Resquícios de uma grandeza em “Os vestígios do dia”, de Kazuo Ishiguro – Parte II: O Eixo da História

Em que medida as pequenas ações podem se ver refletidas nos grandes acontecimentos? O protagonista de 'Os Vestígios do Dia', do prêmio Nobel de Literatura Kazuo Ishiguro, oferece uma hipótese para refletirmos.

Por Fabrício Tavares de Moraes

Talvez a definição de Leopold von Ranke de que “história deveria mostrar aquilo que realmente aconteceu” seja problemática não simplesmente porque todo fato, mesmo aquele descrito com maior objetividade e precisão, é sempre ajustado, quando não distorcido, a uma estrutura narrativa maior, mas também porque, conforme se sabe, todo historiador cria para si uma hierarquia dos fatos, num trabalho de triagem, daquilo que reverberou para além de sua época ou cujos vestígios ainda são de certo modo nítidos.

Ainda que movimentos como a Escola de Annales, por exemplo, tenham se dedicado ao estudo da história “vista por baixo”, segundo a definição que hoje já se tornou lugar-comum, é certo que se não houvesse um princípio direcionando as seleções dos fatos, perdermo-nos-íamos num oceano de circunstâncias e eventos insignificantes que em nada explicam ou contribuem para uma compreensão provisória do processo histórico.

Como diziam os idealistas alemães, a ciência da história busca não o absoluto, mas o das Einmalige (“o singular”); e isto porque, lidando com a ação humana que culmina na transformação do mundo, o historiador dificilmente tem justificativas para a omissão dos feitos condenáveis ou louváveis dos indivíduos.

À vista disso, e continuando as reflexões sobre o romance Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro, podemos perguntar-nos em que medida as ações tidas como ínfimas se refletem em acontecimentos decisivos, que mobilizam os mais poderosos agentes de uma determinada época. Afinal, o protagonista Stevens, ainda que afetando modéstia, crê que seus bons serviços contribuíram de algum modo para as decisões tomadas na casa de Lord Darlington, que reuniu, ao longo das décadas do período entreguerras, todos os líderes das grandes potências. Nas palavras do próprio Stevens:

Evidentemente, o que se busca é prestar serviços gerais e consistentes ao patrão, e o valor desses serviços não ode nunca ser reduzido a um determinado número de exemplos específicos, como aquele referente a Lord Halifax. Mas o que estou dizendo é que, ao longo do tempo, esse tipo de exemplo vem a simbolizar um fato irrefutável: o fato de que se teve o privilégio de praticar a própria profissão no cerne mesmo das grandes questões. E tem-se o direito, talvez, de sentir uma satisfação que aqueles que se contentam em servir patrões medíocres jamais conhecerão: a de poder dizer, com alguma razão, que os próprios esforços, por modestos que sejam, constituem uma contribuição para o curso da história.

Stevens, com sua típica discrição, em certo momento insinua que sua logística exemplar e em especial seu zelo com a prataria da casa foram essenciais para o êxito de um acordo internacional. E esse pensamento simplesmente ecoa sua ideia anteriormente exposta de que a grandeza é resultado da discrição; pois, segundo a concepção de Stevens, as grandes casas são o motor da história, e tudo aquilo que acontece nas reservadas reuniões dentro de suas paredes decidem e guiam soberanamente os rumos do mundo:

Acredito ser exato dizer que víamos o mundo não como uma escada, e sim como uma roda. Talvez eu deva explicar melhor. É minha impressão que nossa geração foi a primeira a identificar uma coisa que havia passado despercebida por todas as gerações anteriores: ou seja, que as grandes decisões do mundo não eram, efetivamente, tomadas apenas nas câmaras públicas ou ao longo de um punhado de dias dedicados a uma conferência internacional, sob os olhos do público e da imprensa. Em vez disso, percebíamos que debates eram realizados e importantes decisões tomadas na privacidade e calma das grandes casas do país. O que ocorre aos olhos do público, com tanta pompa e circunstância, é geralmente a conclusão ou a mera ratificação do que ocorreu ao longo de semanas ou meses entre as paredes dessas casas. Para nós, portanto, o mundo era uma roda que tinha como eixo as grandes casas, das quais altas decisões emanavam para todo o restante – ricos ou pobres, gravitando em torno delas. A aspiração daqueles de nós que tinham ambição profissional era chegar o mais próximo possível desse eixo.

Nesse sentido, e apenas a título de ilustração, a visão de Stevens que perpassa o romance de Ishiguro é o exato oposto daquela do roteiro do filme Gosford Park (2001), de Robert Altman, também centrado no mundo das grandes casas inglesas. Ao passo que neste último é ainda a luta de classes que rege as dinâmicas entre mordomos (e demais serviçais) e patrões, em Vestígios do Dia, no entanto, a história, qual força centrípeta, arrasta para si e reúne, em seus crimes e em suas glórias, indivíduos de todas as classes.

Ora, Stevens por um momento revela seus anseios e exclama aos seus subordinados: “É muito possível que se faça História debaixo deste teto”. E aqui há, portanto, um dos grandes dilemas do protagonista, pois se ele de fato crê que sua ação, por mais humilde e subalterna que seja, contribui para os grandes eventos da humanidade, segue-se, portanto, que cabe também a ele a responsabilidade e a culpa pelos erros da casa de Darlington.

De modo resumido, se estando próximo ao eixo da história – as grandes casas –, Stevens pode gabar-se das glórias por elas conquistadas, é inevitável que também seja condenado pelos seus erros. Assim, Stevens, embora não diga, é assolado não apenas pela questão se realmente pertence a uma casa de distinção, mas também por sua possível contribuição para o mal na história. Semelhantemente a Riobaldo que nega a existência do Diabo porque disto depende sua alma, é preciso que o mordomo afirme a distinção e nobreza de Lord Darlington, ou mesmo negue tê-lo conhecido, para que toda sua vida de trabalho árduo não tenha sido uma cooperação para o nazifascismo.

Mas Ishiguro aprofunda ainda mais a problemática da história e sua relação com a política, o que é visível a partir de uma fala do Senador Lewis, o representante dos Estados Unidos que fora enviado à reunião da grande casa e quase um símbolo do novo cenário da política internacional que então surgia: “Vejamos o nosso anfitrião. O que é ele? É um cavalheiro. Ninguém aqui se daria ao trabalho de discordar. Um clássico cavalheiro inglês. Decente, honesto, bem-intencionado. Mas nosso lorde é um amador”.

Com efeito, Lord Darlington é uma marionete política, e suas ações revelam como até mesmo os valores da antiga ordem europeia foram abusados ou distorcidos pelos vários e grotescos projetos de poder que remodelaram não somente as relações entre as nações, mas principalmente a forma e critérios da política.

Dito de outro modo, em Vestígios do Dia temos um retrato fiel, embora a todo momento sigiloso, da mudança do Gentlemen’s agreement (o acordo de cavalheiros) para a Realpolitik. E este é um dos pontos mais vigorosos do romance, que revela como as decisões equivocadas (e há, na adaptação cinematográfica de James Ivory, uma ênfase neste aspecto) ainda reverberam nas vidas alheias e na história, a despeito do arrependimento.

É o que nos ensina Leszek Ko?akowski naquela que talvez seja a mais lúcida e urgente epígrafe de uma obra lançada este ano (em Sobre a Tirania, de Timothy Snider): “Em política, enganar-se não é desculpa”.

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