cidade na clausura
Desolada pelo terror de um ar irrespirável.
O comércio foi suspenso.
Os abatedouros aquietaram-se.
Os que ainda se arriscam pelas ruas
Praticam a ciência dos fantasmas.
A espera tem cachos de olhos nas janelas
Mas na casa dos amantes
Todos os olhos já se fecharam.
Nunca foram tão obedientes
Às exortações das autoridades.
Ocupados feito monges
Justificados pela peste
Estão se percorrendo milimetricamente
Pelos poros, por noites encadeadas
Num único dia sem fim, eles estão se amando
E não têm tempo a esperar que o tempo passe.
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Entre as folhas da palmeira
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Numa guerra em fogo baixo
Até os dias amanhecem
Ao contrário. Azuis do azul
De um sol desertado.
Ansiamos por alguma coisa
Que traia nossa desconfiança
Algum bem que se alastre
Mais potente
Que a claque dos carrascos.
Aceitamos rezar pelo improvável
Rezamos, rogamos e tanto
Que as poucas folhas da nossa palmeira
Empenham a vida que ainda têm
Em balançar
Por força da nossa louca vontade.
Consideramos a possibilidade
De um sacrifício.
Se depois mudarem os tempos
E uma paz se deixar tocar
De noite até o dia seguinte
Sem que se desfaça
Se o sol voltar e com ele
A nossa parte clara
Será coincidência e não será.
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Bernardo Lins Brandão
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os sinos
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os sinos anunciam o eterno
as flores do ipê buscam as sombras da tarde
que tomam as ruas
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a vida repousa em espelho
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os olhos ganham a leveza das aves
e a alegria se assenta em sacra sede
no desaperceber do deslumbramento
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os amigos de S. Nicolau
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nos tempos de Constantino, três homens, generais
do império, Urso, Nepociano e Aquilão, que se ocupavam em saquear cidades
na costa do Adriático, à mesa foram chamados
do bispo Nicolau
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ali provaram do vinho,
e se embriagaram e foram conduzidos a si e a alegria
que jorrava dos olhos do velho esfriou-lhes a ambição por sangue
inocente
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feliz quem se faz amigo de um santo
vão é o desejo
de combatê-lo
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abandonando o culto às fúrias, os três se fizeram simples,
mas a soberba e a calúnia de seus inimigos não tardou
em lhes encontrar
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condenados à espera da lâmina
do algoz, foi em tremor e espírito que invocaram o auxílio
do ancião Nicolau
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e o santo não foi lento em seu socorro
e tão logo invadiu os terrores
noturnos do rei, de feras cobrir seus pastos
prometeu e o seu corpo insensato em vermes
formigar se as demandas da justiça mais uma vez ousasse
abandonar
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e os três prisioneiros ergueram as mãos
aos céus quando lhes perguntaram acaso conhecer o nome
de São Nicolau
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e vendo no dia seguinte ir-lhes o velho ao encontro
aos seus pés se prostraram e a ele
proclamaram escravo
e amigo de Cristo
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Guilherme Gontijo Flores
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Matina
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A medalha é uma réstia de sol
couro e estrume na borda da luz
que desbota o capim calcinado
de tarde a tarde ao que cabe no chão
entre as dobras das leiras na terra
Um dedo aponta a chacina do dia
encoberto de musgo & feno & pó
uma unha espocando no cerne
da vida em cutícula assimila essa
carne dormente no caso do pó
Explodem na aurora umas fabulações
de azul & laranja de verde & rubi
são gritos palmeiras são olhos sementes
são cal & cimento no cais da manhã
Um asno urra as quimeras perdidas
do dia no caos do primeiro rebento
de milho & soja pela terra assolada
que cumpre a medida do corpo
a cansada mesura dos membros na mó
Cão e pato consumam o quadro
& as nuvens não cabem no moto
que esquadros ao pouco limitam
na cena decídua que a íris define
Os pés se confundem no meio da mata
mãos abrigando seivas & pólens
Na dobra dos pulsos rebentam brotos
a boca entre pastos floresce erva-doce
Vibra o barranco de vida & depois
de um tempo aceita o dia o dom
de dor & fúria a sina de som
& terra que acolhe tudo em volta
O ouvido ainda encobre a mata
num zunido estalando a paisagem
são talos novos no olho d’água
& o metal no peito do moleque
entranhado não é medalha de ouro
estranho sol que dorme carne adentro.
……
……
Wega
……
Você vai morrer sozinho
vai ser sepultado sozinho.
……
………..Você vai morrer sozinho
……….. vai ser sepultado sozinho.
……
Pense por isso no dia
que você vai morrer sozinho.
……
………..Você vai morrer sozinho
………..vai ser sepultado sozinho.
……
Tantos já nos deixaram
e você também vai morrer.
……
………..Você vai morrer sozinho
………..vai ser sepultado sozinho.
……
§
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Uchafa uri wega
ugovigwa uri wega.
……
§
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Todas as tribos que se foram
…………acolham aqui seu filho
…………………………….a ele acolham.
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Todos os pais que se foram
………..acolham aqui seu filho
…………………………………acolham.
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E todos os mais velhos que se foram
………..acolham aqui seu filho
…………………………….a ele acolham.
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Hoje ele se vai
……….. acolham aqui seu filho
…………………………….ele se vai.
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