Resquícios de uma grandeza em “Os vestígios do dia”, de Kazuo Ishiguro – Parte I: Resignação e expressividade

Talvez sejam estes os polos entre os quais oscila o comportamento humano: o estoico e o patético, a resignação perante o sofrimento e a expressividade ruidosa.

por Fabrício Tavares de Moraes

Em suas Meditações, Marco Aurélio, movido pela sua disciplina estoica, lançava reprimendas sobre todo homem que, a despeito de sua habitação e vida neste universo ordenado, permite que sua alma continue desordenada. Talvez seu rigorismo soe mais estridente do que originalmente pretendesse, tendo em vista as atuais tendências ocidentais de “ideologia da vítima”.

E, de fato, e talvez de um modo reducionista, são estes os polos entre os quais oscila o comportamento humano em meio às agruras da vida: o estoico e o patético, a resignação perante o sofrimento e a expressividade ruidosa. Contudo, somente o primeiro desses polos fundamenta-se na busca pelo sentido, fazendo com que as meras vicissitudes obedeçam a um princípio inegociável e permanente.

Detalhe de Retrato em fase de restauração

Assim se dá no romance Vestígios do Dia (Companhia das Letras), de Kazuo Ishiguro, em que o mordomo Stevens, a despeito de uma modéstia por vezes afetada, é movido pelo ideal da dignidade, de maneira que suas outras posturas subalternas – incluindo a lealdade ao seu ex-patrão, Lord Darlington – são praticamente consequências desse princípio. Porém, a própria natureza da dignidade constitui matéria de reflexão para o mordomo ao longo de toda sua narrativa. Como ilustração de seu entendimento dessa qualidade, ele alude à seguinte história que ouvira de seu pai, acerca de um mordomo “que viajara com seu patrão para a Índia e lá servira durante muitos anos”:

Certa tarde, ele [o mordomo] entrou na sala de jantar para conferir se estava tudo em ordem para a refeição e notou um tigre deitado debaixo da mesa. Com muita cautela, o mordomo deixou o recinto, tomando o cuidado de fechar as portas, e foi calmamente para a sala de estar, onde seu patrão tomava chá com um grupo de visitantes. Com um pigarro polido, chamou a atenção do patrão, depois sussurrou em seu ouvido: “Sinto muito, senhor, mas parece que há um tigre na sala de jantar. O senhor talvez permita que a calibre doze seja utilizada?”.

Segundo a lenda, minutos depois, o anfitrião e seus convidados ouviram três tiros de espingarda. Quando o mordomo reapareceu na sala algum tempo depois, para completar os bules de chá, o patrão perguntou se estava tudo bem.

“Muito bem, obrigado, senhor”, foi a resposta. “O jantar será servido na hora de sempre e tenho o prazer de informar que não haverá mais nenhum vestígio dos acontecimentos recentes”

O vestígio da brutalidade (tanto do tigre quanto de sua morte), dos elementos hostis que surgiram e ainda surgem mesmo nas casas de alto padrão e civilizações luxuosas, é uma das tônicas da própria ficção de Ishiguro. Ora, na lenda acima, é ao mordomo que cabe o apagamento desses vestígios (remains) – assim como Stevens, com sua narrativa num impecável sermo nobilis, empenha-se em apagar de seu relato e testemunho os rastros das conexões nazifascistas de Lord Darlington, a quem servira zelosamente. E eis, portanto, a definição, que temos num primeiro momento, do conceito de dignidade: a lealdade indissolvível ao patrão e a discrição mais ferrenha com relação aos acontecimentos que se passaram na casa.

No entanto, a própria rigidez da elegante linguagem de Stevens instaura a ambiguidade, pois é justamente porque sua sobriedade abafa e contém seu fluxo de memórias, que temos um relato ponderado dos acontecimentos tal como se deram. Nesse sentido, é curioso que, tentando inocentar Lord Darlington da acusação de antissemitismo levantada décadas antes pelos jornais e pela opinião pública, Stevens lembre-se tanto do episódio condenável em que seu patrão lhe ordenou que despedisse duas arrumadeiras competentes apenas por serem judias quanto de seus contatos e hospitalidade para com membros da União Britânica de Fascistas.

E aqui talvez haja um ponto de inflexão na própria consciência de Stevens, porque, para ele, o pertencimento a uma casa de distinção é também um pré-requisito para a dignidade exemplar, para a presença de espírito que se impõe por sua própria autoridade, que é tanto mais forte porque advinda de um subalterno, cujos recursos são os mais limitados. Ora, Stevens satisfez realmente essa exigente condição? Pois, afinal, a casa de Lord Darlington, com seu vexaminoso conluio com os nazistas, é de fato uma casa de distinção?

Ao que parece, o próprio Stevens, ao longo de sua viagem rumo ao condado inglês da Cornualha para um reencontro com a antiga governanta Miss Kenton (que no presente da narrativa já havia se tornado Mrs. Benn), ensaia uma ampla justificação histórica do destino da Inglaterra (e por extensão ao Reino Unido). Para ele, a noção de grandeza está atrelada à contenção, e concomitantemente o ideal de dignidade pauta-se sobretudo no autogoverno, conforme diz numa de suas reflexões:

Chamamos esta nossa terra de Grã Bretanha, e talvez haja gente que considera tal prática um tanto imodesta. Porém arrisco afirmar que já a paisagem de nosso país justificaria o uso desse imponente adjetivo.

E, no entanto, o que é exatamente essa “grandeza”? Onde, exatamente, ou em que ela reside? Tenho plena consciência de que seria preciso uma cabeça muito mais sábia do que a minha para responder a essa pergunta, mas, se fosse forçado a arriscar uma resposta, diria que é a própria ausência de drama ou espetaculosidade óbvios que distingue a beleza de nossa terra. O que é perfeito é a calma dessa beleza, a sensação de contenção. Como se o país soubesse de sua própria beleza, de sua própria grandeza, e não sentisse nenhuma necessidade de proclamá-la.

Isto significa que a Grã-Bretanha e as grandes casas, assim como os grandes mordomos (termo de Stevens), devem sua magnitude às suas naturezas discretas. E, ecoando essa noção, Ishiguro realiza uma proeza formal, já que, em dois momentos excruciantes e de imensa carga emocional, a linguagem e descrições, refletindo a dignidade de Stevens, mantêm-se serenas e contidas. No caso, na ocasião da morte do pai do mordomo e quando Miss Kenton (com quem sempre manteve uma proximidade amorosa jamais declarada) anuncia seu casamento e a saída da casa.

Em certa parte do enredo, Stevens pai já antes mostrara sinais de debilidade quando se acidentou no jardim; algumas semanas depois, sofre um derrame severo. Nessa mesma época, em março de 1923, a casa recebia, para uma conferência política, os mais ilustres hóspedes – ministros e políticos de toda a Europa e dos Estados Unidos. De modo que o protagonista se viu inteiramente absorvido pela logística e trabalho da casa – e de igual modo, como é óbvio, pelas importunações e caprichos dos nobres e de alguns governantes. Em meio a essa barafunda, e nos breves intervalos entre suas atividades, Stevens sobe ao quarto para dedicar um pouco de atenção ao pai:

Fiquei olhando meu pai um momento, toquei de leve sua testa e retirei a mão.

“Na minha opinião”, disse Mrs. Mortimer, “ele teve um derrame. Já vi dois na minha vida e acho que ele teve um derrame”. E começou a chorar. Notei que estava com um forte cheiro de gordura e assado. Virei-me para Miss Kenton e disse:

“Isso é muito complicado. Mas agora tenho de descer”.

“Claro, Mr. Stevens. Eu chamo o senhor quando o médico chegar. Ou se acontecer alguma mudança”.

“Obrigado, Miss Kenton”.

Desci depressa a escada e cheguei a tempo de acompanhar os cavalheiros que iam para a sala de fumar. Os lacaios pareceram aliviados ao me ver, e, imediatamente, fiz sinais para que ocupassem suas posições.

Não se trata apenas de senso de dever, mas da dor humana que se transfigura quando emoldurada pela gravidade e ritualismo dos gestos; pois Stevens, momentos depois, contém-se com dificuldade, apresentando-se aos hóspedes com lágrimas sutis nos olhos, embora intransigentemente composto.

Obviamente é possível que essa dignidade eventualmente se degenere em altivez, quando não frieza e afetação. De fato, Miss Kenton, jamais penetrando através da paquiderme de costumes de Stevens, extravasa mais de uma vez no decorrer do romance, questionando seu amigo a razão de seu constante fingimento, do constante apagamento de sua espontaneidade.

Esse é uma ameaça que paira não somente sobre Stevens; antes, é recorrente na busca humana por sentido. Afinal, se o homem é o único ente que suplanta ou redime a dor ao subordiná-la a um propósito, é certo que também se vê sempre acompanhado do perigo de um desprezo deliberado pelo sofrimento em prol da mera aparência.

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